A Formação do Profissional de Saúde – A Organização das Escolas de Saúde

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 A privatização da Educação demandaria um realimento ideológico capaz de abarcar a contradições naturais ao controle do mercado sobre qualquer aspecto da vida humana. Os organismos multilaterais produziriam grande quantidade de material sobre o assunto. Guilherme de Albuquerque na sua tese As Determinações do Capital sobre o Trabalhador em Saúde, explora o que considera de mais importante. Além disso, expõe também o resultado prático das diversas mudanças no ensino de saúde. 

 

A priori, o discurso quanto às transformações na educação reafirma a necessidade de se promover o pleno desenvolvimento humano: de acesso a trabalho digno a capacidade de tomar decisões informadas. 
O que não fica explícito desde o início é que a posição dos diversos países na diversão internacional do trabalho seria determinante na forma como tal discurso seria implementado. Em As Veias Abertas da América Latina, Eduardo Galeano nos lembra que:

 "Há dois lados na divisão internacional do trabalho: um em que alguns países se especializam-se em ganhar, e outro em que se especializam em perder. Nossa comarca do mundo, que hoje chamamos de América Latina foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram pelo mar e fincaram os dentes em sua garganta".
Como resultado, o Brasil, como tantos outros países subdesenvolvidos, seria tomado por uma onda de reformas que teriam o objetivo o desmonte da escola e a garantia da manutenção de uma nova ordem. Ordem essa que assegurasse que a triste constatação de Galeano fosse indefinidamente mantida.
Pois bem, é nesse contexto que surgir a idéia de uma formação ampliada, que ultrapassasse os muros da academia. A família, a comunidade ou ainda a mídia de massa assumiriam parte generosa da responsabilidade antes nas mãos do Estado. Não espanta o surgimento do trabalho voluntário ou ainda do surgimento da figura da ONG como alternativa a precarização do setor. Figuras paliativas, quando muito, passam a reafirmar a necessidade de se ocupar o papel do setor público como única solução para o impasse que os cortes de recursos e/ou a privatização criariam.
Divulgar-se-ia também o mito do pleno emprego, baseado no simples acesso a educação. Argumento fraco basta-nos lembrar que o simples acesso a educação é incapaz de combater o desemprego estrutural (portanto não conjuntural) inerente a nossa organização social.
Passaria a se desenvolver dentro do imaginário popular a idéia de que uma educação adequada combateria a violência, a guerra, que seria capaz de amenizar os conflitos sociais ou mesmo de assegurar o desenvolvimento sócio-econômico de um país. Aliás, a educação seria capaz de reduzir, por si só, toda forma de prática danosa ao bem comum ganhando o status de agente moralizante. Não se discutiria a cultura de guerra ou de conflitos internos de diversos países desenvolvidos (e com educação de qualidade) ou como a sala de aula poderia ser campo de retrocessos, como é o caso de uma formação tecnicizante que coloca o estudante a serviço do setor produtivo e não o contrário, como se espera de uma sociedade que valorize a si mesma. 
As críticas que o Preventivismo faria ao modelo de ensino em saúde ganhariam força no período das reformas pedagógicas. O forte movimento de reorganização dos sistemas de saúde, como visto no texto sobre a Atenção Básica, teriam desdobramentos no ensino superior. Seria fundamental que se criasse um profissional capaz de atender os desafios que se apresentavam.
Ao longo desta história, não se pode dizer que não houve disputa entre projetos para a formação do profissional de saúde. Mas não podemos esquecer que as forças que sairiam vitoriosas seriam aquelas que conseguissem cooptar a maior parte do Estado, estabelecendo uma relação simbiótica que levasse a um ciclo em que o desmonte de determinado setor demandasse uma solução do mercado ou, ainda, que a simples inserção do mercado levasse ao desmonte do setor público.
É assim que o discurso neoliberal chega a formação do profissional atual. Com uma política educacional que permite que cada família veja os primeiros passos dos seus filhos dentro da escola como nada mais que sua inserção no mercado de trabalho. A educação se torna importante a medida que garanta melhores colocações. 

