O uso da homeopatia nas doenças epidêmicas: premissas científicas e propostas de aplicação
Empregando uma abordagem integrativa no diagnóstico e no tratamento dos distúrbios orgânicos (mentais, gerais e físicos), a homeopatia pode atuar de forma preventiva em grande parte das doenças agudas ou crônicas, adiantando-se ao processo de instalação das mesmas. Para realizar esse intento, o medicamento homeopático deve estimular uma reação sistêmica e homeostática do organismo contra as diversas idiossincrasias que predispõe ao adoecimento, sendo indispensável aplicar o princípio da similitude curativa segundo a totalidade de sintomas característicos da individualidade enferma (medicamento individualizado).
Além da reconhecida aplicação nas doenças crônicas, a homeopatia individualizada também pode atuar de forma resolutiva ou complementar nos casos agudos, incluindo as doenças epidêmicas. No entanto, para atingir esse intento, apresenta uma metodologia semiológica e terapêutica específica que não pode ser desprezada.
No caso das doenças epidêmicas, que pela virulência dos seus agentes provoca um quadro sintomatológico comum na maioria dos indivíduos suscetíveis, o medicamento homeopático individualizado (medicamento homeopático do gênio epidêmico) deve apresentar semelhança com o conjunto de sinais e sintomas dos pacientes acometidos pelos diferentes estágios ou fases de cada surto epidêmico. Segundo a abordagem hahnemanniana, e em conformidade ao acometimento individual, esses medicamentos individualizados devem ser prescritos de forma isolada, em sucessão ou alternância, mas nunca na forma de complexos homeopáticos (misturas de medicamentos numa mesma fórmula).
Conforme os relatos históricos descritos nas revisões sobre o tema citadas abaixo, o procedimento adotado pela British Homeopathic Society, durante a gripe espanhola de 1918, deveria servir de modelo para a abordagem semiológica e terapêutica de qualquer epidemia moderna, com estudos aprofundados dos sintomas característicos manifestos pelos pacientes nos diversos estágios da doença. Com esse intuito, na pandemia de gripe suína de 2009 (Influenza H1N1), a Liga Medicorum Homoeophatica Internationalis (LMHI) elaborou um protocolo eletrônico para a coleta de sinais e sintomas de pacientes e relatos de casos tratados em todo o mundo, a fim de sugerir, a posteriori, o(s) medicamento(s) homeopático(s) do gênio epidêmico para as diversas fases da doença e regiões.
Após o levantamento do medicamento homeopático individualizado (medicamento homeopático do gênio epidêmico) dos distintos estágios de uma determinada epidemia, ‘estado da arte’ da semiologia homeopática hahnemanniana, a aplicação da profilaxia e/ou da terapêutica em larga escala deveria ser acompanhada por estudos experimentais e observacionais corretamente delineados, a fim de que os resultados possam ser analisados segundo as premissas da epidemiologia clínica moderna, evitando-se os erros sistemáticos (vieses) e o acaso que contaminam resultados isolados.
Infelizmente, nos últimos anos, vimos observando em nosso país uma série de propostas para a profilaxia e/ou tratamento homeopático das epidemias de dengue e influenza que ferem a episteme homeopática hahnemanniana, sugerindo a aplicação de medicamentos homeopáticos complexos (mistura de medicamentos homeopáticos e/ou isopáticos, que desprezam a experimentação patogenética prévia e a individualização segundo a totalidade sintomática característica de cada estágio da epidemia vigente) para toda a população de uma região, sem utilizar protocolos de pesquisa estruturados que permitam avaliar a eficácia e a segurança de semelhante prática.
A distribuição indiscriminada de medicamentos homeopáticos que prometem ‘imunizar’ uma população perante determinada epidemia, sem que se tenha noção da eficácia, da efetividade e da segurança de semelhante prática, representa um risco à saúde pública, pois pode induzir o descaso dessas pessoas para com as medidas higiênicas e profiláticas comprovadamente eficazes, em vista de se sentirem ‘protegidas’ pela proposta homeopática.
No caso da isoprofilaxia dinamizada, que despreza a experimentação patogenética e o princípio da similitude, principais pilares da prática homeopática racional, o problema é ainda mais grave: propondo, de forma irresponsável, a substituição dos calendários oficiais de vacinação por ‘calendários de vacinas isopáticas’, sem as evidências científicas de sua eficácia e segurança, os defensores de semelhante prática ferem os princípios bioéticos da beneficência e da não maleficência.
Criticado pelo próprio Hahnemann no século XIX, esse empirismo é mais grave nos dias atuais, época em que o método científico está acessível e pode ser aplicado por todos. Envoltos num obscurantismo contracultural, muitos médicos homeopatas apoiam suas condutas apenas em sua ‘experiência pessoal’, desprezando os avanços positivos da ciência contemporânea e rejeitando conhecimentos indispensáveis ao desenvolvimento da ciência homeopática.
Por outro lado, para que possamos aprimorar o modelo homeopático em suas diversas áreas de atuação, faz-se necessária uma postura imparcial e isenta de preconceitos de médicos, pesquisadores e professores, permitindo que a homeopatia racional e científica tenha espaço para propor, discutir e aplicar seus projetos de pesquisa nas faculdades de medicina e hospitais universitários, a fim de que possa atuar de forma complementar e adjuvante nos inúmeros transtornos da saúde.
Referências:
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Teixeira MZ. Homeopatia nas doenças epidêmicas: conceitos, evidências e propostas. Revista de Homeopatia (São Paulo. Online) 2010; 73(1-2): 36-56. Disponível em: https://revista.aph.org.br/index.php/aph/article/view/36.
Teixeira MZ. Homeopatía: ¿Un enfoque preventivo de la medicina? La Homeopatía de México 2013; 82(687): 7-21. Disponível em: https://lahomeopatiademexico.com.mx/687_files/687%20LHM-2013%20dic-nov.pdf.
Teixeira MZ. Isoprophylaxis is neither homeoprophylaxis nor homeopathic immunization, but isopathic immunization unsupported by the homeopathic epistemological model: A response to Golden. International Journal of High Dilution Research 2014; 13(46): 54-82. Disponível em: https://highdilution.org/index.php/ijhdr/article/view/707.
Teixeira MZ. La isoprofilaxis no es homeoprofilaxis ni inmunización homeopática, sino inmunización isopática, y no se fundamenta en el modelo epistemológico homeopático: respuesta a Golden (parte 1 de 2). La Homeopatía de México 2015; 84(696): 13-26. Disponível em: https://lahomeopatiademexico.com.mx/696_files/696%20LHM-2015%20may-jun.pdf.
Teixeira MZ. La isoprofilaxis no es homeoprofilaxis ni inmunización homeopática, sino inmunización isopática, y no se fundamenta en el modelo epistemológico homeopático: respuesta a Golden (parte 2 de 2). La Homeopatía de México 2015; 84(697): 5-19. Disponível em: https://lahomeopatiademexico.com.mx/697_files/697%20LHM-2015%20jul-ago.pdf.
Teixeira MZ. Clinical research protocol to evaluate the effectiveness and safety of individualized homeopathic medicine in the treatment and prevention of the COVID-19 epidemic. Revista da Associação Médica Brasileira 2020; 66(4): 405-406. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32578770/.
Leituras Associadas:
Isoprofilaxia não é homeoprofilaxia – Críticas à vacinação “homeopática”
Epidemiologia Clínica Homeopática na COVID-19 – Partes 1 e 2 (Lives AMHB #HomeopatiaEmAção#)
Debate sobre o uso de nosódios do SARS-Cov-2 na Covid-19 – Website Homeopathic Horizon