Diabetes e o medo da morte (ou da vida?)
A morte é uma ideia que cedo ou tarde merece nossa atenção, tenha a pessoa uma doença crônica ou não. Mas para pessoas com diabetes, a morte e seus contornos circunstanciais vem explicada em regras de autocuidado com detalhes, pouco importando a idade dx diabéticx.
Na minha primeira consulta com um endocrinologista após o diagnóstico, aos 09 anos de idade, ante o resultado de um dextro que apontou a glicemia de 399 mg/dl naquele momento, o médico disse à minha mãe que eu estava morrendo, e que eu precisava de cuidados imediatos – compra de insulina e aplicação domiciliar. Essa foi a minha primeira sentença de morte em vida, proferida pelo médico.
Fez-se um silêncio dentro de mim, como uma espécie de desligamento do corpo para processamento da ideia. Não me recordo como saí do consultório ou o que aconteceu até o momento da minha primeira injeção de insulina. Acho que até então, a morte para mim era algo pertinente a pessoas mais velhas. Saber que uma criança poderia também ter a vida encerrada foi um grande estranhamento (e pensar que seria eu essa criança era assustador). Segundo a minha irmã, com quem relembrei o episódio dia desses, o pior mesmo é que eu não estava (clinicamente) morrendo.
Embora o caminho natural de todxs nós seja a morte um dia, as orientações sobre as complicações do diabetes sempre me passaram a ideia de que meu trajeto seria um pouco mais curto do que o das demais pessoas. Costumo dizer que criança que não obedece aos pais teme o castigo, mas criança com diabetes que não segue as regras terapêuticas sabe que seu "castigo" é a morte.
O falecimento precoce do tio de uma amiga por complicações múltiplas do diabetes tipo 1 (cegueira, insuficiência renal, problemas cardiovasculares e neuropatia aos 30 anos de idade) me deixou bastante impressionada. Desde que soube do fato, comecei a acreditar que também a minha vida se encerraria por volta dos 30 anos de idade. Essa foi a minha segunda sentença de morte em vida, proferida pelo meu medo da vida com diabetes.
Mas minha vida não se encerrou quando o médico me matou aos 09 anos, tive catarata por descompensação da glicemia e pela tendência genética (minha avó e meu avô paterno também tiveram catarata nos olhos) aos 10 anos. Também não se encerrou quando meu medo me matou perto dos 30 anos de idade, mas tive retinopatia em função de extremas oscilações glicêmicas.
Comecei então a perceber que talvez não fosse a morte em si a ideia que me assustava, mas como ela ocorreria – de forma lenta e debilitando meu corpo progressivamente, sem que eu pudesse ter qualquer controle sobre isso. Até então havia seguido todas as orientações médicas, e nenhuma delas havia impedido o aparecimento da catarata e da retinopatia. Não à toa, entre os 20 e 30 anos eu tinha enorme fascínio por histórias de vampiros – mortos-vivos que se alimentam de sangue. Era como eu me sentia: uma pessoa falecida há tempos, vivendo às custas de derramamento do (próprio) sangue.
Quando os meus 30 anos foram se aproximando, comecei a sentir uma sensação agonizante de impotência diante da minha vida que se esvaía no sangue da ponta do dedo diuturnamente. Decidi então que se eu não podia ter controle sobre o que acontecia na minha vida, poderia então tentar controlar o evento morte – antecipando-a ainda mais. Essa foi a minha terceira sentença de morte em vida, proferida pelo meu inconformismo com a falta de controle do meu corpo. Segui a ideologia do carpe diem por um tempo, aguardando o encerramento da minha vida de forma bastante festiva, no melhor estilo sexo, drogas e rock'n roll.
Mas completei 30 anos e não morri (mais uma vez). Conheci meu companheiro, cheio de vida e de experiências interessantes para compartilhar. Comecei então a reconstruir o caminho da minha vida a partir de cada passo diário. Perdi o gosto pelas histórias de vampiros, e me interessei mais pela minha própria vida em sua plenitude, e percebi que eu também tinha muitas experiências interessantes para compartilhar. Mas, para tanto, tive que olhar a morte de frente. E mirando os olhos da morte, enxerguei as limitações físicas do diabetes na minha vida.
