Mário Gatti: quando bons encontros produzem mais e melhor saúde

11 votos

Investindo no Acolhimento, Gestão Participativa e Valorização do Trabalhador, hospital municipal de Campinas (SP) tornou-se referência nacional em humanização

 

Campinas é uma cidade marcada por encontros. Cortada por algumas das mais importantes rodovias do estado de São Paulo, a cidade está situada num dos principais entroncamentos rodoviários do Brasil, o que explica em parte o seu desenvolvimento econômico: com um PIB per capita na faixa dos R$ 26 mil, é considerada o décimo município mais rico do país, detendo, sozinha, cerca de 1% de toda a riqueza produzida em território brasileiro. Terceira cidade mais populosa de São Paulo, Campinas é também uma espécie de tronco comum na área do conhecimento: segundo dados de 2005, sai das universidades e centros de pesquisa campineiros nada menos que 10% da produção científica nacional.                      

Pois foi apostando na criação de bons encontros que um dos principais hospitais públicos de Campinas começou a se tornar, nos primeiros anos desta década, uma referência nacional em humanização da saúde. Fundado em 1974 num prédio que até então abrigava uma biblioteca pública, o Hospital Municipal Mário Gatti (HMMG) é prova de que o Sistema Único de Saúde é capaz de fazer brotar, muitas vezes da precariedade, soluções inteligentes para a produção de saúde de forma resolutiva, democrática e solidária.

O processo começou em 2001 quando, antes mesmo que a Política Nacional de Humanização fosse criada pelo Ministério da Saúde, a diretoria do Mário Gatti decidiu investir na implementação do Acolhimento com Classificação de Risco no setor de urgência e emergência do hospital. O serviço é a principal porta de entrada da região e atende em média 600 pacientes por dia – 60% deles poderiam ser atendidos na Atenção Básica.

A exemplo do que a PNH vem implementando em diversos hospitais Brasil afora, o Mário Gatti trabalha desde então com a classificação dos usuários que acorrem à unidade por grau de risco, sendo cada caso encaminhado para uma das quatro áreas identificadas por cores – Área Vermelha, Área Amarela, Área Verde, Área Azul – a depender da gravidade. A mudança, explicam os profissionais que atuam na unidade, ajudou a qualificar o encontro dos usuários com o serviço. “O Acolhimento com Classificação de Risco tem permitido que a gente organize melhor o serviço e que a rede utilize da melhor forma a estrutura do hospital”, explica a gerente do Pronto Socorro Adulto, Rosa Maria Zanvettor.

Outra ferramenta utilizada pela Política Nacional de Humanização que o Mário Gatti emprega desde 2001 é o Direito a Acompanhante: a visita de parentes e amigos dos pacientes internados é aberta em todas as unidades do hospital. Medida que, segundo os gestores e trabalhadores do HMMG, tem contribuído para o progresso dos tratamentos e a corresponsabilização entre pacientes, sua rede social e os profissionais de saúde.

A depender do caso, a presença de acompanhantes é permitida até mesmo na Unidade de Tratamento Intensivo, onde é possível encontrar outro exemplo de como a criação de um encontro tem colaborado para produzir saúde numa perspectiva humanizada: ao ingressar na unidade, pacientes e seus acompanhantes são acolhidos por uma equipe de psicólogos e assistentes sociais que esclarecem sobre o que é UTI, dúvidas sobre procedimentos, horários de visita, como obter informações sobre o paciente e outras questões. Equipes semelhantes atuam em outros setores do hospital.

“O paciente já chega na UTI achando que vai morrer, o que é errado, porque quando ele chega aqui ele tem condição de sobrevida. O acolhimento tira esse tabu”, explica a enfermeira Maria Eliza Zambotti, diretora da unidade. Ela explica que, além do acolhimento e direito a acompanhante, a satisfação dos profissionais que trabalham na UTI Adulto é determinante para a qualidade do serviço oferecido. “Nosso trabalho é importante, exige agilidade, concentração, trabalho em equipe. Os profissionais precisam se comunicar. No Mário Gatti temos este ambiente de diálogo e uma maior liberdade de trabalho”, explica a auxiliar de enfermagem Andréa Ferreira, que trabalha no HMMG há 8 anos.

