SUS: o que e como fazer? – Gastão Wagner de Sousa Campos (Ciênc. saúde colet. 23 (6) • Jun 2018)
Apresentação
Esse é um texto escrito em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS).
Para sugerir estratégias políticas e organizacionais visando à consolidação e fortalecimento do SUS, trabalhei de maneira semelhante a um arquiteto. Depois de conhecer dez casas, o arquiteto inventa uma décima primeira que não existiria sem o conhecimento das dez anteriores, mas que, ao mesmo tempo, é diferente de todas aquelas utilizadas como referência. Valendo-me do conhecimento sobre reformas sociais, sistemas públicos de saúde e sobre a própria história do SUS, suas dificuldades e avanços, ousei sugerir interpretações e propostas que, na melhor hipótese, servirão como provocação para aqueles comprometidos com o direito à saúde e com a democracia.
Apresentarei cinco teses que considero essenciais para ampliação e consolidação do SUS.
1. Assegurar sustentabilidade aos espaços públicos e, portanto, ao SUS
Considero essencial pensar o SUS como política pública. A defesa da gestão pública passa por reconhecer problemas e limitações do SUS, sugerindo mudanças que fortaleçam o caráter público das políticas de saúde.
Há uma série de evidências sobre a superioridade, em efetividade e eficiência, dos sistemas públicos e universais de saúde quando comparados com modelos de mercado. Nestes há custos excessivos, desigualdade no cuidado, fragmentação de direitos, políticas de saúde focais e com acesso definido não por necessidades de saúde, mas por regras de previdência e capacidade de compra. Basta observar a diferença de gastos entre Estados Unidos (16,4% do PIB) e Reino Unido (7,11% do PIB), e compará-los com indicadores de saúde ou equivalentes, com ligeira vantagem para Reino Unido1.
No Brasil, 54% do gasto em saúde acontece no setor privado, que atende a apenas 25% da população. O SUS, exclusivamente responsável por 75% da população, além de realizar serviços voltados para toda a sociedade, conta com apenas 46% dos recursos. Seria inviável, financeira e socialmente, estender a política centrada no mercado e em seguros privados para todo o povo. Em recente relatório, o Banco Mundial2 (2017) leva a entender que o Brasil teria gasto excessivo em saúde (9,3% do PIB), sem, entretanto, assinalar que a maior parcela desse recurso se destina aos estratos mais ricos da população.
Os sistemas públicos de saúde, implementados em vários países, constituíram espaços de não mercado dentro de economias capitalistas. A sustentação destas políticas depende de vários fatores, entre eles a construção de uma cultura diferente daquela prevalente no mercado. Uma cultura que considera o desenvolvimento humano tão ou mais importante do que o crescimento econômico. Nesse sentido, o conceito de efetividade, para a perspectiva pública, deverá considerar também a inclusão social como um dos indicadores para compor a noção de que a política, os gastos públicos e a prestação de serviço têm impacto sobre o bem-estar. Igualmente, o conceito de eficiência não poderá ser calculado sem contabilizar a exclusão de pessoas em cuidado decorrente de supostas medidas “racionalizadoras” sugeridas pelo economicismo.
Nesse mesmo relatório, o Banco Mundial2 considerou a atenção hospitalar ineficiente com base em indicadores de produtividade, não considerando o conjunto de benefícios em relação ao acesso e inclusão das pessoas:
Racionalização da rede de prestação de serviços, especialmente a rede hospitalar, para atingir um melhor equilíbrio entre acesso e escala (eficiência). Mais especificamente, isso exigiria a redução do número de hospitais de pequeno porte (a maioria dos hospitais brasileiros tem menos de 50 leitos, e por volta de 80% têm menos de 100 leitos – quando o tamanho ótimo estimado varia entre 150 e 250 leitos para alcançar economias de escala) 2 .
Esse tipo de cálculo do Banco ignora o contexto de milhares de pequenos municípios e da periferia de regiões metropolitanas, desconsiderando que a solução para a maioria destes pequenos hospitais seria sua transformação em unidades mistas, integrando, no mesmo serviço, equipes de saúde da família, urgência, maternidade, procedimentos cirúrgicos de baixa complexidade, etc. Assegurando com esta transformação maior cobertura populacional com grande racionalidade assistencial e financeira. Há experiências nesse sentido já realizadas em cidades do Brasil3.