Comecei a trabalhar em um escritório que defendia os direitos de aposentados da Fepasa (2). Processos longos, e cujos benefícios pecuniários, na maior parte das vezes, eram recebidos pelos herdeiros dxs ferroviárixs. Diariamente eu manuseava certidões de óbitos. Sempre reparava na causa da morte, e quando havia menção ao diabetes, verificava com quantos anos havia falecido a pessoa: nenhum delxs com menos de 60 (havia até com 89 anos). Decididamente eu viveria mais! Se aquelas pessoas sobreviveram com a tecnologia farmacêutica e com menos informações sobre diabetes, comecei a pensar que eu, que dispunha em abundância de um e de outro, tinha grandes chances de um dia ser também uma sexagenária.
Atualmente me aproximo dos 40 (em 30 de dezembro completo 38 anos de idade, 29 deles com diabetes). No final do ano passado fui diagnosticada com neuropatia periférica, mas dessa vez não morri. Fiquei sim assustada com a possibilidade de perder o movimento das pernas e de sofrer algum machucado sério nos pés e, não percebendo, perdê-los numa amputação. Mas procuro evitar as dores e a progressão das lesões nervosas fazendo exercícios de musculação sem impacto, e tentando evitar o cigarro. Sempre que lembramos, meu companheiro confere se há algum machucado em meus pés.
Nessa época do ano, costumo refletir sobre o que se passou na minha vida durante os últimos 12 meses. Penso também no que aprendi durante a minha vida, no que posso (tentar) controlar para ter uma vida melhor, e sobreviver à angústia de conviver com o que não posso, e identificar aí justamente a possibilidade de grandes e gratas surpresas. O inesperado é ao mesmo tempo assustador e maravilhoso! Nunca tive vontade de fazer musculação, mas a neuropatia me obrigou à prática, e depois de 6 meses já começo a sentir diferenças para melhor na minha saúde e bem-estar do meu corpo.
Mas nessa época do ano também morro um pouquinho, porque enfrentar o medo de viver com as complicações do diabetes me suga um pouco a vida, ainda que por alguns instantes. Por isso não me agradam muito as felicitações de aniversário: porque, por vezes, me parecem novas sentenças de morte, com o acréscimo de anos com diabetes à redução da expectativa de vida e aumento das chances de complicações.
Por outro lado, cada momento vivido com a minha família e com as pessoas que amo e que comigo constroem uma vida melhor para todxs, mais justa e mais digna, com doença crônica ou não, com ou sem medo da morte – ou da vida! – ressuscita em mim o gosto pelo futuro, a vontade de prosseguir, de navegar por este mundo, ainda que não seja preciso.
Referências:
(1) Cadernos de Atenção Básica nº 16 do Ministério da Saúde – Diabetes Mellitus, 2006, pág. 07 – https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/diabetes_mellitus.PDF
(2) A Ferrovia Paulista S.A. (Fepasa) foi uma empresa ferroviária brasileira que pertencia ao Estado de São Paulo, embora sua malha se estendesse por Minas Gerais até Araguari, tendo também um ramal que terminava na cidade de Sengés, no Paraná. Foi extinta ao ser incorporada à Rede Ferroviária Federal no dia 29 de maio de 1998 – https://pt.wikipedia.org/wiki/Ferrovia_Paulista_S.A.
Por Emilia Alves de Sousa
Oi Débora,
O teu relato me comoveu bastante, e me fez lembrar duas parentas diabéticas, que assim como você, sabem lidar muito bem com a doença e estão superando as espectativas de vida. Uma delas tem 86 anos, já teve uma perna amputada, e ainda administra um comércio de frutas e verduras, com uma vitalidade invejável. Portanto, não fique tão apreensiva, apenas se cuide!
"A Diabetes não é o fim do mundo , mas sim um novo mundo a ser descoberto."
APDJ – Associação Pernambucana de Diabetes
Um beijão com votos de uma vida bem longa, viu querida?
Emília