Essa luz
me conduz
às trevas!
Poema: quase haicai escrito durante a experiência de um mês com conjuntivite grave, quando o sol se tornou meu pior pesadelo, e o entardecer meu maior desejo
Imagem: trabalho sobre a foto de grafite da Rua Treze de Maio (São Paulo/SP), parte do trajeto para a clínica de olhos a cada 48 horas para retirada das membranas formadas junto à retina
10 Comentários
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Por deboraligieri
Izamada.
Este mês em que convivi com a conjuntivite foi bastante intenso, tanto pela contundência dos sintomas manifestados quanto pelo longo tempo em que o problema permaneceu no meu corpo, um mês com conjuntivite parece uma vida inteira! Nesse meu tempo de convalescença oftalmológica, desenvolvi uma série de reflexões, sobre a atenção à saúde (recebi grande apoio da minha clínica geral da UBS nesse processo), sobre modelos de saúde (tentei mas não consegui fazer o acompanhamento pelo SUS, onde iniciei o atendimento, e fui parar numa clínica privada conveniada com a OAB, em que a cada visita de 48 horas era recebida por um profissional diferente), sobre vínculo (presença na UBS, e falta dele na clínica privada), e sobre necessidades em saúde. Queria mesmo fazer um post da série dos relatos da UBS Santa Cecília, mas apenas o poema foi possível neste meu momento de agenda conturbada.
Contudo, o poema não é uma síntese dessas reflexões que ainda pretendo desenvolver num post, mas uma complementação da experiência vivida através de outras sensibilidades, outros olhares, e talvez uma espécie de transformação do processo saúde/doença em processo de angústia como arte. A conjuntivite não me cegou para a vida que acontecia dentro e fora de mim, abriu olhos em outras partes do meu corpo. Acho que esse é um poemito a partir dessa luz diferente, embora um tanto quanto incômoda, que se projetou naquele momento sobre mim e sobre meu corpo.
Beijo enorme, também te amo, e a luta continua companheira!
Por Raphael
Oi Débora,
Você conseguiu fazer todo o acompanhamento pelo SUS se olhar na perspectiva sistêmica!
Não existe outro sistema de saúde para o povo brasileiro e mesmo a iniciativa privada é um braço do SUS!
Não se culpe por não ter feito todo o tratamento na Atenção Básica ou dentro da rede pública…
Somos mais que tudo seres humanos e não garotos propaganda deste ou daquele jeito de cuidar da saúde.
Como faz um micro-poema?
AbraSUS
Raphael
Por deboraligieri
Raphael querido.
Não me senti exatamente culpada, mas frustrada por não conseguir o atendimento pela UBS. Quando desconfiei que estava com conjuntivite (depois de dois dias com os olhos irritados e avermelhados, e de saber do diagnóstico de uma amiga com quem estivera) conversei com a minha clínica geral. Perguntei a ela como essas demandas espontâneas eram tratadas na nossa unidade. Ela conversou com um dos oftalmos (na minha unidade há uns 6) e disse para eu me encaminhar ao atendimento da AMA, na mesma unidade (é uma UBS integrada). Mas quando me dirigi ao setor de agendamento, me informaram que lá não atendiam urgências, mesmo o oftalmo tendo espaço na agenda para me examinar. Só consegui ser atendida porque a Clínica Geral conversou com a diretora da AMA e se responsabilizou por mim. Na consulta com o oftalmologista (em que a clínica esteve presente por alguns instantes pois queria saber da minha condição), ele me falou da frustração dele também de não conseguir atender os usuários com esse tipo de demanda: o dia de atendimento dele é nas sextas-feiras, e se a condição do usuário se complica antes da sexta seguinte, outro oftalmo não pode atendê-lo. Ele me examinou, prescreveu uma medicação, e pediu para marcarem um retorno para a semana seguinte, um feriado. Então marcaram meu retorno para alguns meses. Mas durante o fim de semana meus olhos pioraram, e na segunda pareciam que iam explodir de tão inchados. Já sabendo que não conseguiria ser atendida na UBS novamente (minha clínica geral só atende de quintas e sextas), fui para o pronto-socorro da Santa Casa, que estava (e está há algum tempo) numa situação caótica, lotado. Assim que cheguei, a enfermeira que organizava a fila me olhou e questionou “é oftalmo né?”, pois era visível a localização do meu problema de saúde. O recepcionista que me atendeu no setor de cadastro disse o mesmo “é oftalmo né?”. Apesar disso, me encaminharam para atendimento por clínico geral alegando que não era possível ser atendida diretamente por um oftalmo, que o procedimento obrigava eu passar primeiro pelo clínico geral, e depois ser encaminhada ao especialista. A previsão de espera para passar com o clínico era de 6 horas, aguardando numa sala onde os acompanhantes não podiam permanecer em função da lotação. Nesse momento, decidimos procurar o serviço privado, fomos para um pronto-socorro oftalmológico e lá chegando fui atendida em 15 minutos. Uma semana depois meus olhos começaram a sangrar, e retornei ao pronto-socorro privado. Uma oftalmo diferente me atendeu e retirou as membranas, e a partir daí voltei lá a cada 48 horas por mais uma semana e meia, até cessar a formação de membranas. Em nenhuma das vezes fui atendida pelo mesmo profissional, e tive duas prescrições diferentes de colírios, e prognósticos também diferentes. O mesmo aconteceu com o Patrício, que pegou a conjuntivite de mim (e se percebia que outras pessoas na clínica também estavam com conjuntivite).