O mesmo relatório do Banco Mundial, entretanto, reconhece e aponta o uso privado do orçamento público, impostos sendo repassados diretamente a grupos empresariais e às classes de maior renda:
O setor público também gasta recursos significativos por meio de gastos tributários, principalmente para subsidiar seguros privados de saúde (0,5% do PIB). Indivíduos podem deduzir despesas com saúde das despesas tributáveis, o mesmo se aplica para pessoas jurídicas que fornecem tratamentos de saúde para os seus empregados. O governo também desonera impostos e contribuições da indústria farmacêutica e de hospitais filantrópicos2.
A sustentabilidade do SUS depende de ampliação do aporte de recursos financeiros. O financiamento do sistema não poderá ampliar o déficit público, será necessário apontar distorções no uso do orçamento, e sugerir que sejam transferidos para políticas públicas. Assim, caberia a edição de lei ou norma que proibisse a utilização destes recursos orçamentários para financiar planos privados ou empresas. Essa proibição seria uma forma de induzir setores das elites econômicas e políticas a se aproximarem do SUS, além de aumentar o aporte financeiro ao SUS sem ampliação dos gastos públicos.
Este artigo não pretende criticar cada uma das análises e recomendações do Banco Mundial, mas, sim, recusar a racionalidade reducionista – avessa às políticas sociais – que preside a construção de indicadores, análises e supostas soluções apontadas. Trata-se de uma racionalidade economicista, que não leva em conta o direito à saúde ou possíveis mudanças no modelo de gestão e de cuidado dentro do espaço público.
Este documento do Banco Mundial faz parte de um poderoso movimento político e cultural que objetiva fazer retroceder os espaços públicos, substituindo-o por processos típicos do mercado (acesso mediado pela capacidade de compra dos sujeitos e pela concorrência – sobrevivência dos mais aptos – o denominado darwinismo social). Tratar-se-ia de assegurar prioridade ao econômico em detrimento de desenvolvimento do humano e do ecológico. Na saúde, o receituário implica no enfraquecimento e redução da amplitude do SUS, tanto em relação à cobertura populacional quanto aos serviços prestados. As recomendações são insistentes e monótonas pela repetição: privatização, terceirização, parceria público-privada, descentralização com desregulação e fragmentação da rede, fim da gratuidade; enfim, uma trajetória de se produzir um SUS restrito aos muito pobres, funcionando como se fosse mercado, sem a diretriz da solidariedade e a de assegurar direitos. A grande mídia tem divulgado e recomentado, de maneira acrítica, essa linha de contrarreforma como caminho para os problemas do cuidado à saúde e das políticas sociais em geral.
Vamos planejar um SUS para todos os brasileiros.
Ao longo do século XX, pesquisadores, intelectuais, partidos de extração popular e movimentos sociais apontaram injustiças e abuso de poder mesmo quando havia crescimento econômico. Para enfrentamento desse contexto, organizaram-se lutas políticas e parlamentares pelos direitos civis, políticos e sociais. Foram elaborados os conceitos de “revolução” e de “reforma”. O primeiro sugeria a abolição do mercado e sua substituição por um novo regime econômico e social. O segundo predominou em países que construíram políticas públicas, objetivando assegurar direitos. Políticas que anulassem ou controlassem os efeitos de concentração de renda e de poder decorrentes do livre funcionamento do mercado4.
No Brasil, as classes dominantes, tendo em vista sua inapetência para enfrentar a abismal desigualdade social e política, preferiram em várias ocasiões o uso abusivo do conceito de “revolução” para nomear movimentos conservadores. As revoluções de 1930 e de 1964, efetuadas por grupos dominantes, foram apresentados como a favor do bem-estar5. Recentemente, a partir dos anos setenta do século XX, instalou-se uma disputa em torno do conceito de “reforma”: ações regressivas, centradas na desconstrução de direitos passaram a ser denominadas de reformas, quando, em realidade, são contrarreformas. O governo Temer não é reformista; ao contrário, sob o pretexto de assegurar crescimento econômico e reduzir privilégios, vem concentrando renda e poder político para os representantes do capital.
A reforma sanitária brasileira faz parte da tradição que vem lutando pela redução das desigualdades. Deste esforço, resultou o SUS.
Infelizmente, esta polaridade ideológica tem produzido uma fratura entre intelectuais, pesquisadores e gestores do SUS, portanto, dentro do próprio movimento de reforma sanitária, gerando o discurso restritivo da “cobertura universal”6.
Reforma da Reforma: um SUS para o século XXI.
