Sou psicólogo, 57 anos, residente em Brasília, e tenho atuado na Rede EBSERH, em capacitações ligadas ao tema das competências socioemocionais e humanização. Gostaria de contribuir com uma vivência pessoal que tive ao acompanhar meu filho numa UTI Neo Natal. Ele se chama João Gabriel, e hoje está com 12 anos, um garotão forte e bacana. Coloco a perspectiva do acompanhante, diante de algo que percebe no seu amado, e não sabe bem o que é, diante de mil equipamentos plugados, com seus sons, chiados, fluidos e medos que deles emanam. É uma vivência de 12 anos atrás. Sei que muita coisa mudou nas UTIS Neo-Natal ,espalhadas pelo Brasil, e na humanização da saúde, como um todo. Mas, creio que seja um texto que nos conduz a uma reflexão, sempre atual e necessária, sobre a compreensão da perspectiva do cidadão que é atendido, e de seus acompanhantes – não acostumados com os procedimentos assistenciais e jargões médicos, nem com a evolução dos quadros. Então, é sempre bom ler algo, da perspectiva de quem está do “outro lado do balcão”, para exercitar a Empatia. Afinal, o primeiro medicamento administrado a um paciente é o próprio afeto de quem lhe atende.
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Meu primeiro contato com a UTI Neonatal foi com o nascimento do João Gabriel, em 06.07.2009.
Ele veio ao mundo com 30 semanas, pesando um quilo e pouco. Ainda na sala de cirurgia, após a cesárea, fui chamado pela pediatra para “visitar” o João Gabriel na UTI Neonatal, mais conhecida como UTIN.
Minha primeira sensação foi de pânico, eu iria visitá-lo só, sem a minha esposa.
A médica me disse que tudo corria bem com nosso filho. Eu fixava o olhar em cada parte de seu corpo, vendo se tinha nascido perfeito. Deparei-me com um sexto dedo no seu pezinho e fiquei atônito.
A partir dali, não ouvi mais nada, esperando um diagnóstico de qualquer problema cromossômico. Afinal, fomos pais aos 44 anos, e ela aos 43.
A médica ignorava minha expressão de pânico e não deu maiores informações sobre aquele dedo extra, dizendo vagamente “alguns bebês nascem assim, não é nada”.
Voltei para a sala de recuperação do pós-operatório e minha esposa sacou, pela minha expressão, que algo houvera ocorrido.
Contei pra ela, procurando-a acalmá-la. Ela logo queria saber a extensão do problema, se ele ouvia, se via, se movimentava os membros, se tinha outras seqüelas.
Aos poucos fui trocando de assunto, falando do quanto ele tinha sido esperto no teste de apgar, etc.
Mais uma vez estávamos sós, tendo que lidar com medos, frustrações e o sofrer de uma família que não pode acalentar seu filho ao nascer.
Primeiro desafio dos pais de UTIN: Não ficar com o filho.
Para nós foi muito dolorido não poder pegá-lo no colo, alimentar, dar banho, vestir as roupinhas, fazer a festa do “cachimbo”, convidar os amigos para celebrarem… Tudo fica envolto em silêncio, ansiedade, culpa e medo.
As lembrancinhas, os presentinhos, roupinhas, as comidas e licores, vão sendo esquecidos num cantinho qualquer, sem muita atenção. Perde o sentido, o foco.
Não é humano, aliás, não é animal.
Sei que é necessário, mas,psicologicamente, uma brutalidade. As UTINs deveriam ter sistema de web-câmera para que os pais pudessem, ao menos, ver seus filhos. Ou um sistema de visitas mais intensivo, nos primeiros dias. As visitas são limitadas a duas vezes por dia, em períodos de 60 e 90 minutos.
Tudo ali é novidade: os produtos de assepsia, o jaleco, os sons, o ritmo, a forma com a qual não se deve olhar para outros bebês.
Vamos aprendendo tudo numa velocidade enorme. As siglas IG, RN, Saturação, tudo estranho e num dialeto diferente.
Ao voltar pra casa, deixando minha esposa com minha sogra no apartamento do hospital, procurei ajuda no Google e descobri que o sexto dedo trata-se de uma anomalia cromossômica leve, chamada de Polidactia. E que é operável, tão logo a criança cresça, não carregando consigo nenhum outro tipo de seqüelas.
Três dias após o nascimento.
Cheguei ao hospital e estávamos aflitos por notícias de nosso filho. O horário de visitas da manhã só iniciaria às 11h00min. Queríamos saber como ele passara a noite.
Infelizmente, ninguém ligou para nosso quarto, prestando estas informações. Aí tomei coragem e liguei para a UTIN.
