Relato de Experiência: IV Semana da Luta Antimanicomial da UEMG

Banner informativo da exposição “Ainda Deliramos Aqui: Vozes e História da Luta Antimanicomial”, da IV Semana da Luta Antimanicomial da UEMG.
Imagem de Sander Ferreira, 2025.
Participar da IV Semana da Luta Antimanicomial da Universidade do Estado de Minas Gerais, Unidade Divinópolis, em maio de 2025, foi, para mim, uma experiência provocadora de muitas reflexões. Sob o lema “A vida presta: vamos sorrir sim, a caminho da liberdade!”, uma homenagem a Eunice Paiva, o evento propiciou um espaço de discussões e práticas que buscaram preservar memórias, fortalecer a resistência e celebrar a dignidade humana frente a um passado que ainda nos atravessa com suas marcas de exclusão e violação de direitos.
Esse lema também evoca as lutas travadas no período da ditadura militar no Brasil, em que a repressão, o silenciamento e a violência eram praticados pelo Estado. Durante a ditadura, muitos foram institucionalizados sob a justificativa de tratamento psiquiátrico, mas com fins políticos.
Entre as atividades das quais participei, destaco a exposição “Ainda deliramos aqui: vozes e histórias da luta antimanicomial”, que apresentou uma linha do tempo da história da saúde mental no Brasil, destacando as conquistas da Reforma Psiquiátrica, sem apagar as memórias do que, cruelmente, foi o período dos manicômios. A exposição reuniu imagens históricas, nomes importantes para a luta, indicações de livros, documentários, filmes e podcasts.
Durante a roda de abertura da exposição, participaram as professoras Ana Rita Trajano, do curso de Psicologia, Flávia Lemos, do curso de História, o professor Ronaldo Duarte, do curso de Serviço Social, e dois estudantes da UEMG que contribuíram na construção da exposição. Os discentes relataram as dificuldades e preocupações encontradas no processo, especialmente em relação à escolha e organização das informações que seriam expostas, mas também compartilharam a importância desse trabalho, tanto como aprendizado acadêmico quanto como ação de extensão universitária que leva esse conhecimento à comunidade. A exposição, que integrou a 23ª Semana Nacional de Museus, não foi apenas uma forma de informar, mas de guardar a memória, ampliar o debate e fortalecer a luta antimanicomial.
Nas falas dos professores, ficou evidente a importância da memória como instrumento político. A professora Ana Rita destacou a frase: “Não esquecer, para que nunca mais aconteça”, que reforça a necessidade de revisitar o passado para pensar as práticas do presente e do futuro, evitando que os erros cometidos anteriormente se repitam.
Durante a roda de conversa, também foi discutido o impacto do modelo manicomial e biomédico na redução do sujeito a um diagnóstico, num processo que ignora sua singularidade e perpetua práticas de exclusão. Esse ponto dialoga com as críticas de Michel Foucault, para quem a loucura foi sendo construída social e historicamente como um desvio a ser controlado e disciplinado. Segundo Foucault, o manicômio é mais do que um espaço físico: é um dispositivo de poder que pretende disciplinar corpos e subjetividades sob a justificativa do saber científico. Essa reflexão me remete à leitura de O Alienista. Na obra, o médico Simão Bacamarte funda a Casa Verde e, sob a justificativa da ciência, passa a internar todos que fogem da normalidade. A loucura, ali, torna-se um pretexto para o controle e a exclusão, escancarando o perigo de algo que se impõe sem escuta, diálogo e ética. A crítica de Machado de Assis é irônica e, ainda hoje, atual diante da contínua patologização e medicalização da vida.
O professor Ronaldo também trouxe à roda uma reflexão importante sobre o uso do termo “luta” no contexto da saúde mental, destacando que ela não deve ser compreendida em um sentido bélico, mas como resistência ativa e coletiva; uma luta por cuidado, dignidade e respeito às subjetividades.
Não poderia deixar de citar o documentário Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex, que denuncia e mantém viva na memória as atrocidades cometidas no Hospital Colônia de Barbacena, onde mais de 60 mil pessoas morreram em condições desumanas. Em diálogo a ele, o documentário Os Manicômios do Século XXI, produzido pelo estudante do curso de Psicologia Lucas Gomes, nos lembra que o horror não está apenas no passado: apesar da Reforma Psiquiátrica e da criação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), práticas manicomiais ainda persistem em diversos serviços de saúde mental, quando não há espaço para escuta, vínculo e práticas não medicalizantes, o que reforça a importância de se repensar criticamente a formação dos profissionais, ressaltando a necessidade de preparar equipes para o trabalho transdisciplinar em saúde mental, com conhecimento aprofundado das políticas públicas de atenção psicossocial, e a necessidade de vigilância constante para assegurar o cuidado comprometido com a ética. A crítica feita pelos documentários mostra que a luta antimanicomial não é uma conquista concluída, mas está em constante processo de construção.
Além das atividades que foram aqui relatadas, a IV Semana da Luta Antimanicomial da UEMG promoveu ainda minicursos, exibição e debate de filme e documentário, e culminou no tradicional desfile em Belo Horizonte, com a escola de samba Liberdade Ainda que Tan Tan. Mais do que uma semana de atividades, a luta antimanicomial não se encerra nem deve ser lembrada somente no dia 18 de maio. A luta nos chama a lembrar, resistir e reinventar cotidianamente. Como nos lembra o lema da semana — “A vida presta: vamos sorrir sim, a caminho da liberdade!” —, que possamos sorrir, mas com a consciência da dor que já foi e ainda é vivenciada por tantas pessoas em sofrimento mental e do compromisso coletivo que temos com todas as vidas.
Autoria: Rúbia Lima Brandão, estudante do 2º período do curso de Psicologia da UEMG, Unidade Divinópolis, sob orientação da professora Ana Rita Castro Trajano.
Por Ana Rita Trajano
Que linda, Rúbia, publicou o Relato , tão bem escrito por você!! Apenas mais uma revisão: ao invés de “sob orientação” , melhor dizer: “Orientadora: Professora Ana Rita Castro Trajano”
E a luta continua! Ditadura e Manicômios Nunca Mais!!