A importância da interlocução entre a Atenção Básica e os cuidados em Saúde Mental

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O presente texto trata-se de uma análise crítica a partir do artigo “Apoio Matricial: Cartografando seus Efeitos na Rede de Cuidados e no Processo de Desinstitucionalização da Loucura” (BELOTTI; LAVRADOR, 2015) publicado nos cadernos HumanizaSUS/Saúde Mental.

Partindo do pressuposto de que o Apoio Matricial se constitui como uma ferramenta em potencial no que se refere as possibilidades de inovar e prover maior eficiência no serviço prestado através da discussão de casos e intervenções conjuntas por equipes interdisciplinares (CAMPOS; DOMITTI, 2007), Belotti e Lavrador aventuraram-se em uma pesquisa de campo que tinha como objetivo principal investigar tanto os efeitos quanto as contribuições resultantes do aprimoramento e redirecionamento dos cuidados em Saúde Mental na Atenção Básica através dessa ferramenta.

A pesquisa basicamente consistiu em encontros de matriciamento que aconteceram no município de Cariacica/ES, contou com a presença da equipe de profissionais vinculados aos serviços especializados em saúde mental e atenção básica, durante esses encontros foram propostos a discussão e o compartilhamento de informações acerca das demandas e casos atendidos pelos serviços visando a interlocução entre os dois setores. Tendo em vista que “o apoio matricial em saúde objetiva assegurar retaguarda especializada a equipes e profissionais encarregados da atenção a problemas de saúde (CAMPOS; DOMITTI, 2007, p. 399)”.

Através do estudo realizado pelas autoras, as mesmas constataram que existe uma limitação decorrente da mecanização de procedimentos adotados pela atenção básica que gera como consequência a sensação de impotência pela equipe diante de casos “fora do padrão”, já que a mesma não tem um modelo de protocolo para se guiar. Além disso, os profissionais não têm responsabilidade alguma ao realizarem um encaminhamento, pois não o adequam as necessidades nem consideram a subjetividade do usuário que procurou o serviço, tendo em vista que a única preocupação durante o atendimento é a de que o solicitante não precise retornar à unidade (BELOTTI; LAVRADOR, 2015).

Não obstante, preza-se mais pela quantidade do que pela qualidade do serviço ofertado (BELOTTI; LAVRADOR, 2015) o que impede o seu aprimoramento na prática, na maioria das vezes exigência mor das próprios gestores, mas que reflete de forma negativa na insatisfação relatada pela população brasileira como evidenciamos comumente nos noticiários. Ademais, ainda segundo Belotti e Lavrador (2015), os próprios profissionais afirmaram não se sentirem qualificados para oferecer suporte aos usuários em sofrimento mental, pois não foram capacitados o suficiente em suas graduações para cumprir com as exigências dessa demanda.

Um estudo de investigação educacional realizado com médicos que atuam na rede de atenção básica, no município de Sobral/CE, corrobora tais afirmações, tendo em vista que dos 26 profissionais entrevistados durante a pesquisa, nenhum havia concluído curso de especialização em saúde mental e somente três deles já haviam atuado alguma vez em ações voltadas a saúde mental.  Além disso, os mesmos também referiram a sensação de despreparo devido abordagem limitada acerca do tema durante a graduação médica (ANDRADE; PEREIRA, 2018).

No que se refere as expectativas da equipe quanto ao apoio matricial, a equipe de atenção básica esperava que as pesquisadoras trouxessem até eles soluções imediatas ainda em conformidade com a intenção de afastar o usuário em sofrimento mental da unidade. O que, claro, não era possível nem a intenção. Logo, resistências e dúvidas surgiram quanto a resolutividade e os desfechos dos encaminhamentos propostos (BELOTTI; LAVRADOR, 2015). Todavia, Belotti e Lavrador (2015) persistiram em sua missão que visava possibilitar a criação de práticas inovadoras pela equipe que abrangessem a expressão da subjetividade dos profissionais envolvidos, sendo que essas novas práticas deveriam permitir que atuassem com liberdade e desenvoltura a partir de uma reflexão crítica do modelo de atuação até então adotado.

Ainda em consonância aos estudos realizados por Belotti e Lavrador (2015), Andrade e Pereira (2018) constataram que falta interesse dos profissionais no que se refere a tratamentos alternativos ao uso de medicamentos e a própria inserção da saúde mental na atenção básica, porém esses mesmos profissionais, contraditoriamente, reconhecem a necessidade de adequar o serviço na rede as demandas emocionais dos usuários assistidos e para tanto ressaltam que é de extrema importância a presença de um facilitador que possa orientá-los quanto a esse processo de adequação. A partir disso, reafirma-se novamente a relevância do apoio matricial ao propiciar a interlocução entre setores.

Com base no que foi exposto, cabe esclarecer quem são os agentes facilitadores dessa interlocução. Sendo o primeiro deles a equipe de referência que trata-se da equipe de profissionais responsáveis por conduzir inicialmente o caso a resolução, tendo em vista que são esses profissionais que recebem a demanda. Já o segundo agente, o apoiador matricial, é o profissional especialista em uma demanda que tem como função amparar e orientar a equipe de referência através do diálogo e de ações conjuntas que visam a assistência integral do demandante, pois, considera-se que especialistas isolados não são capazes de contemplar a integralidade, individualidade e subjetividade de um indivíduo (CAMPOS; DOMITTI, 2007).

