Das Cavernas para o SUS

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por Paloma Graciano de Carvalho (Psicóloga Residente)& Rejane Maria de Sousa Pereira Oliveira (Assistente Social Residente)

 

Numa aula da Residência Multiprofissional em Estratégia Saúde da Família e Comunidade, UFT/ SESAU, o professor Robson propôs a realização de uma redação à partir do filme “A Guerra do Fogo”. Num primeiro momento, ao assistir ao filme, pensamos: “o que este filme tem a ver conosco, com as nossas práticas profissionais, e com o Humanizasus? Diante destas indagações, iniciamos a nossa reflexão, buscando um sentido nisso tudo. Enfim, vamos para o que interessa!

Um aspecto que chama muito a atenção no filme é a origem da linguagem e sua transformação em virtude da evolução das tribos. Isto nos remete ao resgate do diálogo, da comunicação e da interação entre membros de uma determinada comunidade, rodas de conversa, resgatada pela Política Nacional de Humanização como uma proposta pedagógica de resgate da subjetividade.

Além disso, as ações do filme giram em torno da conquista e da disputa pelo fogo, que representava o poder, fruto de um conhecimento, detido por apenas uma das tribos. Enquanto este poder estava centralizado, haviam guerras e lutas, mas a partir do momento em que o conhecimento foi compartilhado, foram estabelecidas outras formas de relação, que valorizavam a vida e a solidariedade.

Se compararmos a nossa contemporaneidade, podemos perceber que nos países e/ou nações em que o poder, o conhecimento, as informações estão centralizadas, os problemas sociais acentuam-se, em virtude da discrepância entre interesses (a classe que domina e aquela que é explorada).

Para uma sociedade democrática, como falado na Constituição Federal de 1988, fruto de movimentos sociais, é necessária uma reestruturação da sociedade brasileira, de modo a facilitar a horizontalidade e a transversalidade nas relações entre Estado, Política e Sociedade. Assim, surge a necessidade de valorizar o grupo enquanto espaço de construção e transformação social.

O fogo, naquelas comunidades, era sinônimo de sobrevivência, pois toda a tribo estava organizada em prol da manutenção do mesmo, que assegurava calor, alimento e proteção. Da mesma maneira, podemos pensar no acúmulo de capital como garantia de sobrevivência e evolução, nas sociedades contemporâneas, em que destacam-se aquelas nações que detém o conhecimento acerca da produção de tecnologias duras.

Mas, como na pré-história, estas diferenças geram alguns efeitos colaterais: guerra, fome e desigualdade social. Como alternativa para minimizar estas diferenças, o diretor do filme sugere o resgate do campo afetivo nas relações humanas, quando a moça da tribo mais evoluída apaixona-se pelo “herói” do filme.

O SUS enquanto estratégia de garantir o direito à saúde promovido pelo Estado torna-se ferramenta capaz de minimizar as desigualdades sociais e potencializar o bem-estar bio-psicossocial dos indivíduos. Ao garantir a saúde de uma população, busca-se alcançar uma qualidade de vida melhor, envolvendo aspectos que garantam a vida.

No filme, notamos que a tribo mais numerosa é justamente aquela que consegue produzir mais recursos que facilitem a vida de seus membros: linguagem mais desenvolvida, técnicas de cura e o acolhimento.

A guerra é apresentada como mecanismo para a manutenção da conquista deste poder nas mãos do mais forte, que por sua vez, era cobiçado pelos inimigos (tribos vizinhas). Neste contexto, ser mais forte fisicamente significava a sobrevivência e a manutenção da espécie.

Ao pensarmos em saúde enquanto um bem adquirido, podemos imaginar o quão é perversa a dificuldade de acesso a uma boa qualidade de vida. Daí a importância da PNH enquanto instrumento para efetivar uma saúde pública e da qualidade para todos, enquanto exercício de cidadania de trabalhadores, gestores e usuários deste sistema.

No filme, também são valorizados a razão, as relações humanas e o amor, como elementos fundamentais para evolução do ser humano. Então faz-nos agir em prol do resgate das relações humanas, dos sentimentos e da expressão do afeto enquanto condição para o desenvolvimento e crescimento dos indivíduos, ou seja, a busca do significado do trabalho através da coletividade.

O processo de aculturação também é outro fato importante retratado no filme, em que mostra as trocas de saberes e valorização do outro gerando um novo conhecimento. Então destacamos a educação popular, que tem como objetivo facilitar processo de aquisição e democratização do conhecimento valorizando o saber popular e a sua interação com o “saber científico” produzindo um saber capaz de ser compreendido por todos que participaram da construção do mesmo.

A convivência com a diferença é apresentada, no filme, como solução para as limitações encontradas pela tribo mais primitiva e crescimento para a tribo mais evoluída. As trocas de saberes são fundamentais para o desenvolvimento de ações de prevenção e promoção da saúde, se pensarmos nos dias de hoje.

A formação de vínculos afetivos representados pela formação da família, núcleo de uma nova nação, formada pela diferença individual, criando uma identidade coletiva também é destacada no filme. Esta cena nos faz refletir na própria formação cultural e populacional do Brasil, que incorporou vários aspectos de diversos lugares do mundo, formando uma linguagem própria, uma maneira singular de viver e conduzir as relações.

Ao dominar o conhecimento e a técnica acerca da geração do fogo, o herói do filme também liberta-se da guerra, das ameaças provindas do tempo, e da fome, ou seja, adquire a autonomia. Ele passa a participar ativamente do meio em que vive, transformando o outro e permitindo ser transformado pelo mesmo, concomitantemente.

A gestação da “mocinha” da história também trás uma reflexão acerca da esperança de uma nova condição de vida, a partir daquele contexto. A família, enquanto geradora de vida, de esperança e de transformação deve ser o foco de ações voltadas à saúde, como propõe a Estratégia Saúde da Família.

Assim devem ser também os estabelecimentos de saúde: capazes de produzir vida no lugar em que se (con)vive com a doença. O profissional de saúde necessita transformar a sua própria dor em criação, reconhecendo no outro a sua própria subjetividade, valorizando a vida presente em todas as relações.

Na relação entre as duas tribos, surgiu a necessidade de aprendizagem mútua, em que saberes são trocados e um conhecimento em comum construído. Deste modo, a importância da co-gestão, em que a vivência do outro torna-se fundamental para a abertura de novos caminhos e descobertas.

Mas nem tudo são flores, para que eles alcançassem este “status”, tiveram que enfrentar vários desafios, dentre eles permanecer numa árvore, sujeito à fome, frio e sede, para defender-se das garras dos leões. Isto é, em todo o processo de construção de algo novo, corremos os risco de enfrentarmos “altos e baixos”, momentos em que nos sentimos paralisados e amedrontados, mas que se aproveitados de maneira positiva, podem ser vistos como persistência.

O trabalhador da saúde, assim como o professor, necessita cultivar esta persistência em um ideal de coletividade, mesmo quando a realidade lhe parece desfavorável. Está aí o momento de novas descobertas – como o consumo de folhas para matar a fome, demonstrado no filme – que garantam a manutenção do movimento. O importante é utilizar-se das ferramentas (políticas públicas de saúde) para, junto à comunidade, produzir um novo saber que promova a vida e efetive o ideal de promoção de saúde para todos!