Quando o imprevisto enriquece a melodia

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Em Recife, a incorporação do Acolhimento como diretriz mostrou que o trabalho na atenção básica pode ser organizado para outras necessidades, fomentando a grupalidade e conquistando a credibilidade da população

 

O visitante desavisado que chegue numa manhã comum à Unidade de Saúde da Família Córrego da Bica, localizada na comunidade do Brejo da Guabiraba, periferia da zona noroeste do Recife, pode pensar que está diante de mais um caso de “caos na saúde pública” semelhante aos muitos veiculados pela mídia.

O cenário do lugar, à primeira vista, parece mesmo caótico: enquanto mães com crianças de colo, idosos e outros usuários entram e saem dos consultórios, pleiteiam atendimento no balcão da recepção ou aguardam sentados, profissionais de saúde dentro das salas ou circulando nos corredores parecem em meio a uma operação de guerra para dar conta da demanda de atendimento da região – que, numa já avançada manhã de terça-feira, ainda é grande.

Passada a primeira impressão e com um olhar mais atento o visitante percebe, entretanto, que não é testemunha de nenhuma calamidade. Pelo contrário: o que tem diante dos olhos, naquela manhã quente de terça-feira, não é nada mais que um exemplo de atenção básica resolutiva e solidária em plena atividade.

“Algum tempo atrás, você veria uma movimentação de gente bem parecida com essa aqui. Só que antes eram pessoas desesperadas tentando conseguir atendimento; agora, são pessoas conseguindo”, resume a médica Ivonete Wanderley, que integra uma das quatro Equipes de Saúde da Família vinculadas à unidade.

 

Quando diz “algum tempo atrás”, Ivonete faz referência ao período anterior a maio de 2009, quando o Córrego da Bica, que  funciona como Unidade de Saúde da Família desde 2001, começou a trabalhar sob a lógica do Acolhimento, diretriz preconizada pela Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS (HumanizaSUS).

Até então, a USF Córrego da Bica operava seguindo o tradicional modelo da chamada “demanda espontânea”. Todos os dias, os usuários eram atendidos por ordem de chegada em esquema de “porta aberta”, sem qualquer tipo de avaliação ou triagem prévias. O resultado, relatam os profissionais do Córrego da Bica, era bastante conhecido: longas filas para marcação de consulta que começavam a se formar já nas madrugadas e grande quantidade de usuários que acabavam não sendo atendidos, provocando um alto grau de insatisfação na comunidade e na própria equipe da USF.

“Era ao mesmo tempo desgastante e frustrante”, lembra a dentista Márcia Rangel, que atua na saúde bucal do Córrego da Bica desde o início de 2008. “A gente não conseguia atender um paciente sem ser interrompida várias vezes por outros usuários batendo na porta do consultório em busca de atendimento. Sendo que, em muitos casos, a pessoa não tinha nenhuma necessidade urgente, precisava apenas de uma conversa, de uma orientação”, explica.

 

A médica Ivonete Wanderley também não sente saudade do passado recente da unidade: “A gente trabalhava sob pressão e acabava tendo que atender os pacientes com pressa para poder dar conta da fila que ficava lá fora. No fim das contas, não atendia ninguém com a devida atenção”.

A agente comunitária de saúde Edna Guerra completa: “O que acontecia antes era que cada médico era responsável pelos pacientes da sua equipe e ponto final. Se chegassem pacientes da equipe com caso de prioridade, o médico tinha que atender. Com isso um médico chegava a fazer 20 consultas numa manhã. Quando chegava ao limite, o médico acabava mandando o paciente voltar”.

Essa forma de operar levou o Córrego da Bica a ser uma das unidades campeãs no quesito reclamação dos usuários, que chegaram diversas vezes a denunciar à imprensa local a dificuldade de acesso a consultas médicas. Mas o atendimento à comunidade não era o único aspecto afetado.

“A Bica era tida como uma das piores unidades para trabalhar na cidade”, lembra Cláudia Soares, apoiadora institucional da Gerência de Atenção Básica da Secretaria Municipal de Saúde de Recife. “Era uma equipe complicada com relação ao processo de trabalho: cada um fazia do seu jeito e havia muitos conflitos internos. Por conta disso é que havia uma alta rotatividade de trabalhadores”.

Foram justamente os trabalhadores que começaram a reverter a história do Córrego da Bica, que parecia condenada a ser um exemplo de SUS que não deu certo. Com a realização de um concurso público em 2008 e a chegada de novos profissionais de saúde, a unidade recebeu uma bem-vinda oxigenação, com enfermeiros e médicos puxando um processo de reorganização do processo de trabalho da USF.

