Funcionamento da Atenção Básica na Espanha (um relato)

14 votos

Tenho muita coisa para contar sobre as consultas que acompanhei. Tentarei resumir.  Como todo lugar, tem muita diversidade conforme o centro, o bairro… Até agora fui a 4 centros de saúde, 3 em Barcelona e 1 em Madrid, acompanhei cerca de 200 consultas em Atenção Primária. O que conto são informações que me passaram ou impressões que eu tive, não são necessariamente a realidade absoluta de todos os centros de saúde e pode ser que mude minha visão até eu voltar. Aí vai um pouco do meu "diário de campo":

Para começar, a grande maioria das pessoas, cerca de 90% da população, usa o sistema público de saúde, como é em quase toda a Europa. Só vai no particular os muito ricos, e mesmo estes, acabam indo no público por algum motivo. E 60% dos médicos que se formam trabalham na Atenção Primária, e todo mundo sabe o que é e conhece bem seu "medico de cabecera" (médico de família).

OS CENTROS DE SAÚDE:
A maioria dos centros de saúde são prédios de vários andares onde tem especialidades médicas e CAP (Centro de Atención Primária) com equipes de atenção primária. Visitei um com 11 equipes de atenção primária, cada uma com 1 médico e 1 enfermeira, outro com 20 equipes… O centro abrange uma região da cidade, que é dividida entre as equipes. Cada equipe tem um número e um nome. O número de pessoas por equipe varia, a maioria tem cerca de 1800 pessoas, mas tem de 3000. Acompanhei equipe em que o médico e a enfermeira estão lá há 12 anos, outra há 8 anos e outra há 3 anos (saiu da residencia há 3 anos). Mas é muito difícil ficarem mudando de centro, não porque não podem, só mudam em situação extrema.

TEMPO DE CONSULTA
: Em Barcelona, as enfermeiras têm 10 minutos por consulta e os médicos 7 a 10min. Me pareceu que não acham pouco. Até gostariam que fossem um pouco mais, mas não é algo que reclamam. E dão conta! Estão acostumados, assim como os pacientes. Na agenda há alguns intervalos de meia-hora para “descansar ou recuperar tempo de atraso da consulta, depende do médico”. Quando contei que os médicos no Brasil em geral têm 20 min e as enfermeiras 30min, acharam demais. Um dos médicos me disse que em consultas longas, em geral, o médico quer colocar a sua agenda e se fizermos uma consulta centrada na agenda da pessoa, é possível fazer muito em pouco tempo. Diz que faz o que é possível fazer com o tempo que tem, que prioriza o mais importante e se percebe que precisaria aprofundar mais algum tema, pede retorno. Falou que as pessoas já sabem e estão acostumadas com esse tempo da consulta. A diferença é que vê seus pacientes cerca de 4 a 6 vezes por ano, e a maioria há 12 anos.

SOBRE O TEMPO DE CONSULTA II:
  No início quando eu ouvia sobre o curto tempo pensava "que absurdo, isso nao está certo!". Mas vejo essa mesma reação por parte deles aqui quando conto que em muitos locais no Brasil demora 2 meses para marcar uma consulta com médico de família e muito mais com outras especialidades. E não sei bem porque perdemos a indignação com isso. E é inevitável pensar que o acesso está, entre muitas coisas, ligado ao tempo de consulta e o tempo de consulta ligado com a longitudinalidade. E acho que aí está o ponto de dificuldade, porque não temos a experiência no Brasil da longitudinalidade, são raros os casos de MFC que estão há muito tempo no mesmo local. Pelo que sei, a média de tempo de um médico no mesmo local é 6 meses. E claro que isso tem a ver com condições de trabalho, que inclui remuneração, educação permanente, horário de  trabalho, material mínimo (nao ter que perder tempo "catando" material de consultório pela unidade), equipe, estimulo para permamecer no mesmo local (na Espanha há um estimulo financeiro no salário para isso)…
  Enfim, a questão é complexa, porque envolve muitas coisas. Passa também por uma questão cultural, que nós como médicos temos a visão que uma consulta de 7 minutos é uma consulta ruim. Mas, às vezes, é uma coisa bem pontual, e sendo bem objetivo pode ser uma excelente consulta em 7 min e podemos aproveitar o resto do tempo para usar com pacientes que precisam mais. Vi consultas muito boas nesse tempo, que fiquei de queixo caído! Acho que talvez seja preciso um treinamento específico. E tem a questão cultural por parte dos pacientes, que na Espanha já estão acostumados com esse tempo e sabem que se não conseguirem falar tudo nessa consulta, conseguirão facilmente outra consulta no dia seguinte, se for preciso. Diferente do Brasil, que como é muito difícil conseguir uma consulta, quando entram no consultorio querem aproveitar o maximo o tempo, "sugar" tudo que pode, porque sabe que vai ser dificil estar alí novamente.
   Bem, na minha opinião, eu acho que prefereria fazer consulta mais
curtas, atender mais pessoas, mas também ter uma carga horária diária de trabalho menor, ter uma quantidade adequada de paciente por equipe e boas condicões de trabalho, como é no sistema espanhol. Me parece que o fato de trabalhar menos horas por dia dá um "gás" para atender mais. Sei lá, impressão minha, posso estar equivocada.
   Bom, este tema é uma boa discussão porque envolve melhorias e
reflexões em muitos pontos importantes do nosso trabalho!

