Viver e morrer: A arte de fazer instantes de alegria em meio a dor
Meu finado tio, padrinho querido e irmão de meu pai ficou internado num desses leitos numa disposição na enfermaria em que sua cama ficava em frente a janela. Bem como no conto que o Ricardo transcreve.
Ele e outro senhor, na cama ao lado, parceiro de adoecimento e de luta por viver o melhor da vida, dividiam entre eles o inventário diário das macas que passavam no pátio com lençóis brancos a cobrir os falecidos do dia.
Ao reverenciar os que encerravam seus dias sob os cuidados dos trabalhadores da saúde, naquelas horas em que ainda não chegaram nenhum dos familiares e o leito precisava ser liberado, meu tio homenageava os que seguiam e celebrava os dias que lhe restavam. Os dois faziam aquele inventário sem amargura e seu gesto tinha um que de gostosa ironia e de desafio ao pensarem de bem com a vida a proximidade da morte.
Onde outros veriam muros brancos eu vi a coragem de quem encara seu destino com o humor e empatia. Com a lucidez de ser mais um entre os humanos e que isso, longe de ser apenas um drama é também uma alegria que pode ser extraída de cada instante vivido desde que a ele se possa atribuir sentido e significado.
Aqui, neste texto em que as palavras dão vida aos que viveram histórias como a que nos brindou Ricardo, vive meu tio de novo na partilha desta lembrança.
Por jacqueline abrantes gadelha
Marco,
Há muito, presencio no trabalho em saúde estes momentos que descreve e, agora, também na família com um querido muito próximo. Sempre me emociono com essa "arte de fazer instantes de alegria em meio a dor"; essa força que chega da atribuição de sentidos, janelas que muitas vezes não existem no espaço físico mas são abertas a partir do "corpo". Guardo comigo essas paisagens de instantes ímpares de aniversários comemorados no leito, chamas de velas apagadas com sopros alegres de quem festeja um dia a mais; palavras de alegria inter -"calando" as dores; de reconstituições de passados distantes no passeio pelas imagens de álbuns de família. E também, nessa mesma janela, imagens da alegria de querer e poder ver, em um dado momento, " apenas" um muro branco.
Um grande abraço,
Jacqueline