2. Construção de um Bloco Político e de Sujeitos sociais capazes de assegurar o direito à saúde e os sistemas públicos
No Brasil, a relevância assistencial do SUS para, pelo menos, setenta por cento da população não tem encontrado correspondência no grau de adesão política e ideológica dessa maioria ao sistema. Nos últimos anos, há como que um conformismo ao desmonte do SUS. Talvez esse paradoxo poderia ser explicado em virtude de que a implementação do SUS ainda é parcial. Com o SUS, houve expansão importante do acesso à Atenção Básica, às urgências, às vacinas, ao pré-natal, a serviços especializados e hospitalares; entretanto, ao mesmo tempo, a saúde tem aparecido como principal problema do país7. A força de nossa política pública de saúde é o SUS concreto, é a extensão de benefícios trazidos à população, e sua debilidade é também o SUS realmente existente, com todas suas mazelas e insuficiências. Como o SUS se destina, na prática, a essa maioria explorada da população, a consideração com os problemas de saúde e com a qualidade dos serviços de saúde, em grande medida, se assemelha ao descaso com que esse povo é tratado. No Brasil há duas cidades diferentes, uma ordenada para a minoria rica e outra, degradada, para os pobres; duas políticas de segurança púbica, de transportes, de tudo. Talvez por isto a ambiência nos serviços do SUS seja tão degradada, por isto o respeito à dignidade e humanidade dos usuários seja tão descuidada.
Enfim, a luta pelo SUS depende da luta contra a desigualdade, contra o racismo, contra o machismo, contra a concentração de poder em governantes, gestores, autoridades, e assim por diante.
O Movimento da Reforma Sanitária é considerado um dos principais atores sociais no processo de invenção e implementação do SUS e do direito universal à saúde8. Esse Movimento pode ser entendido como um movimento social de novo tipo, pois foi se compondo como Bloco Político, em alguma medida, conseguindo agregar diferentes grupos de interesse, com distintas origens sociais, gêneros e etnias em torno de um projeto comum: direito à saúde, SUS e democracia. Havia diferença de ênfase em relação a estratégias e formas de atuação, com agrupamentos priorizando o trabalho institucional, quer na base – reforma dos saberes e das práticas –, quer na implementação de novos programas e arranjos. Alguns setores do movimento praticaram o “entrismo”, participando de governos favoráveis às políticas públicas; outros preferiam aproximar-se dos movimentos sociais e da sociedade, advogando a articulação da construção do SUS com a radicalização do processo democrático.
Esse movimento conseguiu aprovar o SUS na Constituinte de 1988 e ainda vem implementado inovações organizacionais, como a gestão participativa e o controle social do Estado pela sociedade. Ao longo destas três décadas de funcionamento do SUS, o Movimento se enfraqueceu devido à crescente predominância do trabalho político dentro do aparelho de Estado e, ainda, em virtude da crise de representatividade dos partidos e movimentos sociais, inclusive daqueles que apoiavam o SUS.
Um dos principais componentes desse Movimento é constituído pelos trabalhadores, docentes, investigadores e estudantes de saúde. Em realidade, participam do Movimento apenas uma parcela destes trabalhadores, particularmente os de Saúde Coletiva, da Atenção Primária à Saúde, da Saúde Mental, dos programas de combate à AIDS/DST, entre outros. O CEBES e a Abrasco, entre várias associações, vem congregando estes ativistas. As Universidades Públicas têm jogado papel decisivo na divulgação destas doutrinas e na formação de profissionais com visão reflexiva e dispostos a combinar o trabalho sanitário com ativismo democrático.
Ainda hoje a defesa do SUS assenta-se, principalmente, nesse segmento social. Uma das características inovadoras do Movimento foi a de buscar realizar mudanças em todos os níveis do sistema. Os trabalhadores, apoiados em grupos de usuários, vêm buscando criar possibilidades de cogestão no cotidiano dos serviços, com objetivo de reformular radicalmente o processo de trabalho e de gestão em qualquer espaço em que isto seja possível. Em muitos casos fazendo oposição a gestores conservadores.
Para orientar este ativismo político e profissional, O Movimento foi produzindo teoria, metodologias e estratégias de intervenção inovadoras e em acordo a diretrizes do SUS. Várias destas elaborações críticas se transformaram em Políticas Nacionais do SUS. Para citar as mais notórias: Política Nacional de Saúde Mental, Política Nacional de Controle da AIDS/DST, Política Nacional de Atenção Básica, de Atenção Hospitalar, de Saúde Bucal, de Urgência e Emergência, Humaniza/SUS, de Educação Permanente, entre outras.
