Resenha crítica: O PROCESSO DE ACOMPANHAMENTO PSICOSSOCIAL NO CONTEXTO DA BOATE KISS

18 votos

Resenha crítica: CABRAL, K. V. et al. JUSTIÇA E VERDADE: O PROCESSO DE ACOMPANHAMENTO PSICOSSOCIAL DOS FAMILIARES E SOBREVIVENTES DO INCÊNDIO DA BOATE KISS. Ebook 30 anos da Luta Antimacomial, 2022.

A obra, organizada por Karine Vieira Cabral e colaboradores, intitulada “Justiça e Verdade: O Processo de Acompanhamento Psicossocial dos Familiares e Sobreviventes do Incêndio da Boate Kiss” traz um relato sobre a prestação de acolhimento psicossocial, em virtude da ocorrência de um incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria (RS), no ano de 2013. A referida tragédia deixou 242 mortos e mais de 600 sobreviventes. Entretanto, os marcos psicológico, social e físico deixado nas vítimas perdura ainda hoje, após 10 anos da tragédia. Não obstante, os danos causados também reverberam na população, especialmente santa-mariense, que ainda é acometida pelas lembranças daquela noite.

No discorrer do texto, a autora traz uma ótica interdisciplinar e multiprofissional do que ocorreu no dia 27 de janeiro de 2013, especialmente no que concerne à atuação de diferentes profissionais, no acolhimento de familiares e sobreviventes da tragédia. O livro traz relatos de psicólogos, assistentes sociais e diferentes outros agentes que atuaram no atendimento psicossocial durante o acontecido. É visto que, em um processo desastroso tal qual o ocorrido, a existência de uma rede de apoio efetiva e que auxilie nas demandas emergentes é essencial. Nesse sentido, buscou-se, nos dias que sucederam a tragédia da Boate Kiss, construir esse apoio para as pessoas afetadas.

Foi instaurado, portanto, um serviço de acolhimento 24h, além de estratégias para administrar a demanda psicossocial que vinha surgindo no contexto – grupos terapêuticos, espaços de escuta, estruturas de capacitação e supervisão aos profissionais envolvidos e diferentes ferramentas para tentar manejar o sofrimento em massa que a região expurgava. Durante o relato, é possível verificar que, a todo momento, a equipe de profissionais era preocupada em externalizar o sofrimento das vítimas, auxiliar no processo de luto, validando o sofrimento coletivo e garantindo os direitos dos afetados. Pode-se verificar tais fatos em momentos como a passeata das velas e outras estratégias utilizadas para acolher a população.

Entendo que, na construção dessas vias de acolhimento, a visão da equipe foi integradora, humanizada e acolhedora. Houve a preocupação do bem-estar da população e da possibilidade de enfrentar um luto de forma adequada, ainda que coletivamente. O acolhimento psicossocial prestado no contexto da Boate Kiss se tornou referência no manejo de conflitos e é reconhecido por diferentes profissionais até hoje. Cabe-se, portanto, uma análise acerca da possibilidade de expandir essa lógica humanizadora e acolhedora para outros espaços, não necessariamente em contextos conflitantes.

É necessário ponderar que, junto a prática antimanicominal, tal conduta deve ser expandida à diferentes abordagens de atuação, não sendo restrita à atuação dos psicólogos ou de momentos de acolhimento psicossocial. Isto é, em serviços de saúde, de educação e em âmbitos político, econômico e sociais. É notável que a tragédia da Boate Kiss, junto aos seus desdobramentos, trouxe olhares diferenciados e humanizadores para as formas como atravessamos os sujeitos, não apenas na prática profissional, mas nas vivências de forma geral.