O ambiente de trabalho ao qual Andréa se refere não é obra do acaso, mas resultado de uma política de valorização do trabalhador e de gestão participativa que o Mário Gatti adotou como diretriz. Com 1.700 funcionários, o hospital conta com um Grupo de Trabalho de Humanização aberto à participação de trabalhadores e gestores, no qual são discutidas questões relativas ao processo de trabalho. Conta ainda com um Colegiado Gestor que reúne todos os diretores, coordenadores e gerentes, e com colegiados por Unidade de Produção.

“É uma forma de legitimar o trabalho dentro da instituição e de pactuação permanente gestor-trabalhador”, explica a gerente de Desenvolvimento de Pessoas do HMMG, Sandra Romano. Sandra conta que o Mário Gatti optou por uma organização horizontal do trabalho, que é dividido por linhas de cuidado – e não por categorias profissionais – em quatro eixos: cuidado pediátrico, cuidado clínico, cuidado cirúrgico e apoio assistencial.

“Apostamos a gestão participativa potencializa a quebra da lógica do ‘você manda e eu obedeço’, e nosso processo de trabalho teve que se adequar para dar conta desse modelo horizontalizado”, explica a gerente, que destaca o apoio aos processos de trabalho de cada área como uma das principais tarefas das apoiadoras que atuam no Desenvolvimento de Pessoas. Tarefa que, segundo Sandra, pressupõe a criação de bons encontros entre trabalhadores, assim como entre estes e os gestores.

“Somos todos educadores, em tempo integral”, resume. “Promovemos discussões de caso quando necessário e buscamos a pactuação em caso de conflito. O apoio fortalece o vínculo com o gerente e a gestão participativa, mas acima de tudo é uma forma de educação permanente, na qual os trabalhadores estão sempre se preparando para trabalhar neste modelo que o Mário Gatti se propõe”.

A política de valorização transparece também no setor de Administração de Pessoal, onde o tradicional balcão de atendimento foi substituído por uma recepção mais acolhedora, na qual a privacidade dos trabalhadores do hospital é respeitada e há suporte psicológico quando necessário. E se manifesta ainda na Unidade de Saúde do Trabalhador do Mário Gatti, setor responsável pela segurança e medicina do trabalho.

Com uma equipe composta por médicos, auxiliares de enfermagem, técnicos de segurança do trabalho e ergonomista, mais equipe de apoio composta por psiquiatra, assistente social, terapeuta ocupacional e fisioterapeuta, o serviço vai muito além da tradicional realização de exames periódicos e admissionais.

À frente da UST há um ano, a psicóloga Sandra Principi explica que a unidade organiza-se por equipes de referência para atender às Unidades de Produção do hospital e que sua atuação tem como foco o aprimoramento dos processos de trabalho que contemplem relações saúde-trabalho em toda a sua complexidade, por meio de uma atuação multiprofissionail e intersetorial. Cada caso recebido, dessa forma, é discutido com a equipe de apoio da área à qual o trabalhador está ligado.

“O que faz o trabalhador adoecer é diferente em cada área, então o diagnóstico é por caso e ligado ao ambiente”, explica a gerente. “Muitas vezes, um pedido de licença médica funciona como um ‘escudo’ do trabalhador em relação ao gestor. Mas o trabalhador é o principal interessado na sua saúde e a UST procura levar a pessoa a ver sua potência e dialogar com o gestor”.

Além deste trabalho, a Unidade de Saúde do Trabalhador promove oficinas, a exemplo da que foi realizada com a equipe do setor de Oncologia do Mário Gatti nos meses de novembro e dezembro de 2009. “Havia um foco na recepção e a oficina levou o grupo a se olhar para dentro. O grupo viu que o trabalho de conversa é necessário. As oficinas permitem que o trabalhador veja o trabalho de forma diferente”, explica.

A produção de encontros e diálogos que marca o movimento de humanização do Mário Gatti encontra outro exemplo na Ouvidoria do hospital, que existe desde 2001 e faz parte da política de gestão participativa do hospital. Utilizando as caixas de sugestão espalhadas na recepção, no pronto-socorro e em outras unidades do hospital ou ainda através de cartas, e-mail, número de telefone específico e mesmo pessoalmente, os usuários do Mário Gatti têm a possibilidade de registrar suas impressões sobre o serviço do hospital com a garantia de que suas críticas, sugestões ou elogios não ficarão apenas no mero registro.