Descobri que ele teve dificuldades respiratórias e tinha sido entubado.
No horário previsto para a visita levei minha esposa, na cadeira de rodas, para a UTIN. Ela tinha dificuldades para andar e houvera passado uma noite horrível com muito sangramento e pressão alta.
Entramos naquele ambiente e só tínhamos olhos para nosso filho. Ficamos aqueles 60 minutos em silêncio, acariciando o seu corpo pelas janelinhas da incubadora. Ninguém se aproximou da gente. Nenhuma informação.
Cris segurava-se em pé. Embora cansada e com pressão alta, ninguém disponibilizou uma cadeira para ela se sentar.
Ficamos em estado de choque, ao ver nosso filho com tantos sensores sobre seu corpo, cateteres, sondas, aparelho de oxigênio, monitores cardíacos…
Aquela sinfonia é dramática, são alertas sonoros e luminosos, que não sabemos o que significam.
Numa dessas ocasiões, quando um alerta soava estridente, uma enfermeira aproximou-se, abriu a incubadora, fez uma massagem no seu peito, fechou a incubadora e saiu dizendo “eles às vezes esquecem-se de respirar”. Pronto, aí que ficamos nervosos mesmo.
À tarde e durante os próximos três dias, repetiu-se a mesma cena e a mesma falta de informações.
Os profissionais da UTIN não conseguem perceber que também estamos naquela incubadora. Que também estamos na UTIN. Que nenhum pai ou mãe fica feliz em vez seu filho numa UTI, mesmo sabendo que ele está sendo bem tratado.
O que todo pai e mãe querem, é ver seu filho em casa, no seu lar.
A estrutura de uma UTIN não é preparada para acolher esta demanda de atenção dos pais aflitos e deprimidos por não poderem ajudar seus filhos. Ela não é nada humanizada.
As pessoas que ali trabalham estão mais preocupadas em preencherem formulários e as tabelas nos seus terminais de computadores, realizarem procedimentos quase rotineiros, do que interagirem com os pais. Somos quase vistos como “intrusos”.
Segundo desafio dos pais de UTIN: Ser notado.
Imaginamos que ao chegar à UTIN os técnicos diriam: “chegaram os pais do João Gabriel”. Achamos que fariam festa, que viriam nos cumprimentar.
Acontece que eles cuidam de outros tantos bebês e não têm tempo para este tipo de amenidades.
A UTIN funciona como uma linha de montagem, cada funcionário é responsável por uma tarefa. Mas, a tarefa principal, dar um sentido de família àquela criança, ninguém assume. Talvez para não gerar vínculos, ou até para não criar falsas expectativas. Não sei…
Só sei que fica uma 2ª dica: metam a boca no trombone, se façam ser notados. Sei que é difícil.
Eu sei que não é fácil. Estamos tão fragilizados que não temos energia para novos embates. E depois, temos medo dos profissionais sentirem-se incomodados e descontarem nos nossos filhos, ou seja, ficamos reféns da situação.
Mas, a dica é justamente o oposto. Procure ajuda. Chame o médico de plantão para conversar. Você tem direito a esclarecimentos sobre seu filho. Até o Código da Infância e Juventude garante isto, até mães e pais de jovens apenados têm direito a informação sobre seus filhos; imagine sobre os bebês em tratamento.
Num desses primeiros dias, na visita da tarde, minha esposa foi impedida de visitar nosso filho. A atendente disse que ela não podia entrar naquele momento, pois “estavam fazendo um procedimento com nosso filho”. Que ela deveria aguardar. Aqueles foram os 40 minutos mais sofridos para uma mãe. Qual era o procedimento? O que estava acontecendo? Finalmente, ao adentrar na UTIN, ela descobriu que estavam implantando um cateter profundo chamado de “PIC”, sendo este “procedimento” muito sofrido para os pais presenciarem.
Mais uma vez ficamos calados, não nos fizemos notar.
Chegando ao término da primeira semana de nascimento.
Chegamos pra visita da manhã, nosso filho estava fazendo quatro dias de nascido. Pela primeira vez o médico de plantão fez contato conosco.
Nossa médica obstetra falou com ele a respeito de nossa falta de informação.
Dia seguinte, não era ele o plantonista e o silêncio voltou.
Mais um dia sem informação.
No outro dia, uma médica nos abordou. Ela foi super gentil, nos informou tudo, acalmou-nos.
Não me contive e falei do quanto estávamos nos sentido desamparados, sem apoio. Que minha esposa ainda estava internada no hospital com crise de hipertensão e que em todas aquelas visitas ninguém chegava com um banquinho ou cadeira e que não tínhamos nos sentido reconhecidos em nossa aflição de pais.
