No HU de Dourados, todo dia é dia de índio

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Hospital Universitário da segunda maior cidade do Mato Grosso do Sul utiliza intérprete para acolher as singularidades das questões de saúde indígena

 

“Apy nde nhante porá”. Incompreensível para qualquer leigo no idioma Guarani, a frase afixada na entrada principal do Hospital Universitário de Dourados é bem entendida pela maior parte dos usuários que acorrem à unidade: “Aqui você será bem cuidado”.

Ligado à Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e em atividade desde 2005, o hospital abriu suas portas com o desafio principal de fazer frente à alta taxa de mortalidade infantil indígena que a região registrava na época: 141 óbitos para cada mil nascidos – bem acima da média nacional de 24 por mil.

Com cerca de 54 mil habitantes de ascendência ameríndia recenseados (IBGE/2008), o Mato Grosso do Sul possui, de acordo com a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) a segunda maior população indígena do país. Em Dourados, segundo município mais populoso do estado, esta população se concentra principalmente numa reserva de 3.475 hectares onde vivem cerca de 12 mil índios das etnias Guarani-Kaiowá e Terena. 

Principal hospital do município, o HU era até 2007 administrado pela Fundação Municipal de Saúde de Dourados, sendo assumido em 2008 pela UFGD. Como parte da transferência, foi realizado em 2009 um concurso para a contratação de servidores efetivos que vai substituir cerca de 95% dos 539 funcionários que trabalham hoje no hospital. 

A situação transitória que o hospital vive desde sua abertura não impediu, entretanto, que a equipe buscasse formas de abordar a saúde da população indígena em sua singularidade. “Desde o início, sentimos a necessidade de pensar em estratégias de acolhimento aos usuários indígenas”, explica Elenita Sureke, psicóloga que coordena a ouvidoria do HU.

Apoiadora da Política Nacional de Humanização, Elenita conta que a principal dessas estratégias nasceu de uma necessidade básica: entender e se fazer entender pelos usuários indígenas que recorrem aos serviços do hospital, já que grande parte deles não fala português. Necessidade que já havia sido identificada também pelo Conselho de Saúde Indígena da região.

“O índio chegava no hospital e esperava que alguém viesse buscar ele, porque ele entendia que o médico vinha buscar. Muitas vezes, voltava para casa sem ser atendido”, conta Sílvio Ortiz, que atua como intérprete no pólo da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) de Dourados.

Sílvio é indígena da etnia Kaiowá e nasceu no município vizinho de Douradina. Tem 42 anos e fala português desde os 12. Formou-se Técnico de Enfermagem em 1994 através de curso oferecido pela missão evangélica Kaiowá, que atua no interior da Reserva Indígena de Dourados, e acabou de concluir também o curso de Enfermagem. 
 

Na UTI pediátrica do HU, que conta com 11 leitos e uma média de 70% de pacientes indígenas, o trabalho realizado por Sílvio é apontado como essencial. “Ele nos dá a possibilidade de levantar o histórico e saber as necessidades reais de cada paciente. Isso é especialmente importante na UTI, onde o diagnóstico é mais complicado”, explica o médico Pedro Baruki, que atua na unidade. Segundo Baruki, a maior parte dos casos que chegam à UTI pediátrica envolve crianças desidratadas, desnutridas, com diarréia, pneumonia ou tuberculose. 

“Além da dificuldade da própria doença, existe dificuldade em conduzir o tratamento”, explica o médico. “As crianças chegam muito mal, às vezes em situações irreversíveis, porque a população indígena tem menos acesso a informação e maior dificuldade de acesso a serviços básicos de saúde. Reverter quadros assim envolve o trabalho de uma equipe multidisciplinar composta por nutricionistas, psicólogos e outros profissionais, e requer entender o aspecto social”, avalia Baruki.

Mais do que a simples tradução, o trabalho de Sílvio funciona como uma interlocução entre culturas que torna possível a produção de saúde. Explicar tratamentos e dar suporte à equipe do hospital durante intercorrências de pacientes indígenas estão entre as ações que ele realiza no dia-a-dia. “Muitas vezes venho fora do horário de trabalho conversar com pacientes”, conta. 

A atuação de Sílvio é decisiva, por exemplo, para salvar vidas de crianças indígenas que acabam abandonadas pelos pais no hospital por razões culturais. “O índio entende que quando a criança adquire uma doença grave, o espírito da morte já veio buscar ela, então não vale a pena trazer a criança do hospital para casa”, explica. “Para reverter isso e convencer o índio a cuidar da criança, eu tenho que usar esse conhecimento da minha cultura”. 
 

A técnica de enfermagem Eronice Ksiaszkiewicz, que atua na enfermaria pediátrica do HU, confirma a ocorrência deste e de outros problemas. “A maioria das crianças que tratamos aqui tem tuberculose e nós enfrentamos muita dificuldade em dar seguimento para os tratamentos, porque muitas vezes as orientações não são seguidas. A taxa de reinternação aqui é muito alta”, relata.

Dificuldades semelhantes são enfrentadas no tratamento de pacientes adultos de origem indígena. “O índio tem entendimento de que vem morrer no hospital”, explica Ernesto Luppineto, médico da UTI adulto, que lista as principais causas de internação na unidade: tuberculose, cirrose, acidente por arma branca e traumatismo crânio-encefálico. Mais uma vez a desnutrição, somada a questões sociais marcantes na Reserva Indígena de Dourados, como violência e alcoolismo, ajudam a explicar os problemas de saúde que afetam os índios da região.

Para dar conta das especificidades culturais e sociais desta população, o Hospital Universitário de Dourados trabalha em articulação com o Hospital da Missão Kaiowá, que atua dentro da reserva, e da Casa de Saúde Indígena (CASAI) do município, mantida pela Funasa. Desde 2008, o HU conta ainda com uma residência multidisciplinar que prepara alunos de psicologia, enfermagem e nutrição para trabalhar com saúde de populações indígenas.
 

A nutrição foi, aliás, um dos aspectos sobre os quais o HU de Dourados precisou se debruçar para dar conta das especificidades dos usuários de origem indígena. Procurando se adequar aos costumes alimentares desta população, a equipe de nutrição do hospital introduziu no cardápio alimentos como mandioca, milho e abóbora, além de adaptar pratos como a sopa, que costumava ser rejeitada pelos índios. 

“Temos que lembrar também que o índio não tem relógio biológico ‘normal’, não tem horários fixos para comer”, destaca o intérprete Sílvio, que chama atenção para o desafio, ainda a ser enfrentado pelo HU, de adaptar também sua ambiência para atender a este público: “O hospital não tem um ambiente adequado para o indígena”.

Premiado na 1ª Mostra Nacional de Saúde Indígena por seu trabalho, Sílvio, que já participou como convidado de encontros relacionados à saúde indígena no Equador e no Canadá e se prepara para embarcar para a Áustria, onde participará de mais um evento sobre o tema, conta que seu objetivo é assegurar o cumprimento integral dos princípios do SUS para a população indígena. 

“Um povo você não mata só com a bala, mas também tirando seus valores. Esses valores continuam a ser tirados dos indígenas à força, e a saúde não pode reproduzir isso. Minha expectativa é que os indígenas comecem a se integrar na saúde pública, atuando no controle social para garantir o acolhimento a suas questões de saúde não só na aldeia, mas em toda a rede SUS”.
 

 

 

(Esta reportagem integra a série produzida para a publicação Cadernos HumanizaSUS sobre o tema "Humanização na Atenção Hospitalar", a ser lançada em breve pela PNH).