HORÁRIO DE TRABALHO: todos da atenção primária trabalham 7h por dia, sendo que 1h/dia é para reuniões clínicas/discussão de casos…. Em geral, 3 dias de manhã e 2 à tarde (ou vice-versa), como das 08 às 15h e das 14h às 21h. Fazem as reuniões clínicas no horário em comum dos dois turnos, das 14h às 15h. As enfermeiras fazem coleta de sangue na primeira hora. A enfermeira e o médico de cada equipe fazem os mesmos horários. Se precisam sair para mestrado ou doutorado, têm que repor o horário, mas se for para congresso ou cursos não (tem um máximo por ano). Não há nenhum tipo de cartão-ponto ou algo assim. Quando perguntei isso a enfermeira me falou “Somos responsáveis pelo que fazemos!”.

PRODUÇÃO: Os médicos fazem cerca de 500 consultas por mês (contando as visitas domiciliares). Não acham que é muito. Não parece ter uma pressão “este mês sua produção baixou…”, se preocupam é com o tempo para marcar consulta. Se começa a demorar mais de 48h, aí sim, que começa a complicar, porque as pessoas reclamam. Aqui se preocupam muito com o acesso à marcação. E é óbvio que uma coisa está relacionada a outra, mas parece que os gestores no Brasil não vêem essa obviedade, porque não demonstram preocupação que demora 3 meses para marcar uma consulta, a não ser é claro se sair no jornal ou algo assim. Mas os médicos têm metas para atingir, que se atingem ganham mais. Bom, não sei se essa forma de trabalho deles é boa ou não, o que eu sei é que com os médicos e enfermeiras com quem conversei não reclamaram do número de consultas por dia ou do tempo e
também não vi nenhum paciente reclamando do sistema, nem reclamações em jornais.

MARCAÇÃO DE CONSULTAS: as pessoas podem agendar por telefone ou pela internet, em geral conseguem uma consulta em 2 dias úteis. Não são obrigados a consultar com a equipe de referência da área, se não gostou pode trocar, a menos que a equipe já esteja com um número muito grande de pessoas (não sei qual seria). Não acontece nada se faltam, nenhum tipo de punição. Pode ser agendado também um “RT – repasso telefônico”, que é quando um paciente liga e pede para o médico ligar. Aí fica no final da agenda e quando o médico puder, liga e anota no prontuário o que foi conversado.

PRONTUÁRIO: eletrônico, varia conforme o distrito, tem lista de problemas dividida em problemas ativos e passivos (que já teve e não tem mais). Percebi que alguns escrevem pouco no prontuário, como 3 linhas e outros escrevem bastante sim. E pode-se colocar mais informações específicas clicando em cada problema.

FARMÁCIA: não há farmácias nos centros de saúde, além de medicações para uso de urgência. Com a prescrição a pessoa vai a qualquer farmácia comercial e pega a medicação. Se é idoso ou aposentado ou com algum tipo de deficiência, não paga nada (não são todas as medicações) e o governo reembolsa a farmácia. Os demais pagam 40% do valor da medicação se tiver uma prescrição pública. Se for uma prescrição privada, pagam o valor total. É claro que muita gente vai ao centro de saúde só para pedir para trocar a prescrição, mas os médicos não são obrigados a trocarem, há uma lei dizendo isso. Alguns já deixam na porta do consultório. É claro que se avaliarem e acharem que a medicação está correta e de acordo com o que fariam, podem trocar. Quando os médicos estão prescrevendo já aparece os preços das medicações do lado, porque não trabalham só com genéricos. Mas tem medicamentos considerados essenciais que tem um preço máximo, como antihipertensivos e antidepressivos.

