“A Estrada” e “O livro de Eli”

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Recentemente tive a oportunidade de assistir a estes dois filmes. O primeiro suprime, num só golpe, em uma narrativa realista, envolvente e escatológica todos os vínculos que sustentam a condição humana estendida nas sociedades ocidentais.

Somem os vínculos sociais de afeto e de risco em um único mega-evento planetário do qual só vemos o clarão inicial e as conseqüências dos primeiros dez anos de um inverno solar que já teve seu lugar no passado da história de nosso planeta, mas do qual a espécie humana foi poupada até aqui.

Um inverno causado pela ausência da luz solar esteriliza o planeta extinguindo toda a vida animal e vegetal que pode nos servir de alimento em poucas décadas. Uma população humana residual devastada pela astronômica taxa de mortalidade pós-evento de destruição se arrasta em condição de absoluta anomia social e absurdo individual.

Estes farrapos humanos que vamos vendo desfilar no cenário do filme se vêem num mundo de adultos que conheceram a nossa era de fartura sem medidas e das poucas crianças que restaram nascidas após a catástrofe planetária. Seria uma bela fábula de horror e solidão se não fosse tão realista e fundamentada em uma probabilidade calculada cientificamente.

Vendo o filme, fica fácil entender por que somos os filhos de Caim na narrativa judaico cristã. Não há como manter em momentos difíceis os imperativos éticos Kantianos. Se eles puderem valer em algum cenário como marca da condição humana será quando a sobrevivência imediata já tiver sido assegurada.

Só poderemos pensar na morte digna que o Erasmo Ruiz nos apresenta, com tanta inteligência e sensibilidade, quando a grande morte cósmica for afastada da fronte da humanidade.

Enquanto sua espada estiver apontada sobre nossas cabeças somente os que tiverem a coragem de ser mau o suficiente para sobreviver até gerar uma prole viável, poderão dar origem a uma nova humanidade. Esta antiga humanidade civilizada que hoje, por nos rodear como o ar e os odores que respiramos em nossa opulência consumista, os homens desaprenderam a ver e valorizar.

Assim chegamos à outra narrativa cinematográfica: “O livro de Eli”. Mais um mito do que uma história realista. Nele os eventos se passam 30 anos depois do clarão da hecatombe planetária. Pequenos mamíferos ressurgem entre os cadáveres de uma humanidade vencida. Pela estrada segue um peregrino que detém o livro que pode dar à humanidade sobrevivente as razões transcendentes que poderiam selar novos vínculos de solidariedade para a humanidade recomeçar.

O livro é a bíblia e seu portador é como um de seus tantos profetas. Capaz de feitos sobre humanos e ainda assim um mortal, ele representa o esforço necessário para que a humanidade comum ressurja e a morte volte a ser um drama pessoal e não mais um degrau em que a cada morte de um indivíduo, se aproxima o fim definitivo de toda humanidade.

O Livro de Eli remete a uma inquietação contemporânea. É como agimos diante das pequenas vítimas do crack. Suas vidas, suas condições objetivas, suas perspectivas, nos levam a pensá-los como mortos, embora ainda estejam biologicamente vivos.

As manchetes sobre o clima global, as manchetes sobre a crise das sociedades industrializadas, que cinicamente impulsionam a indústria da informação, dão margem a narrativas em que nossas vidas são dadas como perdidas mesmo agora, quando a grande morte cósmica apenas lança as sombras de suas asas sobre nós. No momento mesmo em que atendemos nossos celulares de última geração, enquanto dirigimos os carros que nos levarão a um dado local na cidade e a um futuro em que não há lugar para todos os nascidos.

A duas estradas, a do primeiro e a do segundo filme, remetem ao mundo onde comemos (mais do que simbolicamente) as vidas das favelas e dos guetos nas cidades do primeiro mundo e populações inteiras nos países pobres e em desenvolvimento. Um mundo em que aceitamos consumir um sem número de existências em favor das de poucos outros desgraçados privilegiados.

Junto com os celebrados filmes de vampiros, “A Estrada”, e em menor medida, o “Livro de Eli” nos mostram, num futuro indeterminado, mas assustadoramente próximo, a realidade de sociedades que se alimentam da vida de suas crianças, que comem e consomem o futuro de seus semelhantes.

Os vampiros e canibais nos fascinam não por sua infame diferença em relação a nossa natureza humana, mas exatamente por aquilo de monstruoso que já habita o centro de nosso espírito, de nossa humanidade, de nossa forma de viver e de morrer hoje, enquanto o sol ainda brilha.

Recomendo pensarmos o SUS, ou qualquer outro bem de civilização, a partir da visão dos dois filmes, especialmente “A estrada”. É bom pensarmos nossas relações vinculantes de afetos e de riscos e redimensionarmos seu valor hoje defasado em nossa economia simbólica individualista.

Recomendo a humildade de reconhecermos que nunca antes nossa condição humana esteve tão vinculada aos outros. Ligada as coisas que se humanizaram por nosso toque, aos entes que nos precederam e sucederão na história do planeta terra.

Que reconheçamos que por não sabermos desta humilde condição de elo, na enorme cadeia da vida e das coisas, estamos sendo consumidos por desejos imoderados, ingenuamente pensando que estamos consumindo coisas e vidas em favor de uma miragem de dominação e conquista.