Ser signatário de um projeto de "Educação para todos" (fruto de um Fórum Consultivo da UNESCO) não garantiram a erradicação do analfabetismo ou a mesma facilidade de acesso a educação para toda a população. Portanto, o caráter elitizante do profissional de saúde seria mantido com a diferença de que, com a regulamentação de diversos cursos e a forte expansão do número de vagas da rede privada de ensino superior, diversos estratos da população tivessem acesso as mais diferentes instituições sem que, no entanto se estruturasse um sistema de controle adequado da qualidade de formação.

Pode-se ver que adentrar os portões da faculdade não eliminaria as contradições da sociedade. Nem o seria o trabalho multiprofissional. Aqueles que tivessem mais recursos teriam melhores condições a carreiras que oferecem melhores remunerações no campo da saúde. No geral, o velho ciclo seria mantido.
A forte orientação para o mercado de trabalho e a capitulação do Estado teria diversos desdobramentos, como a ampliação do número de escolas técnicas de saúde (enfermagem, radiologia, etc) e a forte orientação do Ensino Superior de Saúde para o mercado. O aumento do corpo técnico geraria um exército de reserva capaz de baratear o custo de cada de trabalhador além de ampliar as exigências sobre o seu trabalho.
O impacto dessa visão sobre a formação profissional teria impacto ainda maior sobre as mulheres. No trabalho escrito a quatro mãos Análise da Força de Trabalho do Setor de Saúde no Brasil: focalizando a feminização, as autoras abordam de forma sistemática a distribuição, por gênero, dos trabalhadores da área. Discute-se a ocupação desigual das profissões, e mesmo a diferença nas proporções entre cada uma delas. O artigo avança até o ponto de discutir a questionável vocação feminina para o setor. Pode-se, por fim, entender que o avanço da mulher dentro da saúde é parte de um processo maior de precarização no qual, o acesso a maior qualificação, portanto, maiores salários, estará vinculada ao homem. Se lembrarmos que o papel de cada um de nós, como seres sociais é fruto de um processo histórico, então as mulheres são duplamente vítimas nesse meio. Primeiro por terem seu trabalho tradicionalmente menos reconhecimento que o masculino e segundo, porque a sua maior participação no setor acontece exatamente quando a ampliação da possibilidade de trabalho vem junto a uma diminuição média dos ganhos salariais. Assim, a feminização do trabalho amplia o exército de reserva sem, em contrapartida, ameaçar por si só a estrutura que gera essa lógica.
O exemplo feminino é de extrema importância porque serve para entender também outras mudanças. Parte do ideário da educação atual se ancora sobre o conceito de Competência, uma qualidade que se distingue da competência (aqui com c minúsculo) por se tratar de objetos diferentes. Enquanto a competência diz respeito ao domínio de determinada habilidade sendo, portando, passível de avaliação, a Competência é uma qualidade subjetiva, resultado da somatória de diversos elementos internos e externos de cada pessoa. Sua avaliação, bem como sua aquisição, é subjetiva. Ao se reforçar a maior Competência feminina na saúde, aumenta-se grandemente o número de trabalhadoras na área, o que favorece o empregador, ao preço de se impor um papel que não é necessariamente verdadeiro a toda mulher. Como veremos a seguir, essa lógica da Competência será trabalhada de forma mais incisiva nas Metodologias Ativas de Ensino.
 

Mas voltando a questão da orientação para o mercado de trabalho, no Ensino Superior o resultado tem sido o mesmo que no ensino técnico, com a diferença de que o processo de preparação dos egressos para a nova realidade demanda a adoção de ferramentas mais sofisticadas. O processo de sucateamento/privatização das universidades gera diversos obstáculos a discussão sobre a qualidade do ensino, favorecendo o aparecimento de corpo docente menos preparado ou ainda diminuindo os recursos materiais para os cursos.