A brisa de renovação que começava a soprar no Córrego da Bica coincidiu com novos ares também na Secretaria Municipal de Saúde de Recife, que no início de 2009 começou a pôr em prática uma nova política de Saúde, batizada de “Recife em Defesa da Vida”.

Formulada ainda em 2008 por um grupo de trabalho convocado pela Diretoria de Gestão em Saúde com ampla participação dos trabalhadores do SUS Recife, a nova política traz como principal marca uma aposta radical em novas ofertas de gestão. Uma das diretrizes pactuadas com os trabalhadores é a implantação do Acolhimento em toda a rede municipal de Atenção Básica.

                                                                                             “O modelo de saúde que existia em Recife até 2008 ainda era baseado numa certa forma de fazer saúde focada apenas no aspecto da epidemiologia, da vigilância, do planejamento”, explica o gerente de Atenção Básica da Secretaria Municipal de Saúde de Recife, Aristides Oliveira. “A atenção básica reproduzia isso e ficava voltada apenas para a promoção, a vigilância, a prevenção. Esse modelo foi incapaz de produzir tecnologias para cuidar; ele apresenta uma fragilidade de ofertas quando se discute o trabalho de equipe, a degradação da clínica, a inequidade no atendimento”.

Aos 29 anos, formado em Medicina pela Universidade Estadual de Pernambuco com residência em Medicina da Família e Comunidade, Aristides está desde novembro de 2009 à frente da gestão da Atenção Básica da capital pernambucana, que conta com 54% de cobertura do Programa de Saúde da Família e 244 equipes de PSF espalhadas em 114 unidades e 6 Distritos Sanitários.

 

Aristides estava ao lado dos profissionais do Córrego da Bica na manhã de 4 de abril de 2009, quando a lógica do Acolhimento foi colocada em prática pela primeira vez na USF em caráter experimental. Situada no Distrito Sanitário 3, um dos maiores da capital pernambucana, abrangendo 29 bairros, com 37 unidades e população total de 270 mil habitantes, a USF Córrego da Bica foi uma das pioneiras a adotar a diretriz.

“A equipe temia que no primeiro dia acontecesse o caos: um número de usuários muito acima do normal, mais pacientes sem atendimento, ainda mais reclamações. Mas o grupo conseguiu dar conta e consolidar a ferramenta nas semanas seguintes: tivemos 120 pacientes no primeiro dia e esse número foi caindo até chegar à atual média de 50 a 60 pacientes atendidos no Acolhimento”.

A “ferramenta” do Acolhimento ganhou forma no Córrego da Bica, em primeiro lugar, numa reorganização dos horários de atendimento com a qual a comunidade do Brejo da Guabiraba e imediações já começa a se acostumar. Nas tardes de segunda a quinta-feira, os usuários da região têm acesso a consultas agendadas com os médicos e enfermeiros das equipes às quais estão vinculados; já as manhãs são reservadas a atendimentos urgentes ou imprevistos de forma geral.

Ainda não são 8 horas da manhã quando os agentes comunitários de saúde do Córrego da Bica chegam à unidade e realizam uma primeira conversa com os usuários que aguardam atendimento. Neste primeiro contato, é feita a avaliação de risco de cada paciente e são definidos aqueles que terão prioridade no Acolhimento. De modo geral, pacientes com febre alta ou glicose baixa, assim como crianças ou bêbês, têm a preferência.

O que parece um modelo bastante simples ajudou a desafogar o atendimento, a melhorar a qualidade do serviço oferecido e conquistar a credibilidade da população adscrita ao Córrego da Bica. “A gente tirou o peso do médico. Agora, ao fazer uma consulta comum, ele sabe que não tem gente esperando na fila, porque o acolhimento dá suporte. E nenhum paciente é mandado de volta para casa sem ser atendido”, explica a agente comunitária de saúde Edna Guerra.

A médica Ivonete Wanderley confirma: “Nas consultas normais havia intercorrências, agora não tem mais; dessa forma, as consultas marcadas podem ser feitas com mais calma. A população já aprendeu que tem uma faixa de horário específica para o atendimento que foge ao programado. O acolhimento nos ajuda a responder a este anseio mais imediato da população por um atendimento, porque a cada dia você tem aqui a oportunidade de ser ouvido”.