URGÊNCIAS:
há espaços na agenda para atendimento à demanda espontânea. Num CAP era de 30 min no início e 40min final do período e num outro CAP eles têm dois espaços de 30min durante a agenda e mais 30min no final. Num outro CAP tem um médico de família e fica para atender só urgências. Nesse caso, se chama médico de reforço, que cobre também as férias dos outros, geralmente médicos que estão entrando no sistema. Se uma pessoa tiver uma urgência após o centro de saúde fechar, pode ir a um centro de saúde continuados, que são centros de saúde que ficam abertos mais tempo ou a um hospital. Podem ir a qualquer um desses centros. Os prontuários são interligados com os centros continuados, dependendo do distrito. Mas o médico me falou que há um projeto para integrar tudo.

ATIVIDADES DAS ENFERMEIRAS: além das consultas de condições crônicas e agudas (não vi nenhum atendimento de aguda), grupos e visitas, fazem ECG (caso o médico peça, há no centro de saúde, faz e mostra para ele), espirometria, lavagem de ouvido, coleta de sangue, vacinas, curativos. As vacinas e curativos geralmente são agendados. A enfermeira que acompanhei faz muito aconselhamento para tabagismo, trabalha com entrevista motivacional (é professora do assunto). Perguntei se fazia grupo para tabagistas, disse que não, mas que gostaria. Recebe alunas de enfermagem do terceiro ano que a acompanham. Observei que fazem muito a parte de aconselhamento de mudança de estilo de vida. Por exemplo, teve uma mulher que veio porque “eu falei para o médico que queria emagrecer e ele me falou para marcar com você.” E ela fez uma abordagem com metodologia centrada na pessoa, bem interessante. Faz parte da AIFICC (Associación de infermeria de família e comunitária da Catalunya).

A DEMANDA DOS MFC
: Não fazem consultas de crianças nem de gestantes, mas a enfermeira me disse que tem ouvido falar que provavelmente terão que começar a fazer. Diz que já tem algumas enfermeiras que fazem parte do programa “ Niño sano” (Criança sadia) que faz puericultura até 1 ano. Em outras regiões da Espanha e na zona rural a equipe de atenção primária atende crianças e gestantes e alguns fazem até o parto. A maioria das
consultas que observei foram de idosos. Me surpreendi com a quantidade de idosos sozinhos. Vi um idoso na rua andando de cadeira de rodas na calçada sozinho. Muitos andando de bicicleta… Li no jornal que Barcelona tem 15 mil pessoas com mais de 90 anos.

IMPRESSÃO GERAL dos médicos de família:
os que acompanhei (é uma amostra especial) demonstraram estar muito atualizados, dedicados, são bem ativos na sociedade de medicina de família daqui e disseram que gostam muito e estão bem satisfeitos com seus trabalhos na Atenção Primária. É claro que como em qualquer lugar, há profissionais ruins e bons. 

 

SALÁRIO: o  MFC inicia sua carreira ganhando aproximadamente 2200 Euros e pode chegar no final a receber 3000. Um enfermeiro inicia com um salário de 1600 Euros e pode chegar a 2000 Euros. O que mais influencia o aumento do salário é o tempo de carreira. A maioria das províncias, no entanto, possui pagamento por performance, o que pode incrementar uns 3mil Euros no final do ano. Os itens (ver pag 9 e 10 do documento pdf do site https://pub.bsalut.net/risai/vol1/iss1/7/ que o Paulo ja tinha enviado para lista) que fazem parte do ganho por performance incluem acesso (se tempo maior que 48h para agendar consulta); controle dos pacientes crônicos como Hb glicada em diabéticos, perfil lipídico daqueles com AVC; e há alguns bem interessantes como ganhar pontos por não fazer rastreio de próstata acima dos 74 anos.

Marcela Dhoms, médica, formada pela UFPR há 6 anos,
fez residência em Medicina de Famílía (integrada com residência
multiprofissional) na UFSC em 2004-2006, trabalho num PSF em Florianópolis há 3 anos, com supervisão de alunos de medicina na Atenção Primária e é  mestrando em Saúde Pública na UFSC, sob orientação do prof Charles Tesser.

PS: o relato completo está no arquivo anexo

PS 2: Marcela autorizou a publicação do seu relato, inicialmente destinado a uma lista de discussão