As transformações mais brandas no processo de ensino valorizaram a introdução de matérias teóricas, que permitam aos alunos o desenvolvimento da técnica de forma precoce. As tranformações mais radicais farão uso das metodologias ativas, do aprender a aprender, inspiradas em Jean Piaget e no Escolanovismo.
Além disso, a visão Biopsicosocial servirá de análise para o processo de adoecimento e ainda orientará a prática clínica. Como resposta a atuação cada vez menos preocupada com o usuário do SUS, a Humanização surgirá como resposta. E, ao invés de se prevenir doença entraria em jogo a política de Promoção a Saúde, como foi discutida no artigo sobre Atenção Básica.
Além disso, a introdução da prática ou de disciplinas da área das Humanidades cumprirá o papel de lembrar os estudantes de aquele profissional liberal de fato não existe mais. Portanto a adequação a posição de trabalhador assalariado se torna imperativa.
Todas essas transformações terão um único resultado: egressos dos cursos de saúde com conteúdo acrítico e capacitados, principalmente, para minimizar as mazelas da saúde pública que são fruto da maneira como o sistema se organiza dentro da sociedade. Aliás, sistema esse que reflete a própria sociedade que o gerou.
Ter maior acesso ao campo de atuação não gera nada mais que maior domínio sobre a técnica. Não sobre a tecnologia. Portanto, a introdução do estudante de forma acrítica no campo de atuação, apenas garantirá a reprodução da lógica de trabalho a qual a própria academia em diversos momentos se propõe a combater.
O uso das metodologias ativas encerra uma versão radicalizada desse processo. Ao colocar sobre o aluno a responsabilidade do próprio aprendizado, permite que a análise crítica quanto ao seu papel na sociedade seja colocado em xeque. Afinal, quando cada estudante passa a ter o controle maior sobre a própria formação sem ter acúmulo de informações sobre o que seria importante para tal, seus referenciais serão aqueles colocados pela sociedade (família, mídia de massa, etc) ou por elementos próximos do seu ambiente de estudo. Ou seja, nenhum destes referenciais foi pensado de forma coletiva com o objetivo de fornecer o profissional que melhor sirva a sociedade.
Além disso, as metodologias ativas carregam em seu seio a idéia de que o processo de aprendizado é mais importante que o acúmulo de informação per se já que, o volume de informações seria tão grande, que tentar absorver um conteúdo adequado seria tarefa inglória. Ao utilizar-se do senso comum, reforça que "mais importante que a instituição de origem, é o esforço pessoal do estudante", esquecendo-se que bons egressos demandam sim esforço pessoal, mas que, sem um projeto claro de orientação profissional, bons trabalhadores (bons para o cuidado com a população, claro) acontecem por um processo de inculcação ao longo do aprendizado. 
O importante é desenvolver as Competências naturais (?) ou adquirir tantas outras (?). As Diretrizes Curriculares Nacionais serão um grande incentivo a essas transformações, além de agentes externos, como é o caso das Fundações internacionais – destaque para a Fundação Kellogs e seu Projeto UNI (Uma Nova Iniciativa).
O que também se esquece nesse processo é que o desenvolvimento científico, tão importante a humanidade, é extremamente prejudicado. Isso porque, por mais que se apregoe que o processo de aprender a aprender passe pelo processo cientifizante de contruir uma hipótese, testá-la e produzir modelos, ignora-se que para que todo esse processo demanda conhecimento. Não conhecimento técnico de como operar as máquinas de um laboratório, mas sim o conhecimento teórico, que permite a realização dos diversos desafios que a vida nos impõe e a sua resolução baseada no papel crítico que a ciência tem para o ser humano.
Ao se tentar romper com a análise Biomédica sobre o processo de adoecimento, o Biopsicosocial não será um contraponto, mas sim uma forma de cooptar e delimitar a área de atuação do profissional de saúde frente a ampliação da demanda pela atenção a saúde. A origem deste modelo fragmentador ainda é disputada, mas pode-se dizer que teve forte papel na psiquiatria a partir dos anos 1960 como forma abordagem clínica. 
No artigo a Critical Review of the Biopsychosocial Model e posteriormente no livro Humanizing Psychiatrists, o psiquiatra Niall MacLaren faz uma análise acurada das limitações do modelo, avaliando a sua limitação do ponto epistemológico em função da incapacidade de se verificar sua validade do ponto de vista quantitativo ou mesmo do seu desdobramento como modelo Biomédico quando se vai a fundo à avaliação do processo de adoecimento. 
Assim, seu grande mérito seria o de promover uma prática integral no dia-a-dia ao se facilitar a promoção a saúde, observar os fatores envolvidos na patogenia e ainda promover um tratamento que esteja de acordo com a capacidade de adesão do paciente. Ou seja, se por um lado adere ao ideal da Atenção Básica, por outro serve como solução mediadora dos conflitos sociais já que ao se pensar o paciente nas suas limitações como ser social evitando atuar sobre elas, o Biopsicosocial garante a manutenção das condições de vida da população. É a prática do jeitinho, do esforço pessoal, da saúde do pobre para pobre.
Vale ressaltar que este modelo se confunde por diversas formas com a Integralidade, príncipio do SUS, assim como a Humanização. 
Conceito-sintoma originário dos movimentos sociais dos anos 1960, como nos mostra o artigo Humanização na Saúde: Um Novo Modismo de Regina Benevides e Eduardo Passos, o debate acerca da precarização da saúde a partir dos anos 1970, no bojo da Reforma Sanitária, levantará a pauta da "falta de humanidade" dos profissionais de saúde ou mesmo do sistema como um todo. 