O fortalecimento e ampliação desse estilo de ativismo é fundamental.
Para se ampliar as condições de possibilidade para a consolidação do SUS e do direito à saúde, é fundamental a aproximação do Movimento da Reforma Sanitária com a maioria da sociedade brasileira. Não se trata de desafio simples, ao contrário. Os ativistas do direito à saúde poderão, com mais facilidade, integrar-se aos movimentos atualmente emergentes: mulheres, negros, jovens, LGBT, luta por habitação, moradia, ensino público. No entanto, os setores populares estão desorganizados, haveria que se investir na reconstrução de movimentos sociais. Apesar de vivermos um período histórico de ataque aos direitos e políticas sociais, não bastará a crítica ao governo e ao establishment político. Há que se apontar problemas do SUS, das cidades, da sociabilidade e, ao mesmo tempo, sugerir estratégias para enfrentá-los. Assim, na saúde, as filas para atendimento hospitalar e especializado são reais e indicam desrespeito a direitos, nosso projeto precisa apontar estas dificuldades e lutar para sua superação. Para isto, é fundamental se radicalizar e estender o esforço tanto para financiamento adequado, quanto para mudança dos modelos de atenção, para a humanização e para a gestão participativa.
Toda mudança começa onde for possível e necessária – não esperar ordens de cima.
Apesar da relevância do SUS, o tratamento que tem recebido por parte dos políticos tem sido pequeno.O SUS não foi destaque, desde sua criação, em nenhum dos governos da União9. Nenhum governo ou partido político assumiu o financiamento e a implementação do SUS como prioridade nacional. Em consequência, vem sendo construído de maneira incremental e com déficit de recursos10. Durante as primeiras décadas de implementação do SUS, os secretários municipais e sua entidade o CONASEMS tiveram importante protagonismo na defesa do sistema, mas, nos últimos anos, em sua atuação tem predominado o esforço para radicalizar a descentralização do sistema, o que implica, na prática, no enfraquecimento das várias Políticas Nacionais. Em realidade, os gestores do SUS estão cada vez mais integrados e controlados pela lógica predominante na política partidária brasileira e no presidencialismo de coalizão. Fenômeno que os têm afastado das necessidades de saúde e acentuado seu compromisso com clientelismo e patrimonialismo.
3. Reconstruir a institucionalidade do SUS objetivando aperfeiçoar o seu caráter público
Para assegurar sustentabilidade do SUS se faz necessário prosseguir com a reforma do Estado e do modelo de gestão objetivando corrigir diversos obstáculos estruturais e funcionais. Um destes desafios é encontrar um desenho organizacional que, ao mesmo tempo, que permaneça dentro da racionalidade da coisa pública (centrado nas necessidades de saúde), consiga operar com importante autonomia em relação ao mercado, ao poder executivo e aos partidos políticos. Em linhas gerais, seria importante reorganizar o SUS reforçando seu caráter de sistema nacional (não apenas federal, mas tripartite), assegurando que o SUS tenha estabilidade mesmo com a rotatividade de governantes inerente aos sistemas democráticos.
Pensar o SUS como um sistema autárquico, mas que funcionasse em cogestão entre entes federados, trabalhadores e usuários. Ampliando e reforçando a capacidade de fiscalização e de participação efetiva na gestão, no planejamento e avaliação do SUS.
É fundamental a reformulação de normas de licitações, compras e manutenção, prestação de contas, objetivando trazer agilidade e segurança no manejo do orçamento público, e que ainda combine ações centralizadas para gestão de insumos estratégicos, com a transformação de programas e serviços em Unidades Orçamentárias com responsabilidades gerenciais ampliadas.
O SUS encontra-se bastante fragmentado, o que torna precária a governança do sistema na lógica de redes de atenção integral. É fundamental que seja ampliada a integração sistêmica do SUS. Com essa finalidade é importante rever a dinâmica de centralização e descentralização. Um dos elementos que ajudam o equilíbrio entre estes dois polos são as Políticas Nacionais de Saúde, construídas em cogestão e aprovadas pelos organismos de cogestão do SUS: Conferências, Conselhos e Comissões Tripartites. A tendência recente de desmonte destas Políticas Nacionais acordadas tende a fragmentar ainda mais o SUS, além de expor as gestões estaduais e municipais à pressão de grupos interessados em se aproveitar do SUS para atender objetivos particulares. A Política Nacional de Atenção Básica, aprovada e publicada em 2006 e 2012, por exemplo, vinha, a duras penas, contribuindo fortemente para a expansão e a qualificação do sistema. As modificações aprovadas pela Comissão Intergestores Tripartite (CIT) representa um retrocesso na medida em que deixa a cargo de cada município o modelo e as estratégias de organização da atenção primária. O mesmo impasse foi estabelecido em relação à Política Nacional de Saúde Mental em virtude da proposta de contrarreforma apresentada em 2017 pelo Ministério da Saúde.
