Hoje, um grande jornal paulista publicou, nas páginas de opinião, um artigo assinado por três ex-coordenadores nacionais de Saúde Mental, e subscrito por vários outros, perfazendo um período contíguo de vinte e cinco anos para o aperfeiçoamento da Reforma Psiquiátrica, que denuncia um possível retrocesso na Política de Estado na área da Saúde Mental (“Retrocesso na Saúde Mental?”, Alves, Delgado e Tykanori, Jornal Folha de São Paulo de 14 de dezembro de 2007, coluna Tendências/Debates). Tal política foi instituída por lei parlamentar (Lei 10.216/2001), após vários anos de discussões com a sociedade e referendada por quatro Conferências Nacionais de Saúde Mental ao longo desse período em que os articulistas e os subscritores do artigo estiveram à frente da Coordenação Nacional de Saúde Mental (1991 a 2016).
Enquanto os articulistas se perguntavam se seria possível um retrocesso na política de Saúde Mental – que caminhava rumo à utopia de “uma sociedade sem manicômios” –, o atual Ministro da Saúde, numa reunião da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), fazia aprovar uma resolução que efetivava todos os temores denunciados no artigo citado. Acrescente-se que não houve qualquer discussão na reunião e o Ministro negou a palavra ao presidente do Conselho Nacional de Saúde (Reunião da CIT de 14/12/2017). Se os membros da CIT não puderam discordar numa reunião convocada para tentar legitimar a resolução; do lado de fora, militantes em defesa da Reforma protestavam aos contumazes ouvidos moucos dos golpistas – que sempre se lixaram para a opinião pública.
O grotesco da situação é que a resolução ministerial aprovada considera no seu arrazoado a própria lei 10.216, que foi afrontada nas deliberações em que o manicômio e os ambulatórios especializados são reabilitados e as comunidades religiosas (erroneamente nomeadas como terapêuticas) efetivadas como parte da rede de saúde.
Ora, o que se tem na malfadada resolução é uma revogação da lei 10.216 e um ataque frontal aos dispositivos terapêuticos da Reforma Psiquiátrica (CAPS, NASF, RTs, a atual RAPS[1], enfim), que passam ao papel de “centros recreativos” e o manicômio volta a ter a importância de antes, quando eram preponderantes no “tratamento moral” de violência e segregação involuntária, que sempre usou métodos coercitivos (psicotrópicos, eletrochoques, privação da liberdade) em nome de uma “ciência” já denunciada até na literatura do século XVIII, entre nós, por Machado de Assis e no começo do século XX por Lima Barreto (ver “O Alienista” do primeiro e “Cemitério dos Vivos” do segundo).
A Associação Brasileira de Psiquiatria e a Federação das Comunidades Terapêuticas – numa parceria anacrônica entre “ciência” e “religião” – aliadas a um Ministro de um governo golpista – que não é da área da saúde e é financiado eleitoralmente pelos planos de saúde e a medicina privada – planejam um ataque mortal aos dispositivos da Reforma Psiquiátrica, revertendo o financiamento público que sai dos serviços comunitários para o manicômio e para a burra dos pastores e suas comunidades religiosas. O que se levou anos para inverter no financiamento, com uma canetada retorna do público ao privado.
O debate foi amordaçado, a participação popular rejeitada, as conferências ignoradas e a lei 10.216 violentada para que o manicômio possa voltar.
É uma vitória do atraso e das trevas, quando a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) considera a Reforma Psiquiátrica brasileira como um dos melhores programas de saúde do mundo, tendo sido bem sucedido e com resultados efetivos reconhecidos, num pais de dimensões continentais e mais desigual do planeta. Nem isso inibiu os interesses dos “mercadores de infortúnios”.
Mas a resolução não será cumprida de forma fácil, como eles pensam. Vai ter resistência, vai ter luta. Quem experimentou os resultados surpreendentes da Reforma Psiquiátrica não esquece. E somos muitos. Não sabemos trabalhar de outra forma, como eles querem. Os usuários também não querem mais voltar ao manicômio. Os familiares sabem que a Reforma devolveu a vida de seus membros. Parcela da sociedade já compreendeu que a loucura não é periculosa como eles querem. Vai ter resistência.
Vai ter luta!
(Edmar Oliveira, psiquiatra, blogueiro, escritor)
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[1] Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), Residências Terapêuticas (RTs), Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)
Publicado originalmente em www.edmaroliveirablog.com em 14 de dezembro de 2017
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Olá Edmar,
A tua frase “quem experimentou os resultados surpreendentes da Reforma Psiquiátrica não esquece” congrega usuários e trabalhadores do campo. Ao mesmo tempo convoca as resistências, sempre presentes como nos ensinou Foucault.
A RHS tem um acervo vivo de práticas antimanicomiais que pulsam aqui e nos corações de todos os que construíram esta luta. A experimentação tem efeitos de conquistas micropolíticas que jamais poderão ser roubadas assim tão impunemente.
AbraSUS!