Apesar do sistema de referência e contrarreferência, como afirmam Kantorski et al (2017) poder ser considerado de suma importância nesse contexto, visto que facilita o processo de encaminhamento nos diversos setores, ele é pouco dinâmico e não favorece uma prestação de assistência contínua. Sendo que sozinho é uma mera transferência de responsabilidade (CAMPOS; DOMITTI, 2007). Nesse sentido, o matriciamento surge no intuito aprimorá-lo e garantir o apoio integral e contextualizado aos assistidos.

Já a visão dos usuários sobre as unidades básicas de saúde baseada nas próprias experiências, evidencia que não há suporte proveniente dos profissionais ali existentes, pois em nenhum momento a atenção dos mesmos se volta a saúde mental dos usuários que procuram o serviço. Sendo que esse atendimento específico só é realizado após a realização do encaminhamento para o CAPs. Contudo, muitos usuários que chegam até esses locais precisam desse tipo de assistência naquele momento e não de um encaminhamento primitivo e protocolado (CAMPOS; MOREIRA, 2017).

Por conseguinte, fica claro que não há um pleno exercício do amparo a saúde mental dentro da atenção básica e, caso exista, é mínimo. Visto que se o problema é físico, facilmente é resolvido dentro das UBSs, agora, quando se trata de sofrimento psíquico imediatamente é realizado um encaminhamento aos setores especializado, sem ao menos avaliar se há necessidade ou não, sendo desvinculado qualquer tipo de cuidado mental da atenção básica, como se a saúde mental não fizesse parte do conjunto de cuidados relativos a integralidade do ser humano (CAMPOS; MOREIRA, 2017). Além disso, os pacientes afirmam que quando existe um atendimento sem que aconteça antes um encaminhamento especializado nessas unidades, não são atendimentos de forma continuada, o que por consequência não produz eficácia no tratamento (CAMPOS; MOREIRA, 2017).

Os usuários também não se sentem livres ao saírem do Centro de Atenção Psicossocial, pois acreditam ter uma vida restrita a eles e é visível que essas pessoas almejam uma ampliação desse tipo de atendimento para que possam ser acolhidos aonde quer que procurem por auxílio. Para tanto, os profissionais envolvidos devem reconhecer as dificuldades encontradas no que compete a assistência à saúde mental porque só assim será possível a transformação na rede atenção básica relativa ao acompanhamento integral do usuário em sofrimento (PANDE; AMARANTE, 2011). Alguns profissionais das redes de atenção primária já buscam participar de apoios matriciais na expectativa de compreender o diagnóstico, solicitar os encaminhamentos e determinar os tratamentos adequados, mas ainda assim sem atentar a um plano de ação que possa ser construído no território (CAMPOS; MOREIRA, 2017).

Considerando que o indivíduo necessitado de atenção à saúde mental, ainda deseja, ser visto como um cidadão comum em busca de respostas para suas diferentes demandas de saúde, e não como um portador de determinado “adoecimento” (CAMPOS; MOREIRA, 2017), se torna evidente a urgência da criação de estratégias voltadas ao aprimoramento profissional em saúde mental para que dessa forma se torne possível maior qualidade e integralidade de assistência no atendimento ofertado para que esses usuários sintam-se acolhidos de forma abrangente a todas as questões inerentes à sua saúde física e psicossocial.

Acadêmicas do curso de Psicologia/FISMA: Laura Irigaray; Paula Rocha

 


 

REFERÊNCIAS

 

ANDRADE, Daniela Correia Leite; PEREIRA, Alexandre de Araújo. Estratégia Educacional em Saúde Mental para Médicos da Atenção Básica. Rev. bras. educ. med., Brasília, v. 42, n. 1, p. 6-14, jan. 2018.

BELOTTI, Meyrielle; LAVRADOR, Maria Cristina Campello. Apoio Matricial: Cartografando seus Efeitos na Rede de Cuidados e no Processo de Desinstitucionalização da Loucura. Cadernos humanizaSUS/ Saúde Mental, Brasília, v. 5, p. 129-146, 2015.

CAMPOS, G. W. S.; DOMITT, A. C. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão de trabalho interdisciplinar. Caderno Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 399-407, fev. 2007.

KANTORSKI, Luciane Prado et al. Atenção psicossocial infantojuvenil: interfaces com a rede de saúde pelo sistema de referência e contrarreferência. Texto contexto – enferm., Florianópolis, v. 26, n. 3, 2017.

MOREIRA, Maria Inês Badaró; ONOCKO-CAMPOS, Rosana Teresa. Ações de saúde mental na rede de atenção psicossocial pela perspectiva dos usuários. Saude soc., São Paulo, v. 26, n. 2, p. 462-474, jun. 2017.

PANDE, M. N. R.; AMARANTE, P. D. C. Desafios para os Centros de Atenção Psicossocial como serviços substitutivos: a nova cronicidade em questão. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 4, p. 2067-2076, 2011.