“O nome que eu me chamo é…” e “O exame de lâmina, o vínculo, a vida e o fim da vida”

Caros leitores da Rede HumanizaSUS, fazemos parte do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família, vinculado à Universidade Federal de Sergipe (UFS), com atuação no município de Lagarto, interior do estado. A presente publicação foi desenvolvida pelos 11 residentes do referido programa, das áreas profissionais de enfermagem, farmácia, psicologia e terapia ocupacional, atuantes em três Unidades Básicas de Saúde (UBS)… Nossa contribuição fez parte das Unidades de Ensino de Saúde Mental e Humanização em Saúde, ministrada pelos professores Rodrigo Alves dos Santos Silva e Raphaela Schiassi Hernandes.

Durante as discussões nas aulas, foram identificadas experiências práticas de humanização observadas nos cenários onde estamos inseridos enquanto residentes, tendo se pautado na transversalidade, protagonismo, corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos. Assim, compartilharemos, a seguir, duas destas experiências vivenciadas.

Experiência 1: “O nome que eu me chamo é…”

Nome Social

O termo “nome social” faz referência ao nome pelo qual uma pessoa prefere ser chamada e reconhecida independentemente daquele que aparece em seus documentos legais, como carteira de identidade, passaporte ou certidão de nascimento. Este conceito é especialmente importante para respeitar a identidade de gênero de indivíduos, assegurando que sejam tratados de acordo com a forma como se identificam. Situação Vivenciada

Foi um dia tranquilo na UBS. Pela manhã, conduzi alguns atendimentos e tinha uma consulta agendada para a tarde com um paciente chamado Eduardo (nome fictício). Às 13h30, ao verificar o sistema eletrônico, notei que o usuário havia acabado de chegar. Seguindo o procedimento padrão da Unidade, chamei-o pelo nome, no entanto, quem se aproximou não foi um homem, mas sim uma mulher.

Lembro-me das disciplinas na universidade que abordavam comunicação verbal, não- verbal e estratégias para conduzir uma anamnese eficaz com diversos grupos populacionais, incluindo a comunidade LGBTQIA+. Dando continuidade à consulta, convidei a usuária a entrar na sala e perguntei se ela se sentia confortável com a presença da acompanhante, obtendo resposta positiva. Após a usuária se acomodar, fechei a porta da sala e abordei a pergunta sobre como ela gostaria de ser chamada, e ela prontamente me informou seu nome social, Duda (nome fictício).

Neste momento destaco mais uma vez a importância de respeitar a identidade de gênero das pessoas e reconhecer que um nome vai além de um mero rótulo, carregando consigo afeto e identidade social.

Seguimos então para acolher sua necessidade. A razão da sua visita a UBS foi a realização de testes rápidos (HIV, Hepatite B/C e Sífilis). Foram todos conduzidos e houve dentre estes, resultado positivo para HIV. Isso era algo que eu nunca havia vivenciado antes. Seguindo o protocolo estabelecido, foi realizado um teste de contraprova para confirmar o resultado positivo para HIV, e esse segundo teste também confirmou a presença do vírus.

Enfrentar a tarefa de comunicar uma notícia tão impactante como essa é extremamente desafiador. É importante ressaltar que os testes rápidos não fornecem um diagnóstico definitivo, pois são usados principalmente para triagem inicial. No entanto, mesmo nesse estágio, o resultado positivo carrega consigo um estigma social significativo. Compreender como transmitir essa notícia de forma sensível e éticaé uma parte crucial do meu papel como profissional de saúde. Toda essa situação me leva a refletir sobre como, se eu não tivesse reconhecido e utilizado o nome social dela, o processo de comunicação teria sido prejudicado, afetando assim a qualidade do cuidado em saúde que ela receberia, e a fragilidade da percepção da usuária frente ao serviço como ponto de referência, de apoio e de acompanhamento longitudinal.

Experiência 2: O exame de lâmina, o vínculo, a vida e o fim da vida

Era por volta de onze horas quando uma das residentes de enfermagem da unidade estava indo ao banheiro e uma usuária que estava no corredor aguardando atendimento para o dentista a parou. A residente conhecia a usuária a partir de exame de lâmina realizado anteriormente. A usuária perguntou  se a residente poderia informá-la sobre algo. Prosseguida a conversa no corredor, a usuária perguntou se haveria atendimento médico disponível naquele turno. Ela comentou que estava ansiosa, sem dormir e agitada. A residente indagou a usuária para saber um pouco mais sobre o porquê da urgência por uma consulta médica para então decidir o que poderia ser feito. Nesse momento, percebendo ao olhar, que algo não estava bem.

