A Academia e a Naturalização da Desigualdade Social.
Um relato intestinal das relações corporativas
Em uma reunião do corpo clínico de mestres e doutores de um hospital federal gaúcho aconteceu um fato que revela a relação de parte da academia com o serviço público, com a sociedade e com as responsabilidades que acompanham o saber acumulado em uma carreira, em tese, a serviço do bem comum. Uma coincidência colocou no mesmo cenário dois atores que só se percebem normalmente pela névoa social que encobre o preconceito e encanta com a cor da naturalidade biológica a maquinação das desigualdades sociais.
O presidente do sindicato dos trabalhadores de nível médio estava presente, sentado na última fileira de cadeiras do anfiteatro, aguardando o diretor de pessoal do hospital para uma reunião. Neste momento o mais velho e mais graduado dos presentes, (mestrado e doutorado) começou a fazer sua intervenção:
– Eu já estou velho, já trabalhei e estudei muito. Não vou mais dar assessoria para diretor de hospital público nos corredores. Por isso, estou passando adiante. Daqui para frente vou trabalhar os meus interesses. Vou pensar na minha aposentaria. Daqui para frente não vou mais me contentar com migalhas (e partir para iniciativa privada?). Eu já estou com minha vida feita. Vocês vão construir a de vocês e eu vou pensar só na minha aposentadoria. Desejo tudo de bom para vocês…
E foi encerrando a fala. Os demais componentes da mesa estavam sofrendo desconforto visível. O Presidente do sindicato no fundo do auditório pensou: “O que eles vão fazer depois de me ver ouvindo tudo isso”. Então o superintendente do hospital federal se dirigiu ao presidente do sindicato. Saudou-o e falou que aquela era uma reunião restrita só com os professores da universidade que trabalham no hospital.
O diretor do departamento de pessoal então se retirou da mesa e foi atender o presidente do sindicato parta encerrar o constrangimento que se instalara no recinto pela presença de um representante dos demais servidores públicos de nível médio e fundamental que trabalham no SUS.
Este evento me serve de deixa para tratar de certa amargura que me acomete às vezes. O conhecimento acadêmico tem sido vertido na forma de capital simbólico com alta potência para a conversão em capital monetário e político, entre outros. Mas como vivemos num regime democrático, as pessoas arcam com o custo de decidirem suas vidas na medida em que o fazem como cidadão ao votar, e como consumidor ao proverem os bens e confortos de sua subsistência.
Ou seja, o mundo social é uma construção coletiva. Mas as ferramentas disponíveis determinam responsabilidades distintas. Ao trabalhador da higienização do hospital cabe a tarefa de mantê-lo em condições de higiene adequadas para que lá se desenvolvam as atividades de tratamento. Ele é tão indispensável nos processos de trabalho quanto qualquer outro profissional. Como cidadão este trabalhador da higienização tem direito ao mesmo voto que qualquer outro cidadão da equipe de trabalho em saúde.
No entanto, o caso do surto de sinceridade deste acadêmico, pode estar revelando uma indisposição de parte de nossa elite intelectual e econômica em contribuir para o bem comum na sociedade. Neste caso o agravante é de que o capital acumulado se deve sim, em parte ao esforço e dedicação pessoal do acadêmico, mas foi financiado com recursos públicos. Com dinheiro de todos nós. Este senhor acredita que pode pegar o jaleco e sair para cuidar de sua vida pessoal. Pode. Nada lhe impede legalmente de fazê-lo. Porém, o curioso é seus pares prefiram que sua confissão seja feita de forma privada. Longe do olhar dos usuários, representantes e contribuintes que em última instância financiam o SUS.
Há o exemplo do bolsista que está sendo cobrado na justiça para devolver os recursos investidos em sua formação. Pois depois de formado ele escolheu ir promover o bem comum e pessoal no primeiro mundo. O contribuinte brasileiro só lhe serviu de financiador.
A CSS, Contribuição Social para a Saúde é o horror da classe médica a julgar pela campanha midiática de seu sindicato. Mas não significa ao ano mais do que o custo de um jantar fora em um restaurante de preços médios, mesmo para um padrão de remuneração que não é baixo. A população de baixa renda está excluída do imposto da saúde. O único inconveniente real da CSS é o de tornar transparente e rastreável rapidamente a renda real e a declarada de cada contribuinte.
Este imposto traria cerca de 10 a 12 Bilhões de reais para o orçamento anual da saúde. Mas o ganho maior viria do aporte aos cofres públicos dos valores que profissionais liberais, caso de muitos médicos, teriam de declarar.