Espaço de escuta qualificada, a ouvidoria do Mário Gatti procura favorecer relações de envolvimento entre os usuários e as equipes de saúde, utilizando os dados coletados como indicadores da qualidade do atendimento e como instrumento gerencial. “Nosso trabalho vai muito além de registrar a queixa: o que a Ouvidoria recebe e registra direciona o processo de trabalho. Procuramos contribuir para uma reflexão que possibilite às equipes conter a pressa do dia-a-dia e entender o conteúdo de cada solicitação como um dispositivo que nos leve a indagar sobre a necessidade de rever nossos processos de trabalho, de reavaliarmos nossas relações interpessoais na equipe e com os usuários”, garante a ouvidora Elaine Garibaldi, servidora do Mário Gatti há 18 anos.

Segundo Elaine, o atendimento da Ouvidoria é focado na resolutividade. “Tentamos resolver os casos no momento; quando não é possível, cada caso é encaminhado para outras unidades. Às vezes a resposta não contempla o questionamento do usuário. Nestes casos, procuramos outra resposta ou até a conversa com ele. O trabalho da ouvidoria é proativo”, explica. Apenas em 2009, foram realizados 293.384 atendimentos.

Dialogando com o trabalho de apoio realizado nas Unidades de Produção do Mário Gatti, a Ouvidoria alimenta as rodas de conversa com os casos recebidos, onde eles são discutidos e enfrentados a partir de soluções construídas coletivamente. Um bom exemplo de como a Ouvidoria pode transformar o serviço foi o caso de um paciente atendido no setor de Ortopedia que teve seu retorno marcado para dali a seis meses e questionou o tempo de espera devido à gravidade do seu quadro.

“A discussão coletiva do caso levou à formulação da proposta de um Sistema Interno de Regulação de Vagas, através do qual o hospital entra em contato com pacientes em espera por cirurgia para avaliar o risco de cada caso e definir aqueles que precisam da cirurgia com maior urgência”, explica Elaine. O projeto-piloto do sistema está em experimentação desde novembro de 2009. A “apropriação” da Ouvidoria pelo Grupo de Trabalho de Humanização do Mário Gatti, explica Elaine, garante que o serviço tenha esse caráter indutor da construção de soluções coletivas de gestão, mesmo que muitas vezes alguns gestores tenham posição defensiva.

Diante do desafio de ampliar o estreitamento entre o hospital e a rede SUS local, o Setor de Informação do Mário Gatti criou em 2006 mais uma possibilidade de produção de conversas. Utilizando um sistema de prontuários eletrônicos, o HMMG disponibiliza via web informações sobre pacientes que tiveram alta, tornando possível que eles continuem a ser acompanhados na rede SUS local. O sistema de alta referenciada do hospital é considerado modelo.

“O objetivo é compartilhar a informação existente sobre cada paciente para dar continuidade ao cuidado e colaborar na construção de redes. A ideia é que os profissionais que vão atender ao paciente na rede possam conhecer o que aconteceu com ele no hospital. Todas as pessoas envolvidas no cuidado podem colocar informações para descrever cuidados utilizados no paciente, para orientar cuidado na Atenção Básica”, explica o médico João Antunes, responsável pelo setor. Segundo ele, uma nova ferramenta em elaboração vai permitir também que as equipes do Mário Gatti possam visualizar via web, através de uma senha particular, onde o paciente está sendo tratado no momento.

Tanto investimento na produção de bons diálogos e encontros tem garantido ao Mário Gatti a credibilidade daqueles que são atendidos no hospital, manifesta em visitas já costumeiras de pacientes que tiveram alta às equipes de cuidadores, assim como em cartas como a escrita pelo usuário Márcio Almeida aos profissionais que em mais de uma oportunidade o acolheram na enfermaria do HMMG. Internado mais uma vez no hospital, o usuário garante: “Eu me surpreendi com a qualidade do atendimento que recebi aqui, com a atenção da equipe que me cuidou. Já passei por hospitais privados, mas em nenhum achei a equipe tão boa como a do Mário Gatti".

 

 

 

 

(Esta reportagem integra a série produzida para a publicação Cadernos HumanizaSUS sobre o tema "Humanização na Atenção Hospitalar", a ser lançada em breve pela PNH).