Uma médica e uma enfermeira, escolhidas entre as quatro equipes de Saúde da Família vinculadas à unidade, se revezam no atendimento diário às pequenas urgências e outros imprevistos que chegam ao Acolhimento. Elas atendem a pacientes vinculados a qualquer das quatro equipes, com um detalhe simples que tem feito a diferença no Córrego da Bica.

“Cada dia ficam no Acolhimento um médico e uma enfermeira de equipes diferentes. Isso ajuda a promover um maior convívio desses profissionais com a população e cria também uma possibilidade de troca de experiências”, explica a agente comunitária de saúde Edna Guerra. Modelo semelhante foi adotado pelas equipes de saúde bucal.

 

 

O fortalecimento da grupalidade, segundo relatos dos profissionais que trabalham no Córrego da Bica, parece mesmo ser um segundo aspecto para o qual o Acolhimento tem colaborado de forma decisiva.

“Essa experiência nos tornou uma equipe de fato”, relata a médica Ivonete Wanderley. Prova disso são as reuniões semanais que a equipe da unidade realiza todas as sextas-feiras, destinadas à avaliação do trabalho realizado pela unidade e o planejamento de ações futuras. Todos os cerca de 50 funcionários do Córrego da Bica – que incluem agentes comunitários de saúde, enfermeiras, médicas e funcionários administrativos, de segurança e limpeza – participam dos encontros.

Além disso, uma roda informal periódica foi criada pelas dez profissionais de nível superior da unidade. As quatro médicas, quatro enfermeiras e duas dentistas do Córrego da Bica se reúnem sempre na primeira sexta-feira de cada mês no grupo “Mulheres da Bica”. Durante os encontros, realizados sempre num local fora da unidade, são discutidos casos terapêuticos e outros temas ligados ao trabalho cotidiano na USF.

Para o gerente de Atenção Básica da Secretaria Municipal de Recife, a diferença entre a falta de diálogo e conflitos que caracterizavam a equipe do Córrego da Bica antes da implantação do Acolhimento e o espírito de grupo espontâneo que é testemunhado após a implantação da ferramenta tem uma explicação simples: “A equipe não tinha um objetivo comum para discutir. O acolhimento coloca em análise, é um dispositivo de gestão potente”, avalia Aristides Oliveira.

Passado um ano de implantação do Acolhimento na USF Córrego da Bica, a consolidação do dispositivo ofertado pela Política Nacional de Humanização permanece como uma obra aberta, construída todos os dias pelos trabalhadores da unidade. Mas já mostra resultados difíceis de questionar.

“De patinho feio, o Córrego da Bica virou modelo para a atenção básica de Recife”, resume a apoiadora institucional Cláudia Soares. “Hoje a equipe consegue se entender, fazer discussão periódica sobre seu processo de trabalho, planejamento estratégico. A unidade tem outra cara, tanto para a população quanto para a equipe. O acolhimento trouxe organização do serviço, empoderamento do grupo e credibilidade da população”.

Para fazer essa mudança contagiar toda a rede de atenção básica de Recife nos próximos anos, a Secretaria Municipal de Saúde investe num cardápio de ofertas que inclui cursos introdutórios sobre Acolhimento voltados para os trabalhadores da rede – o primeiro deles, destinado a 1200 trabalhadores de nível superior, foi realizado em novembro de 2009 e produziu 30 planos de intervenção.

Fórum do Trabalhador, fóruns territoriais, apoio institucional, formação de grupos de trabalho para discutir linhas de cuidado e protocolos de acesso, matriciamento vertical, aposta em colegiados de gestão e produção de cartilhas são algumas outras estratégias que a Gerência de Atenção Básica vem empregando com o objetivo de reinventar a organização o cuidado e a gestão nas unidades comunitárias de Recife, fortalecendo equipes e ampliando as possibilidades deste nível de atenção.

“O acolhimento nos mostra que há formas de organizar o trabalho para outras necessidades. Uma pequena urgência é, sim, uma necessidade que a atenção básica pode dar conta”, avalia o gerente de Atenção Básica da Prefeitura de Recife. “A gente descobriu que a saúde é imprevisível e o serviço de saúde não tem que lidar só com o previsível, o programado. Quando a atenção básica não abre debate com o imprevisível, não se legitima com a população”, avalia Aristides Oliveira.

(Esta reportagem integra a série produzida para a publicação Cadernos HumanizaSUS sobre o tema "Humanização na Atenção Básica", a ser lançada em breve pela PNH).