Como resultado será estruturado um programa, conhecido como HumanizaSUS que servirá como base das ações do Estado. Por outro lado, a academia absorverá tal necessidade, sem debate prévio, gerando desde currículos "humanizados" até projetos de estudantes com o objetivo de aliviar o sofrimento causado pelo processo de internação.

O que se escancara com isso é a responsabilização do profissional de saúde como fonte dos males da saúde brasileira sem antes contextualizar quem é e onde trabalha esse profissional. Portanto traz consigo uma visão superficial do problema na qual se acredita que a adoção de outra atitude frente às dificuldades inerentes atualmente ao trabalho possa limitar sobremaneira o sofrimento da população. Além disso, carrega consigo a idéia do homem bom, tão intensa no Iluminismo e tão infeliz ao se buscar uma natureza moral judaico-cristã inerente ao ser humano que ser perde no processo de convivência.
Deixa-se de analisar o caráter histórico do desenvolvimento das relações sociais e busca-se através da dedicação pessoal (numa atitude de responsabilidade social do estudante) ou na otimização do processo de gerência resolver os conflitos inerentes a nossa sociedade. Forte carga de trabalho, ambiente que por vezes parece cena de filme de terror ou ainda falta de perspectiva ou de amparo legal para o trabalhador. Nesta perspectiva a saúde aparece destacada do resto da sociedade, no tempo e no espaço, o que se configura num absurdo.
Mas diferentemente do que as outras transformações trazem os valores envolvidos na Humanização não são inerentemente ruins. Ainda que se deva discutir o que exatamente é humano, numa perspectiva que seja mais profunda que um senso comum moralizante, atenção ao cuidado não é ruim. O que se vê de pior é o caráter terminal que o projeto humanizante encerra. Por ser um conceito-sintoma, carecendo de ideólogos que gerem ações sistemáticas, é difícil discutir toda a amplitude de ações que estão contidas nesse movimento. Ainda sim não podemos entender o mesmo como ponto de chegada, mas sim como ponto de partida.
 
 
Destes artigos sobre a Formação do Profissional de Saúde o que se pode perceber é o papel ocupado pelo profissional de saúde dentro da sociedade se tornou, principalmente com a regulamentação das escolas de saúde no ínício do século XX, fonte de debates intensos. Ainda que diversas forças tenham atuado com o intuito de promover as mudanças que lhes parececem mais adequadas, o que tem sobressaído é o caráter mercadológico da formação. Se por um lado obtêm-se fontes de lucro no processo de formação deste profissional, por outro o que se vê como resultado são egressos incapazes de analisar a conjuntura em que se encontram e fazer uma análise crítica sobre seu papel na sociedade. 
Portanto, o desafio que se impõe é o de analisar de maneira crítica o contexto da saúde atual e propor ações que sejam capazes de tirar este setor, e porque não toda a sociedade, do estado pasmado em que se encontra atualmente.