Os Muros e as muralhas e as minhas lamentações

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Um breve divagar sobre as conclamadas "internações involuntárias" do governo Alckmin para o manejo de usuários de Crack.

 

Em minhas leituras de férias, com certo tom de desordem e espanto, tal como é de costume minhas incursões literárias neste período, quando nos defrontamos com textos e escritos escondidos ou misturados a outras tantas tralhas do cotidiano, só acessíveis no ócio, encontro forças para retomar a escrita de vida, uma escrita de confronto, suscitada recentemente pelas últimas notícias frente a postura do governo paulista no cuidado dos usuários de substâncias psicoativas sediados nas chamadas “Cracolândias” (como se nesses pampas só vivesse o Crack, e não o poliuso de substâncias, ou mesmo a fome, a pobreza, a violência em suas múltiplas facetas, ou ainda, outros sentimentos de resistência, pouco enfatizados nos telejornais, como a esperança, a vontade de mudança, a persistência).

Num desses textos de espanto, encontro a menção de um conto de Kafka que versa sobre um imperador chinês que ordenou a construção de uma muralha para proteger suas terras dos bárbaros. Contudo a arquitetura da muralha era um tanto porosa, pois foi construída a partir de grandes blocos esparsos, com lacunas quilométricas entre os robustos rochedos armados que lhe davam forma e corpo. Ou seja, tratava-se de uma muralha inofensiva, uma muralha-fake, no claro e corrente anglicismo do internetês. O pior era que o imperador ordenou a construção da muralha já sabendo que o inevitável já ocorrera: suas terras já sediavam a morada de diversos bárbaros, tendo alguns já, inclusive, sitiado a praça defronte ao palácio imperial!

Este conto me remeteu de maneira chocante a atual postura de se lidar com os usuários de drogas que tem como morada as ruas, não só na capital paulista, mas nos grandes centros urbanos brasileiros. Parece-me que as políticas governamentais agem tal como fez o imperador chinês: além de não quererem enxergar o “problema” de uma maneira ampla e realista, querem construir atividades maquiladoras que tentam acobertar o inevitável. Uma dessas maquiagens mais perfumosas e encantadoras pode ser a tão aclamada terapêutica da “internação involuntária”.

Como futuro residente em psiquiatria seria um ingênuo se dissesse que a internação deva ser abolida das práticas de cuidado em saúde mental no Brasil. Embora a frente da “Reforma Psiquiátrica” tenha galgado muitas vitórias para a inserção dos pacientes portadores de transtornos mentais no mundo real, extra-muros hospitalares, cabe dizer que a internação continua sendo uma alternativa terapêutica desde que seja planejada, de temporalidade breve e que não venha desvinculada da necessidade de se construir redes de suporte e seguimento dos pacientes tanto pré quanto após o internamento.

Tal atitude de enfrentamento de pujança e caráter abrangente, pouco frequentadora dos discursos políticos por ser custosa (nos quesitos financeiro e de “labor” terapêutico), acaba por depositar esperanças demais em uma muralha fenestrada, tal como fez o dito imperador chinês. O que adianta internar um morador de rua sem ter, em conjunto com esta prática, uma série de outros arranjos que permitam a inserção social, o retorno a um abrigo, a reconstrução de vínculos familiares ou mesmo a capacitação e geração de renda amparando o processo terapêutico de detoxificação química? Não seria melhor, ao invés de se construir muros e muralhas, encarar o problema da dependência química sem rodeios, tendo em vista seus pilares individual, social e aos aspectos inerentes as drogas de abuso?

Em alternativa a construção dessa muralha, que em curto prazo será aclamada, tal como é a muralha da China, por seus aspectos imediatistas e visuais (tendo em vista que as ruas sem seus “craqueiros” não terá mais aquele “encômodo” perceptível, trazendo a “segurança e a liberdade” tão sonhados aos moradores que se veem “assustados” com tal situação desumana), deve-se ir além da falsa sensação de resolução de problemas pela tática do distanciamento e isolamento dos mesmos longe dos olhos. Contudo, o aporte a iniciativas eminentemente truculentas e sem diálogos francos traz à tona o fantasma de épocas passadas em que os “anormais”, os fora da norma, eram todos assumidamente tidos como “loucos e dementes” sendo trancafiados sem terem seus desejos e anseios atendidos. Por questões humanitárias criamos mais muros, mais hospitais, mais clausuras, sem pensar que a complexidade do tema “dependência química” requer esforços hercúleos e multifacetados tanto do campo da saúde, quanto da justiça, dos direitos sociais e da geração de renda e emprego.

É uma pena que se continue a construir com tanto afinco mais e mais muros, sem ver claramente que “os bárbaros” já estão no nosso cotidiano, na praça imperial, e que resistem ao abandono das políticas públicas sentindo em seus corpos a navalha da desigualdade geradora de uma vida hostil e intensiva que é o retrado escarrado da vida nas ruas. E, infelizmente, ao ao invés de se reconhecer a postura cega e de condizência social com tal abandono, se continua a apostar nos muros, nas muralhas e nos blocos monolíticos das “Casas de Deus”, nome antigo dos hospitais, na França, como o novo condomínio aos antigos moradores das terras áridas das “Cracolândias”.

 

Fabrício Donizete da Costa, 25 anos, médico generalista formado pela FCM-UNICAMP, futuro residente em psiquiatria pela mesma instituição.