Não está longe o momento em que não declararemos mais nossa renda a Receita Federal. Receberemos o informe anual das rendas de nossos vários empregos na área da saúde e educação. Este procedimento só será efetivado se a vontade política apontar para uma maior responsabilidade de todos para com o bem estar social.
A corrupção é bem tolerada nas nossas classes média e alta justamente por que seus membros encontram formas de proteger seus ganhos da rapinagem de gestores políticos corruptos sonegando impostos.
Neste momento em que sistemas inteligentes não humanos estão passando a regular sistemas de relações sociais humanas como a cobrança de impostos, temos a oportunidade de revermos a maquinação das desigualdades sociais pela naturalização do privilégio que marca nossa história desde o escândalo da relação entre os da casa grande e os da senzala.
Este novo imposto, a CSS, é como o investimento em parte de nossa elite intelectual que freqüenta nossas universidades públicas: Só faz sentido se for investido no bem comum. Mas sempre se há de querer mais e assim é que o veterano acadêmico cometeu a gafe de confessar que aposentado é bem melhor se dedicar a vender seu saber para quem lhe pagar mais.
O caráter de nosso coletivo – a Rede Humaniza SUS, da PNH, e do SUS como norma constitucional é pensado para produzir uma zona de interesses comuns entre as classes sociais no Brasil. Um país que, em temos históricos, recentemente naturalizava a escravidão, tende a naturalizar as desigualdades sociais. No entanto elas são fabricadas e desvelar o mecanismo que produz a desigualdade é um dever da academia e dos servidores públicos. Reuniões fechadas desse tipo da que relatei acima só ajudam a acobertar os mecanismos dos privilégios e da irresponsabilidade social.
Mas este é um vício que certamente está por traz das recentes ações contra o SUS em São Paulo e de resto em todo o Brasil: O reacionarismo contra os que querem os cidadãos decidindo de forma bem informada e sem o encantamento que oculta os mecanismos que produzem a desigualdade.
Superar este vício é nosso maior desafio. Falar para quem tem a responsabilidade de decidir, de fiscalizar, de suportar o mundo que emerge das relações sociais, não importa qual o grau de formação que este cidadão tenha. Parece ser esta a beleza que nos contagia, nos (re) encanta e nos faz pensar em rede.
Por Rejane Guedes
Caro Marco,
mais uma vez você surpreende. Dessa vez pelo relato ‘visceral’ de uma situação que ocorre veladamente ou escancaradamente em muitos locais.
A pedante postura do ‘mais graduado’, cheio de titulações acadêmicas, não corresponde exatamente à sabedoria.
Alguns acadêmicos deslumbrados se ‘empavonam’ e estufam o ego de tal maneira que passam a agir de forma grosseira em relação aos demais integrantes das equipes de saúde. Por aqui chamamos essa afecção de ‘MESTRITE’ e ‘DOUTORITE’. O portador ‘afetado’ por esse mal passa a se achar ‘o furinho central da bolacha cream-cracker’, o ‘rei da cocada preta’, o ‘pajaraca-mor’. Perde a conexão com as relações entre as pessoas como pessoas que são; tornam-se incompreensíveis, com suas longas e enfadonhas elucubrações mentais e seu jargão hermético que mascaram e soterram a beleza das coisas simples. Desconfio que seja por isso que ao ler os poetas como Manoel de Barros, Patativa do Assaré e outros tradutores do viver, ficamos embevecidos e animados, pois há empatia e encantamento na forma que eles se expressam.
É comum acontecer aversão e distanciamento por aquilo que não faz parte do nosso cabedal de conhecimento. Não quero desmerecer o conhecimento científico e o rigor metodológico da forma científica de lidar com o conhecimento, mas denuncio a ‘naturalização’ do pensamento científico como a única narrativa do mundo, esquecendo que existem outras narrativas e outras formas de lidar com o viver e com a vida.
As experimentações das práticas em rede se aproximam da lógica do sensível, com a interatividade, com a inclusão da poética do existir como parte do fazer e do produzir reflexões sobre o que se faz.
Não podemos ser ingênuos. Fazemos parte de uma imensa teia de aprisionamentos simbólicos. Somos amordaçados pelas palavras que nós mesmos criamos. Nos afogamos em nossas construções imaginárias que se misturam com as àguas bravias dos polos instituidos (instituições).
E assim vamos navegando…