Outro tema central para adequar a dialética centralização e descentralização é a constituição de Regiões de Saúde com funções de gestão da rede e não somente de negociação e planejamento. Para início, seria importante redesenhar as Regiões de Saúde, revendo a atual divisão que criou 437 Regiões, quando há indicações de que seriam necessárias entre 200 e 250. Para fortalecer a função das Regiões em gestão é essencial o estabelecimento de Fundo Regional de Saúde, com orçamento próprio mediante repasses dos entes federados, em especial da União. A Região de Saúde deveria ser a responsável pela gestão da média e alta complexidade e da Vigilância em Saúde. Até este momento, o SUS vem tendo grande dificuldade com a gestão de hospitais próprios e conveniados, que tem funcionado em desconexão com a atenção básica e a urgência, além de, em geral, operarem com problemas de eficiência e efetividade. Problema semelhante vem ocorrendo com o controle de epidemias em que não se logra ações coordenadas nos territórios.
Para que as Regiões operem desta forma será importante se aprovar modificações em relações às normas operacionais do SUS, criando uma autoridade sanitária em cada Região de Saúde, bem como uma estrutura de administração com aporte de pessoal e recursos dos estados e dos municípios.
A crise de sustentabilidade do SUS poderá ser atenuado se aprovarmos uma legislação que reduza drasticamente os cargos de confiança – ou de livre provimento – na sua gestão. Somente ministro, secretários de estado e de município e um pequeno grupo de assessores seriam indicados segundo interesse político; todos os demais gestores do sistema seriam indicados mediante critérios técnicos sanitários e experiência com o SUS.
Nenhuma destas mudanças dependerá de alteração da Constituição.
4. Política de Pessoal unificada para o SUS
A sustentabilidade do SUS depende tanto da formação de um novo profissional de saúde, quanto de uma política e de uma gestão de pessoal que contemple diversidades funcionais das várias profissões e especialidades e também a diversidade sanitária e de contexto das várias regiões brasileiras.
A tradição da gestão pública de pessoal favorece a burocratização, desumanização e alienação no trabalho de cuidar de pessoal e comunidades. Considero superada a organização de carreiras com base nas categorias profissionais. O trabalho em saúde tem características especiais, depende da motivação e do envolvimento de cada trabalhador com a saúde de outras pessoas. A importação de modelos de gestão de fábricas ou de serviços privados não tem colhido bons resultados quando aplicados na área da saúde. O trabalho em saúde é do tipo denominado de práxis, isto é, em geral, não funciona em linhas mecanizadas de produção, exigindo que trabalhadores e equipes multiprofissionais operem tanto com normas e protocolos como com a variação de procedimentos e condutas conforme o caso e o contexto. Além do mais, o SUS vem se ordenando com a lógica do trabalho compartilhado, em equipes, em apoio matricial e no trabalho em redes de cuidado. Nesse sentido, a que se pensar em política e em carreiras que respeitem a identidade de cada especialidade ou profissão, mas que estimule a prática interdisciplinar e o compartilhamento de responsabilidades e de tarefas. A fragmentação do processo de cuidado em tarefas estanques e a circulação dos cidadãos entre profissionais e serviços como se fosse uma peça deslizando por uma linha de produção tem resultados ineficazes, desumanos e ineficientes.
Para o SUS seriam necessárias várias carreiras – organizadas a partir das características das principais áreas do sistema de saúde. Identificam-se cinco áreas temáticas no SUS: atenção básica; atenção de média e alta complexidade (rede secundária e terciária – ambulatórios, centros de referência, serviços de atenção domiciliar e hospitais); rede de urgência e emergência; rede de vigilância à saúde; e apoio à gestão do SUS (setor administrativo, manutenção e financeiro).
Os direitos trabalhistas, definidos em lei, e as especificidades da prática de cada profissão ou especialidade seriam considerados de maneira matricial em cada uma das carreiras das cinco áreas temáticas. Assim, as normas e as características do trabalho de enfermagem, médico, odontológico, farmacêutico, etc., serão considerados na organização de cada uma destas carreiras temáticas. Funcionarão como vetores matriciais para as carreiras horizontais temáticas.
