Quase dez da noite de um feriado. Assim como tantos outros trabalhadores e trabalhadoras da saúde inicio uma jornada de trabalho.
Uma atividade que não está prevista na minha ficha de produção, mas que justifica quase que de forma integral a minha existência dentro do sistema.
“Se não me deixarem criar, eu saio da saúde pública.”
Quantos de nós não dizemos ou ouvimos frases como essa?
Nesse 1° de Maio, quero tensionar essa formulação.
Afinal, quando no 1° de Maio de 1886 trabalhadores iniciaram uma greve em Chicago eles reivindicavam melhores condições de trabalho, entre elas a redução da jornada de trabalho que beirava 17 horas diárias.
Será que passados mais de 130 anos, não estaríamos dentro de novas armadilhas?
2019 é um ano estratégico para a manutenção do Sistema Único de Saúde, seja pela 16° Conferência de Saúde, seja pelas elaborações dos planos de governo nos âmbitos nacional e estadual.
Mas também é um ano de muitas perdas sociais e momentos nos quais nos perguntamos: até quando vale a pena resistir?
Parte da força de nossa resistência reside em nossos sonhos em implementar e manter vivo o Sistema Único de Saúde.
Parte do nosso salário é pago com a gratificação de manter viva a força de um sistema mais justo e equitativo e que, por um acaso, passa pelo sistema de saúde. Quando dizemos “manter vivo”, é de inserir em nossas políticas idosos, LGBTs, população em situação de rua, população rural, com doenças raras, ou seja, todas e todos, e com suas especificidades.
A grande potência do SUS é que ele pode se moldar às necessidades do território e das populações.
Mas será que isso é suficiente?
Será que ser sustentado pelo sonho do SUS é suficiente?
Desde a promulgação da lei 8142 de 1990, um item permance quase que de forma acessória na carreira dos trabalhadores e trabalhadoras da saúde: o Plano de Carreira, Cargos e Salários (PCCS).
E porque essa discussão é importante?
Fui muito impactado pela leitura do livro Uberização, de Tom Slee. Nessa obra, o sociólogo analisa o fenômeno da economia de compartilhamento, como a de aplicativos como o Uber e o Air BnB.
O que isso tem a ver com o SUS?
Na obra, Slee demonstra como a discussão da economia do compartilhamento, que surgia como uma alternativa menos pedratória de microeconomia baseada em relacionamentos interpessoais de base comunitária contra as grandes redes internacionais foi desenvolvendo uma tecnologia de compartilhamento que foi rapidamente comprada por grandes empresas internacionais, sendo o caso da UBER um dos grandes símbolos.
O processo, que parece ser o desenvolvimento simples de uma empresa de alcance local para internacional, no caso da economia de compartilhamento, tem resultados mais graves. Porque o foi que foi vendido (e é vendido) por empresas de ‘compartilhamento’ como a UBER e a AirBnB não é somente a tecnologia de alugar um carro ou quarto. A grande perda é que juntamente com a dinâmica de carrinhos que se aproximam de você na tela do celular, a UBER comprou o sonho de uma economia baseada em trocas mais justas e menos controladas por grandes empresas.
O que a UBER vende, além do seu aplicativo de viagens baratas, é de motoristas que se sentem como Hobin Hoods contra o capitalismo malvado controlado pelas cooperativas de táxis.
Mas na verdade, o que controla os motoristas de Uber é um sistema nada claro de pontuação e ‘prestígio’ junto aos passageiros.
E é isso, caros trabalhadores, uma pessoa controlada por um aplicativo brigar contra um cooperado taxista é absurdo sim, se pensarmos que no imaginário dos motoristas de UBER eles estão contra algum inimigo malvado controlador de tudo.
Como isso se liga ao SUS?
Desde de 1996, com a Reforma do Estado Brasileiro, os serviços de saúde foram abertos ao processo de ‘contratualização’, o termo técnico para a terceirização, que vem ocorrendo nas mãos das Organizações Sociais de Saúde.
Esse processo logo foi aplicado ao SUS, a ponto de serviços da atenção básica, em várias cidades do Brasil, serem ofertados por empresas contratadas por órgãos públicos.
Sim, somos motoristas UBER da saúde pública. [A ideia inclusive tem sido aventada por diversos gestores] [Aqui 1] e [Aqui 2]
Avaliados por sistemas injustos de produtividade. Demitidos e recontrados sem nenhum respeito às nossas histórias nos serviços.
Quantos de nós não vê aumento real em nossos salários, e somos sustentados por agradecimentos e festas de fim de ano, como as promovidas pela Viva Rio? OSS do Rio de Janeiro?
E com isso, quem perde?
Com certeza o ‘produto’ final, o atendimento e acolhimento, ocorre.
Mas e nossa valorização? E a saúde do trabalhador?
Para isso existe a Política Nacional de Humanização.
Aqui, é preciso tensionar além.
Mesa de Negociação.
Gerência de Portas Abertas.
Onde estão as experiências exitosas de implementação da Gestão Participativa e Cogestão?
É preciso relembrar, sempre que possível, que não há sonho que se sustente de forma empírica em nossas práticas, que todas as nossas ações precisam ter sentido e memória em nossas produções.
Até quando iremos promover acolhimento e humanização no ‘tempo que sobrar’ em nossa rotina?
Mas se nos faltam lugares para sonhar, a educação permanente pode ser um espaço de potência.
Afinal, nada como sonhar em humanização sendo ‘capacitado’ por empresas como o Albert Einstein que promove cursos de Humanização nos Serviços de Saúde à bagatela de R$ 420,00.
Afinal, será que nossos sonhos viraram o capital dos outros?
Por Raphael
Oi Rui,
Interessante a comparação entre o SUS e a UBER.
Ouvindo o Podcast AvanSUS alusivo ao dia do trabalho disponível aqui:
https://castbox.fm/channel/AvanSUS-id2017688?utm_source=a_share&utm_medium=dlink&utm_campaign=a_share_ep&utm_content=AvanSUS-CastBox_FM&fbclid=IwAR1JeWcfrRWn9ijVQp99bHUNwNbRJdBnjsTaITgwqwts_dwjypDU8TYwkSA&country=br
Uma das sindicalistas disse que fora do SUS é oferecida muita Hotelaria, esse curso de Humanização do Albert Heinstein é um exemplo claro disso…
Não quero ser pessimista como um beatle e dizer que o sonho acabou, mas a realidade é caótica!
Que consigamos sobreviver e resistir, ainda que mais fracos.
AbraSUS,
Raphael