AINDA HÁ TEMPO

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Por Ray Lima

 
Bem, como ia dizendo, há muito tempo. Todo cuidado é pouco, mas há muito tempo. Às vezes nos parece um "bocado de molambos molhados manchando o chão," mas sempre que a gente olha, observa, escuta direitinho acaba descobrindo que o que tem dentro é gente ainda, é gente ainda. Um certo dia pela VOZ DA RUA
 
Já alertava o profeta Padinho Né:[1]
um ser que ama
não desama nem maltrata.
 
Gritava um homem da rua
 cantando com sua voz
 embargada de pigarro
 
em sua língua rota e nua:
lá no tempo em que nasci
logo aprendi algo assim –
cuidar do outro é cuidar de mim,
 cuidar de mim é cuidar do mundo.
 
Me lembro um pouco de tudo;
de mim, de mim quase nada.
Por isso viver é bom, viver
é bom pra quem sabe amar.
 
Outras vozes, outros tempos,
 outros fins pelo avesso;
 sabidos são os afetos,
 o amor é terapêutico.
 
Não se dando por satisfeito o homem da rua tenta arrancar um grito de um ser de voz já perdida como se acreditando na recuperação de sua potência não em altura, na potência física do som, mas na potencialidade e propagação do sentido que poderia dar a ela. Então primeiro chama atenção para pelo menos dois tipos de ser:
 
O “ SER INSUSTENTÁVEL[ 2]” que
 
Ontem, hoje, amanhã…nada.
Como água em bolha flutuar a esmo
          no tempo seco, sem invernada.
 
Amanhã nenhuma semente semear – mais um dia
de sugação e grilagem. Justo nessa era de solstício
e estiagem encarnar uma trepadeira de qualquer espécie –
esterco volumoso em ascensão.
 
Amanhã: caule sem folha. Nem flor, nem fruto.
Garrancho seco, cosmético ou qualquer artifício
        chamado produto.
 
Amanhã do que se plantar, o resto:
       do fogo, a queimada;
       da vida, o esqueleto, a ossada;
       da humanidade, o fosso e o excremento.
                                 
E arremata com a “ SUSTENTABILIDADE DO SER[3]:”
 
O ser torna-se sustentável
quando revela humanidade nas atitudes,
quando constrói harmonia nas relações;
quando gera sintonia nas conversas,
nos olhares, nos projetos, nas ações.
 
O ser torna-se sustentável
quando a complexidade de suas idéias
e do seu pensamento torna simples
a vida das pessoas.
 
O ser torna-se sustentável
quando dá vida a tudo que é criação,
quando a morte não é opção –
onde o vivo torna-se mais vivo
e, à medida que vive, mais irmão.
 
O ser torna-se sustentável
quando se multiplica ao mesmo tempo
em que se preserva ; se valoriza a pessoa
que é, como é; se embeleza o ato de viver.
 
O ser torna-se sustentável
quando se mistura a biodiversidade dos universos –
do artístico ao científico, do erudito ao popular;
do humano ao não humano; do universal ao singular;
quando ganha a vida um ritmo, uma alegria, uma leveza,
um charme infinito que não encerra.” 
 
Como a conversa encompridou- se, a praça que há pouco estava repleta de gente aos pouquinhos foi ficando vazia, vazia e o homem voltando a falar sozinho, para si mesmo. Por favor, não me peçam para dar conta dos rumos que tomaram ou tomarão essa história. Porém, o mais interessante é que cada um ou cada uma que saía dali levava consigo o peso daquele momento para alguns, a intensidade para outras, e a força daqueles gestos para todos nós. Era como se todos(as) entendêssemos que era também nossa missão como seres humanos ou desumanizados pela lógica dos nossos tempos buscar sentido para nossas relações com o mundo, com a vida e com o outro, agora redescoberto por um homem totalmente desprovido de apoio, de acolhimento, de cuidado – maus tratos de uma sociedade que cobra dele a humanidade que nunca foi capaz de ofertar-lhe. Contudo, o homem da rua insistia em sua pregação livre e já sem voz nos acenava com gestos que deixavam sua mensagem mais clara do que com qualquer palavra grafada no melhor português. Numa leitura cuidadosa poderíamos decodificar mais ou menos o seguinte:
 
DESARME-SE[4]
 
Desarme-se.                                                                     
Desarmo-me quando armo minha alma de paixão.
Desarmo-me quando armo um grande abraço
   em torno do meu irmão.
 
Desarmo-me. Desarme-se.                                                                 
Desarmo-me quando armo estratégias
 que desasnam atitudes de amor.
Desarmo-me quando torno a dor do outro
 a minha própria dor.
 
Desarmo-me. Desarme-se                                                                 
Desarmo-me quando aprendo a não matar
o que nasceu para viver e prosperar.                            
Desarmo-me. Desarme-se. Aproxime-se. Abrace-me
o coração. Pulse comigo sem ódio nem dor.
 
Já dobrando a esquina olhei para trás, quando ele gesticulava diretamente para mim como se me exigisse uma resposta concreta, urgente e duradoura:
 
 “Como ser em um mundo lâminas sem ferir nem se deixarferir? [5]
Como ter o poder de corte e não cair na tentação de querer mutilar o ser do outro?
Como criar um modo de vida seguro para seres tão frágeis, mas tão potentes e perigosos também?
Como desenvolver tecnologias para uma arte de viver em paz?
Como sermos mais humanos em um mundo dominado pela lógica capitalista em que o humano em nós tem se tornado cada vez menos importante?”
 
Dali para frente, andei rua acima rua abaixo pensando e experimentando gestos com as pessoas que ia encontrando pela frente, formulando diálogos do tipo:
 
“Se tiveres que me acolher
que me acolhas por inteiro,
de vida inteira, cultura adentro.
 
Se quiseres que te acolha
diga-me primeiro quem és
num discurso franco e leve.
 
Se me quiseres mais leve,
terapeuta – tu ou eu?
O que me dás? Do que precisas?
 
O diálogo é que nos traz
a vestir uma só camisa
de conforto e harmonia.
 
Às vezes é questão de horas,
às vezes durante dias,
mas desistir também não posso.
 
Endosso tua palavra.
Escuto teu sentimento.
Sinto um ser em movimento.
 
Esqueci quem era eu.
Me olvidei de onde vim
para ser um outro em ti.
 
Assim posso te acolher
e contigo também eu
sublimar a minha prática.
 
Acho que te compreendo
em saber me transformando
mais humanos nos tornamos.
 
Clínica, terapia, ser cuidado; pelas
singularidades reconhecidas nos papéis
que assumimos, construímos nossos vínculos.
 
Agora nos aporta a tolerância
e o diálogo como guia seguro
na resolutividade dos problemas do mundo?”
 
(Ray Lima – in Roteiro Cenopoético para Curso de Terapia Comunitária na Oca do Índio – Projeto Quatro Varas – Beberibe-Ce – 2008. Facilitado por Johnson Soares, Vera Dantas, Ray Lima e Mayana Azevedo)
 
 
 
[1] (Lima, Ray. wwwcenopoesiadobras il.blogspot. com)
[2] (Lima, Ray. wwwcenopoesiadobras il.blogspot. com)
[3] (Lima, Ray. A Sustenbilidade do Ser. wwwcenopoesiadobras il.blogspot. com)
[4] (Lima, Ray. In Tudo é Poesia Vol.I – Queima Bucha 2ª edição. Mossoró-RN: 2005)
[5]Lima, Ray. Roteiro Cenopoético Lâminas. 2009