O desenho de carreiras com duplo condicionamento – um vertical que favorece o trabalho colaborativo e interdisciplinar, e outro horizontal que respeita direitos e especificidade de cada profissão e especialidade – objetiva enfraquecer o corporativismo entre as profissões de saúde, em especial aquele do médico, e fortalecer a relação dialógica com os usuários. É uma estratégia para se ampliar as condições de possibilidade para a constituição de um novo tipo de trabalhador de saúde para o SUS.
Cada uma dessas áreas temáticas teria lógica organizacional e de funcionamento específica11.
Um único organismo responsável pela política de pessoal: dada a complexidade da política de pessoal será impossível que a responsabilidade por sua construção e manutenção seja transferida a municípios ou a prestadores locais ou regionais de saúde. A gestão dessa nova política seria necessariamente compartilhada entre União, estados e municípios, ficaria a cargo da Comissão Tripartite do SUS, mediante a criação de um órgão público (autarquia ou Fundação Pública) e de um Fundo Orçamentário para Política de Pessoal.
5. Consolidar e qualificar as políticas e práticas em saúde
O acesso, a humanização e a qualidade concreta do cuidado são os pontos que, concretamente, mais interessam à população, todo o resto são meios. Meios para atingir a finalidade fundamental do SUS que é a defender a vida das pessoas.
Uma estratégia fundamental para sensibilizar a população é sempre vincular a luta por recursos orçamentários para o SUS a projetos específicos, como expansão e qualificação da atenção básica, eliminar filas com investimento e melhor gestão de hospitais e serviços especializados, gastos com política de pessoal, medicamentos, inovação e ciência e tecnologia em saúde, etc.
A comunicação e a integração com a sociedade é fundamental para a democratização e para a sustentabilidade do SUS. Nesse sentido, é importante analisar e divulgar informações sobre padrão de gastos com orçamento público, dificuldades e problemas do SUS, repercussão negativa sobre a saúde decorrente de cortes no financiamento e nos serviços de saúde.
A expansão da Estratégia de Saúde da Família para 80% da população é prioritária. Sua qualificação também deverá ser uma prioridade para o SUS. A reordenação do funcionamento da rede de serviços implica em reforçar o papel de regulação da Atenção Básica e informatizar o SUS mediante sistema integrado. A regulação do acesso no SUS não deveria ter um caráter burocratizado, delegado a instâncias isoladas da rede. Nos tradicionais sistemas públicos de saúde, a regulação fica a cargo dos profissionais e equipes da rede mediante a definição de normas para ordenar o acesso segundo critérios de risco e de vulnerabilidade.
As filas no Brasil se devem tanto à insuficiente capacidade instalada, quanto à ausência de critérios de encaminhamento adequados. A rede hospitalar e de especialidades precisa ser integrada de forma a funcionar como referência territorial e apoio para Atenção Primária e urgência. O planejamento para implementação de novos programas e serviços deveria ser realizado nas Regiões de Saúde.
É fundamental o reordenamento dos modelos da área hospitalar e das especialidades. Para isto será importante aplicar diretrizes da atenção primária de saúde em ambulatórios: armar equipes interprofissionais de referência e de apoio matricial; criar responsabilidade de equipes por coortes de pacientes: vínculo, continuidade e coordenação de caso; adensamento tecnológico e pró-atividade; ampliação de cenários de práticas: grupo, leitos de observação, procedimentos diagnósticos, terapêuticos e cirúrgicos; atendimento demanda (não agendado) e programado; clínica (especializada) ampliada e compartilhada com usuários.
A política e a gestão de hospitais pouco sofreu mudanças desde a criação do SUS. Tem modelo de gestão e de cuidados tradicionais. São serviços isolados (interligação é realizada pelo paciente/familiar); utiliza departamentalização segundo categorias profissionais/especialidades; a responsabilidade dos profissionais é com procedimentos; há fragmentação da gestão e do cuidado. É fundamental estender a reforma sanitária aos hospitais, para isto: integrá-los à rede como referência para média e alta complexidade; criar departamentos organizados por função ou áreas temáticas (Unidades de Produção); organizar equipes interdisciplinares de referência e apoio matricial, modelo de gestão que cobre responsabilidade por coorte de pessoas: fortalecimento do vínculo, continuidade e coordenação do cuidado, instituir formas de cogestão do cuidado e de gestão participativa.
Ao debate! À construção de um projeto que nos unifique!
LINK: SUS: o que e como fazer?