Rede de Atenção Psicossocial: existem três instituições que são fundamentais para a reprodução de uma lógica que vai conter corpos e subjetividades, que são o isolamento, o controle dos corpos e subjetividade e a violência. Dessa forma, como podemos perceber, o manicômio faz parte da discussão de reprodução da violência, tanto no quesito de isolar, internar, obrigar ao uso de medicamentos, e controlar os corpos, quanto na questão da reprodução de violência.
Além disso, conforme mencionado, a concepção de loucura e de manicômio é forjada dentro de uma lógica racista e herdada da cultura escravocrata. O conceito de cidadania, também, é forjado dentro do conceito de homem universal, que seria o homem branco, masculino, heterossexual, europeu e tudo que foge disso, seria considerado loucura, porque tudo que sai fora de um padrão deve ser institucionalizado, controlado e isolado.
No final dos anos 80, houve o primeiro movimento de luta antimanicomial, em que vários estudantes e representantes apoiadores do fim dos manicômios participaram. Dessa forma, a partir do Encontro de Bauru, surgiu a luta antimanicomial, com o lema ‘’Por uma sociedade sem manicômios’’. Na carta de Bauru, há a indicação que a luta por uma sociedade sem manicômios é antirracista, anticapitalista, contra lgbtfobia, contra o isolamento, dentre outros adendos.
Visto isso, a lógica do manicômio que vai ser reproduzida ainda hoje com certos avanços dentro da perspectiva da lógica antimanicomial, contando com avanços na prestação de serviços, a implantação do centro de atenção psicossocial, a implantação de residências terapêuticas, uma aproximação com o campo das drogas, porque até então era seletivo para determinadas patologias e determinadas demandas.
No momento em que a Reforma Psiquiátrica sinaliza elementos da Reforma Sanitária do SUS, desde atendimento até estrutura, se entra na parte de modelos de atenção e se entra no contexto político da democratização e, no final dos anos 70 para os anos 80, se torna o SUS e o Sistema Público de Assistência Social se tornam uma política de estado. Dessa forma, inicia-se, então, a política de saúde mental e depois o programa de atenção para álcool e outras drogas por dentro da saúde mental.
Há princípios que são amplos para todos os serviços das redes de atendimento psicossocial, como a discussão do respeito aos direitos humanos, a discussão do cuidado e da liberdade, a discussão do cuidado integral, que também são princípios base do SUS, contando também com as discussões das estratégias de cuidado, a produção de autonomia, as discussões de conceber e discutir com o usuário como protagonista, a formação política para esses processos, as estratégias de educação permanente, dentre outros.
Dentro dessa discussão, os centros de atenção psicossocial devem ter adaptabilidade, flexibilidade, focando nas demandas dos usuários e não dos trabalhadores, porque na constituição da equipe isso é revelado, pois o serviço tem que chegar ao usuário e não o usuário chegar ao serviço, principalmente de usuários em situação de rua. Dentro disso, também podemos ter, dentro das unidades de saúde, o SAMU, portarias que vão fazer a implantação de comunidades terapêuticas, e diversas concepções dentro das redes de atenção psicossocial.
Como se não bastasse, quando falamos a respeito da luta antimanicomial, existem pessoas que defendem uma visão conservadora, que tem a ver com a disputa do próprio estado no interior da construção da política pública, que implica numa projeto societário mais amplo. Para diferenciarmos, também, a reforma psiquiátrica de luta antimanicomial, podemos dizer que aquela é a implementação de uma perspectiva da política pública, no sentido da reformulação da assistência em saúde mental, saindo do modelo de uma assistência psiquiátrica para uma assistência na perspectiva da atenção psicossocial. Já esta conta como um movimento social, apesar de ter influência da reforma psiquiátrica dentro dos movimentos sociais representantes dessa questão.
Assim como mencionado na live, as pessoas que estão ou estavam em manicômios podem ir para serviços residenciais terapêuticos, financiadas pelo poder público, que são pontos chave no processo de desinstitucionalização, palavra chave da reforma psiquiátrica. A desinstitucionalização é basicamente o desmonte de forma responsável de pessoas que passaram anos nos hospitais psiquiátricos, porque o hospital ao isolar e tratar daquela forma, tirava das pessoas o prazer, a identidade, a possibilidade de escolha, ocupando os lugares de moradia, vínculos, prazer e lazer e afetos ou falta de afetos, se colocando como base da vida social das pessoas que foram para lá. Não é apenas voltar para casa após essa institucionalização, o processo de desinstitucionalização deve ser efetuado para isso.
Por Rafael da Rosa Balbueno
Oi Júlia. São muitas as questões que tu coloca aqui. E várias delas me suscitam várias reflexões. Mas uma das coisas que mais me chama a atenção é o trecho no qual tu diz que a luta por uma sociedade sem manicômios é indissociável de uma luta antirracista, anti-lgbtfobia e anticapitalista. Essa relação é inquestionável embora muitas vezes não seja evidente. O capitalismo é extremamente hábil em padronizar o comportamento humano, normalmente a partir de valores ligados à produtividade, ao trabalho e à ordem (ordem específica do sistema em questão). E o curioso é que aprendemos a crer que o capitalismo é o sistema das liberdades individuais contra a opressão estadista do socialismo (o que de fato procede se pegarmos exemplos como a perseguição à comunidade LGBT em Cuba). Agora no Brasil conseguimos a façanha de ter um governo que se declara liberal na economia e radicalmente conservador nos costumes. Ou seja, o estado deve se eximir de regular tudo, com exceção dos corpos, das subjetividades, dos prazeres e de tudo que possa ser visto como fora do padrão. Não por acaso com esse governo voltamos a ouvir rumores sobre manicômios. Mas a história aponta o caminho. Da mesma maneira que tu fala da relação entre a luta antimanicomial e a redemocratização ao fim da ditadura civil militar no Brasil, podemos falar de uma nova era de resistências, que passam pela defesa dos direitos humanos, passam pelo fim dos manicômios, mas também vão muito além disso.