Uma despedida extra-paredes de UTI: Quando a expressão de amor recebe nossas boas-vindas
“ Mas o tempo passou… a mulher guerreira foi enfraquecida pelos anos, a velhice chegou e com ela a doença também. Seu coração forte e valente já não era mais o mesmo e começou a falhar.”
Dona Maria aos 76 anos esteve internada por mais de 60 dias em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em um Hospital Universitário no interior do Mato Grosso do Sul.
Poderia ser mais uma dona Maria, mais uma de tantas histórias de internação com um desfecho trágico: a morte. Mas dona Maria era valente, dona Maria já havia enfrentado tantas adversidades pela vida, que ela, juntamente com suas Mariazinhas não se amedrontaram diante da doença, do hospital, da UTI e da morte iminente. Enfrentaram cada dia de VIDA com muita coragem.
Dona Maria foi cuidada, em seus últimos dias de vida, por uma equipe que enxergava que haviam muitas possibilidades diante da morte e que ao contrário do que a maioria diz, quando se trata de Cuidados Paliativos, há muito o que se fazer!
A escuta e o diálogo foram fortalecidos, e assim, as possibilidades de cuidados foram surgindo. A Grande Família de dona Maria não morava no município em que o hospital está localizado, dificultando o acesso destes aos seus últimos dias de vida. A família começou a organizar então, pequenas caravanas para visitá-la no hospital. Mas e as restrições de horários e quantidade de pessoas que podem visitar dona Maria em seu leito de UTI? E o silêncio e discrição que são exigidos durante as visitas?
Quando o cuidado é o protagonista, as regras que vão contra a concretização dos objetivos deixam de fazer sentido. Dona Maria é mulher de fé, a religiosidade sempre foi um ponto central em sua vida. Sua família seguiu seus passos e também criou base forte na religiosidade. O conforto que a leitura da bíblia e os cânticos religiosos podem proporcionar a ela é proeminente ao que qualquer procedimento técnico pode oferecer. Por entendermos isso, dona Maria pôde ouvir suas netas cantando e seu filho lendo a bíblia a ela, na beira do leito. Cantaram um, dois e quantos cânticos quiseram… e não atrapalharam. A expressão de amor recebe nossas boas-vindas. Foram minutos valiosos na VIDA de dona Maria. E na nossa também…
“E mais uma vez você se superou… esse coraçãozinho parou muitas vezes e você voltou. Mas tudo tem um tempo determinado. Já se foram mais de 60 dias de UTI e você como sempre superando todas as estatísticas. Está ali lutando, mais uma vez sendo forte e valente. Como temos orgulho de você!” Este, bem como os demais trechos neste texto, são partes de uma carta com a biografia da dona Maria que foi entregue à equipe.
A família de dona Maria teve a oportunidade de ler a carta para ela no solário do hospital, na presença de quase 30 pessoas da família (filhos, netos e bisnetos) dois dias antes dela morrer. Eles tiveram a chance de fazer todos os agradecimentos e reconhecimentos pela força dela em VIDA. Tiveram a chance de dizer o que nunca haviam dito, de reforçar o que já disseram e até de pedir a mão de uma de suas filhas… “E em nome de seus 12 filhos, 25 netos e 20 bisnetos nos reunimos hoje para te homenagear e dizer que você é e sempre será a melhor mãe do mundo”.
Dona Maria e sua família foram um presente para nossa equipe. Esperamos que sua história inspire outras equipes de saúde a proporcionar um cuidado humanizado e potente durante cada etapa da vida e na iminência da morte.
Agradeço especialmente a toda a equipe da UTI e do HU-UFGD que tornam esses e outros momentos uma realidade.
Autoria: Psicóloga Francyelle Marques de Lima (CRP/MS 06122-7), em parceria com as filhas da Nossa Dona Maria.