Sentadas no corredor contou-lhe ali mesmo, que tinha pensamentos suícidas e alguns outros pensamentos hostis em relação ao filho mais novo. Relatou também, medo do que poderia acontecer se não fosse feito algo, pois já havia tentado suicídio antes. Disse-lhe “tenho medo de fazer algo e perder o meu filho, a guarda dele, tenho pensado em me matar”.  Prontamente a residente informou a preceptora para ajustar condutas, modificando a agenda, colocamos aquele atendimento para o dia, após ela passar pelo dentista agendado para o final de manhã.

A equipe foi informada, devido a prioridade do entendimento a médica ao colher a história clínica, observou que a usuária tinha um vínculo antigo com o CAPS que havia sido interrompido por decisão própria e parado de tomar os medicamentos. Ela apresentava sofrimento, mas não tinha um diagnóstico psicopatológico fechado, o que preocupou a médica, verificou junto a equipe quais pontos de apoio haviam disponíveis naquele momento, pois existia perigo real dela tentar suicídio e/ou vir a agredir o filho. Medica-la sem a opinião de uma especialista era um risco, pois podia desencadear o efeito medicamentoso inverso ao esperado com piora do quadro devido à complexidade apresentada.

A solução foi uma consulta com psiquiatra on-line pelo TeleNordeste. Foi realizado o contato com a rede de apoio familiar com a permissão da paciente e acionamos a Agente Comunitária de Saúde (ACS) para fazer essa conexão… Atualmente é acompanhada no CAPS e pela equipe da estratégia de saúde da família, com aumento das visitas domiciliares da ACS. Segue usando os medicamentos prescritos pelo psiquiatra com dose assistida por um familiar. O filho mais novo foi afastado por decisão da família. Usuária permanece trabalhando, identifica o trabalho como um ponto de apoio e proteção.

A partir de uma atitude profissional acolhedora foi gerada confiança e  fortalecido o vínculo. Por meio de um ouvir sem pressa, com atenção, que o acolhimento e o direcionamento foram realizados por equipe multiprofissional onde decisões exitosas foram tomadas por todos, inclusive da usuária ao procurar ajuda. O trabalho, os envolvidos e todos os recursos acionados e utilizados foram importantíssimos pois criam o talvez e reacende a chama da vida. O talvez:  um suicídio foi evitado. A chama: É possível usando o que temos, oferecer o melhor, mesmo que diante de limitações. Se fizermos o que podemos, conscientes disso, apenas ouvindo o outro podemos mudar uma trajetória e isso implica em produção de vida e humanização.

ANNE MANUELLE DOS SANTOS1; JOELSON FELIX DE SOUZA2; RUAAN OLIVEIRA CARVALHO3; HÉLLEN OLIVEIRA SANTOS4;LEILA CRISTINA REIS5;  LETÍCIA LIRA DA SILVA6;ANA LUIZA SANTOS NASCIMENTO7; ISIS GABRIELLY LIMA SANTANA8;  LAÍSA GABRIELLY OLIVEIRA SANTOS9; MILENA MENDES FONTES10;RANGEL BRUNO LIMA SOUSA11;

1 Enfermeiro(a), Residência Multiprofissional em Saúde da Família de Lagarto- UFS

2 Psicólogo, Residência Multiprofissional em Saúde da Família de Lagarto- UFS

3 Farmacêutico, Residência Multiprofissional em Saúde da Família de Lagarto- UFS

4 Enfermeiro(a), Residência Multiprofissional em Saúde da Família de Lagarto- UFS

5 Psicólogo, Residência Multiprofissional em Saúde da Família de Lagarto- UFS

6 Farmacêutico, Residência Multiprofissional em Saúde da Família de Lagarto- UFS

7 Enfermeiro(a), Residência Multiprofissional em Saúde da Família de Lagarto- UFS

8 Enfermeiro(a), Residência Multiprofissional em Saúde da Família de Lagarto- UFS

9 Terapeuta ocupacional, Residência Multiprofissional em Saúde da Família de Lagarto- UFS

10 Enfermeiro(a), Residência Multiprofissional em Saúde da Família de Lagarto- UFS

11 Enfermeiro(a), Residência Multiprofissional em Saúde da Família de Lagarto- UFS