Humanizar o SUS ou humanizar o Brasil?

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O texto abaixo saiu no Correio Brasiliense semana passada, na coluna de opinião. Por que não colocar na rede?

 

 

Humanizar o SUS ou humanizar o Brasil?

Dioclécio Campos Júnior

A melhor maneira de humanizar o SUS é fazer com que os gestores públicos utilizem somente os serviços que oferecem à população. Seria uma lição de coerência, conduta ética exemplar. Evitaria a ambivalência do discurso oficial e acabaria com a contradição ideológica das teses defendidas.

De fato, por questão de coerência, os dirigentes do SUS não deveriam recorrer a planos privados de saúde para si mesmos nem para os seus. Só assim estariam a demonstrar que acreditam na qualidade da assistência à saúde que propõem para os outros. Conheceriam de perto a realidade que lhes cumpre transformar. Não mofariam nos gabinetes sem vida de onde apenas ditam regras. Não se acomodariam ao metabolismo anacrônico de repartições públicas que transbordam teoria e carecem de prática. Estariam no dia-a-dia dos serviços dispensados a seres humanos cujas penúrias e frustrações desconhecem. Validariam, enfim, argumentos doutrinários, sempre vazios de vivência, distantes do real, repetidos com a monotonia que beira a exaustão. Não se fixariam na frieza de indicadores quantitativos por meio dos quais celebram avanços discutíveis.

Uma coisa é o SUS dos gestores, outra é a assistência prestada às pessoas. A primeira é produto de uma ideologia cheia de boas intenções, apanágio não apenas do céu, porque delas o inferno também vive cheio. Reúne princípios e crenças oriundos de catecismo sanitário, resguardado como fonte dogmática a moldar pensamentos e ações. Possui idioma próprio, uma coletânea de jargões declinados de cor e salteado por loquazes militantes. Expressões conceituais já surradas pelo uso, desgastadas pela inadequação à realidade, destoantes dos matizes evolutivos de uma sociedade em transformação. A segunda é resultado do constante desencontro entre cenários, paradigmas, regulações, tantas outras normas técnicas, e as necessidades verdadeiramente sentidas pela população.

A rede de unidades públicas de saúde mais parece uma franquia da incompetência institucional. Quem nelas trabalha ou delas se serve está nivelado no mais profundo desencanto. A falta de recursos mínimos para o exercício profissional seguro tem a mesma dimensão do sofrimento dos cidadãos diante das dificuldades de acesso à assistência qualificada que lhes resolva os problemas de saúde. O sanitarismo reducionista impregnou as instâncias do poder. É desumano. Discrimina. Ignora a realidade. Simplifica a aparência do continente para ocultar a fragilidade do conteúdo. Recusa-se a discutir o modelo desagregador da saúde pública, cuja eficiência já não convence mais ninguém. Teóricos ensimesmados tomaram conta do SUS. Rejeitam qualquer perspectiva de modernização.

Sucedem-se as estratégias, mudam os governos, renovam-se os quadros, mas os equívocos continuam. Os usuários reclamam, as tragédias assistenciais repetem-se, as epidemias arrasam, os doentes morrem nas filas, faltam profissionais, os hospitais públicos entram em colapso. As justificativas oficiais não saem do escapismo. Ora é o povo que abusa da assistência, a indústria de equipamentos que transgride normas, ora a gestão que deixa a desejar. O modelo segue, porém, intocável, flutuando soberano e vazio nas vagas revoltas do caos.

A bola da vez é a humanização. O SUS deixou de ser obra humana e os usuários são assistidos por animais de outra espécie. Há que humanizá-los. É a onda mistificadora do momento. Um engodo para disfarçar as precariedades da saúde pública. Um biombo destinado a impedir que se veja a fotografia do descaso, nas cores reais da irresponsabilidade gerencial.

A preconizada humanização do atendimento à saúde do povo pobre é um misto de ingenuidade e faz-de-conta. Ignora o pensamento lógico de Paulo Freire, segundo o qual não se modifica o todo pela mudança de algumas de suas partes. Ou se muda o todo ou não se muda nada. Ora, o SUS é parte de um todo chamado Brasil. Não passa de ingenuidade acreditar que a sociedade brasileira seja menos desumana que o SUS. Ou, ainda, que a humanização da assistência à saúde humanizará o país.

Se toda a população residisse em moradias adequadas, trabalhasse em atividades dignificantes, recebesse salários de gente e não de indigente, tivesse acesso à educação humanista, contasse com uma justiça eficaz, desfrutasse de espaços urbanos fraternos e igualitários, o SUS teria as mesmas virtudes humanas da sociedade. Logo, o que urge humanizar não é o atendimento à saúde, mas a condição de vida dos atendidos. Uma questão de escolha: humanizar o SUS ou humanizar o Brasil?

 

Dioclécio Campos Júnior é médico, professor da UnB e presidente da Soc. Bras. de Pediatria