Dessa experiência dá pra tirar inúmeras reflexões e conclusões, uma delas é que eu poderia ser atendida na minha UBS, mas o apego a procedimentos burocráticos e a concepções equivocadas sobre a atenção básica impediram que eu recebesse os cuidados necessários. E na clínica privada, embora eu tenha conseguido o atendimento, fui tratada como uma conjuntivite, e não como uma pessoa integral. Enfim, coisas de quem ficou um mês dentro de casa fugindo do sol e das pessoas (detestei não poder abraçar!) e com a visão turvada por mais de duas semanas…
Quanto ao micropoema, é um nome que inventei, até onde sei não existe formalmente. Pensei em escrever um haicai (este sim, com regras próprias: primeiro e terceiro versos com 5 sílabas poéticas e o segundo com 7 sílabas poéticas), mas o poema veio assim mais conciso, e esticando pra virar um haicai não ficaria bom. Então ficou assim, um micropoema, um quase haicai!
Beijos,
Débora
Por Raphael
Poxa Débora,
O poema é micro, mas a história por trás dele é bem grande… eu já tinha me esquecido de como algumas coisas podem ser burocráticas em cidades do tamanho de São Paulo…
Grandes potências… trazem grandes problemas e vice-versa!
Fico feliz que ao final você e o Patrício tenham conseguido o atendimento correto e já estejam bem.
Se não existe métrica que defina o micro-poema, você acabou de inventar e isso me deu aqui umas ideias para um novo projeto, que se vingar depois te conto!
AbraSUS
Raphael
Querida Débora,
Não sabia que você havia passado por essa experiência desagradável. Só quem passa sabe a intensidade do desconforto. Aqui no Piaui recentemente tivemos um surto em vários municípios. O meu filho e vários amigos foram acometidos. Fico cá imaginando como uma doença milenar e que anualmente ressurge de forma epidêmica ainda não inventaram uma vacina para o combate.
Desejo-lhe uma ótima recuperação companheira de lutas em defesa do SUS!
Bjs!
Emília
Por deboraligieri
Obrigada pelo carinho e acolhimento, Emiliamada! Felizmente, já estamos (Patrício pegou também) completamente recuperados desde meados de fevereiro.
Mas o que fico imaginando mesmo, além do porquê da inexistência de uma vacina, é o motivo da ausência de informações sobre esse que parecia ser um surto se alastrando desde o fim do ano passado por SP, RJ, GO (principalmente na cidade de Caldas Novas – https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2018/01/16/interna_cidadesdf,653518/caldas-novas-sofre-surto-de-conjuntivite-saiba-como-se-prevenir.shtml) e BA, como soube na clínica onde estava sendo tratada. E também no PI, como você nos informa por aqui. Anotaram inclusive os nossos nomes para enviar à vigilância epidemiológica. E onde estavam os avisos e orientações sobre os cuidados para prevenir e tratar a doença? Não estavam.
Beijos,
Débora
Por patrinutri
Querida Debie,
Não me surpreendo com seu poema, pois conheço muito bem sua capacidade de lidar com as adversidades da saúde buscando a arte com as palavras para promover cura, buscar caminhos de entendimento e de esperança.
Tenho trabalhado muito com a humanizaçõ neste sentido para que a spessoas possam olhar para seus corpos durante as doenças e deixar florecer neles a cura pela dimensão saudável que lhes resta.
Que bom que você conseguiu tranformar a dor e o lado ruim da experiência em arte. Ganhamos todos, você e quem está a seu redor e, em especial, o SUS.
E em tempos em propostas absurdas para devastar o SUS esta sua experI~encia entre o público e o privado muito reforça nossas crenças em que o SUS universal, integral e equanime é, e sempre será, o melhor caminho da saúde.
Bjs Pat
Por deboraligieri
Pat linda.
Achei bem bonita essa ideia de “cura pela dimensão saudável” como uma forma de integração dos paradoxos que habitam em nós, como bem colocou a Iza. No momento em que escrevi o poema, estava buscando algum suporte para a minha sanidade mental, essa conjuntivite de um mês me enlouqueceu um pouco. Nesse caso, o poema da minha loucura se tornou a dimensão saudável a partir da qual consegui enxergar uma luz para além do desespero.
Num momento de propostas malucas para o SUS e para a saúde no Brasil, talvez possamos seguir este mesmo caminho: encontrar a dimensão saudável da disputa política, e lutar com todas as forças em defesa da manutenção da saúde como direito de todo cidadão brasileiro.
Beijos,
Debie
Por patrinutri
Adorei ver a luta como uma dimensão saudável!
Bjs Pat
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Luz paradoxal. É prenúncio de trevas.
Você, como artista cheia de facetas que é, nos mostra outras realidades. Aquelas nem sempre vistas por quem não se deixa perder pela cidade, mas sempre entrevistas pelos olhos das crianças e dos artistas.
Te amo, querida companheira.