Ela nos disse que é uma ferrenha defensora da humanização das UTIS e que este tema é tratado nas reuniões da equipe.
No outro dia, aproximaram-se outra médica de plantão e a psicóloga da UTIN. Estavam visivelmente irritadas. Falavam que aquela era uma das melhores UTIs do país, que nosso filho estava super bem tratado. Que a falta de cadeira é geral no hospital, que é um problema do dono do hospital.
A psicóloga falou que não tinha nos procurado, pois estava dando o tempo para que elaborássemos nossa vivência e que nossa sensação de desamparo podia ser um “déficit de percepção”, pois, até então, nunca tinha escutado isto.
Aí tivemos que dizer que havíamos feito amizades com outros casais que relatavam as mesmas dificuldades.
Não precisa mais dizer que viramos motivo de murmúrios e visível antipatia: éramos o “casal da cadeira”.
Para complicar ainda mais, nesta semana, uma médica neurologista, amiga da família, ofereceu-se para fazer um teste no nosso filho. Dirigiu-se para a UTIN e foi barrada pela médica de plantão, que não autorizou seu ingresso.
Neste mesmo dia, depois de muita insistência conseguimos que, um de meus filhos visitasse seu irmão, mesmo que por breves minutos.
Ele fez toda a operação de assepsia, botou o jaleco, etc. Chegou perto do irmão e pediu para tocá-lo. A Psicóloga, a mesma do “elaborar”, disse: “melhor não”.
Não precisa dizer o quanto aquele toque seria importante para nossa família. Não precisa dizer o quanto ele ficou frustrado…
Terceiro desafio dos pais de UTI: Faça parcerias.
Não estamos sozinhos naquele ambiente. Outros pais comungam da mesma jornada, com histórias de vida parecidas. Conhecê-los nos fortalece.
Identifique os profissionais de saúde mais acessíveis, faça contato, diga o quanto precisa deles, faça perguntas.
A segunda semana de nascido.
Aprendemos a nos virar sozinhos. Buscamos informações sobre aqueles aparelhos, descobrimos sites e comunidades na web.
Descobrimos a função de cada aparelho e seus níveis de normalidade e anormalidade. Descobrimos que muitas das vezes os sons emitidos são de mau contato e não de qualquer problema.
Descobrimos que eles estão ali, plugados em nossos filhos, para dar-lhes uma melhor condição de vida. São do bem. Embora assustem, eles são imprescindíveis à manutenção da vida.
Ficamos “expert’, passamos a trocar informações com outros pais e a entender que a paciência é vital. Por exemplo, o ganho de peso é gradual, cada 30 gramas/dia devem ser comemoradas.
Os dias são lentos e não adianta nossa ansiedade. Os bebês têm seu próprio tempo para amadurecerem.
Descobrimos, inclusive, que cada um dos profissionais da UTIN não nos trata daquele jeito por maldade, talvez nem tenham a real compreensão de nossa necessidade de atenção. Talvez, estejam tão empenhados em salvar nossos filhos, que passamos a ser invisíveis.
Quarto desafio dos pais de UTI – Não esmorecer
Não se culpe ou vitimize. Não vai adiantar nada ficar bravo, espernear, brigar com todos. Você está frágil, cansado, aflito com a jornada que está apenas começando. Mas, lembrem-se, outros passaram por ela e saíram mais fortes.
Então, fiquem visíveis para vocês mesmo, não esqueçam de que ainda são um casal, que outros filhos precisam de vocês e que os familiares estão todos na corrente.
Não desanime ao ver o quarto do bebê sem sua presença ainda. Pense assim: ele está numa espécie de “colônia de férias”, cheio de amiguinhos.
Não se esconda, não se deprima. Lute, aja, procure ajuda, se a barra estiver pesando mais do que você suporta.
Lembre-se que seu bebê capta sua energia, então procure sempre levar uma energia boa, prá cima, otimista.
———————————–Por questões éticas, não citamos nome do hospital e médicos.
Por Sérgio Aragaki
Ricardo:
Muitíssimo importante seu relato. Traz grandes contribuições para conhecimento, reflexão e mudança de práticas nas Unidades Neonatais.
A formação ainda tem sido muito tecnicista, o que reafirma a importância da humanização da saúde.
Tenho orientado algumas mestrandas que trabalham em uma dessas unidades e elas têm feito pesquisas e colocado em prática várias ações de intervenção para mudança de vários problemas por você apontados. Em breve espero que elas compartilhem aqui suas experiências, reflexões e ações. Seguimos em rede, na defesa do SUS e da humanização das práticas em saúde.
Abraço!