O Cartão SUS e o Financiamento da Saúde

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Há um debate acontecendo a respeito da iniciativa do Ministro da Saúde de dar andamento a implantação do cartão SUS iniciando um projeto piloto no Piauí. Houve uma saudação a iniciativa. Eu mesmo estava, e estou, entre os mais empolgados com o projeto. Mas aos poucos estão aparecendo ponderações e problematizaçãoes que me dão a oportunidade de organizar algumas idéias que estamos construíndo na rede ao longo do tempo.

Então, em resposta a Rosemar Prota e ao Bruno Mariano Azevedo, fiz um inventário das vantagens de se ter informação confiável e ampla, ao passo em que enumero os problemas que isso nos trará que na vida tudo tem um custo. E como já escrivi, o diabo acolhe todos sem distinção ou seja se não der certo é ruim para todo mundo.

 

Demanda, capacidade instalada e trabalho não pago.

Penso que a questão seja qualificar a remuneração em todos os níveis de atenção. Nós temos um imaginário, ou inconsciente coletivo, que ao lado da pressão do mercado de insumos e procedimentos valoriza-se muito os transplantes e outras intervenções tidas como de alta complexidade. Hospitais que têm a capacidade instalada para realizar tais procedimentos são "ricos", pagam melhores salários e invariavelmente tem suas portas de entrada super lotadas.

Bem, se pudermos criar um valor equivalente para as ações em saúde básica a contagem de ações (quantificar os procedimentos) não seria necessariamente uma desvantagem. Sabemos que estes cuidados são de alta complexidade também.

O sistema de reembolso de serviços prestados segue a lógica da quantidade e da identificação de quem desempenha a ação. O problema é que na realidade a intervenção de um profissional nunca é isolada ela está encadeada com uma série de outras ações que não possuem sequer um código de procedimento vinculado ao atendimento de um usuário específico.

Nestas funções de apoio estão os trabalhadores mais penalizados do sistema, pois é aí que se concentra a precarização mais brutal dos vínculos de trabalho.

O paradoxal é que devido a falhas na organização destas intervenções que não ficam registradas em prontuário e não são faturadas pelo sistema, muitos profissionais respondem a processos por erros ou falhas que em parte, ou principalmente são estruturais.

 

A relação da demanda com a segurança dos usuários e trabalhadores.

A segurança do usuário, por sua vez, depende de um equilíbrio entre a demanda e a capacidade de atenção da instituição. Pensem que quando chegamos em um pronto atendimento privado às três horas da manhã e a equipe está como que nos esperando, o que nos favorece é justamente o grau de ociosidade do serviço.

Se não vejamos: A emergência de um dado hospital público funciona com superlotação de 150% da capacidade instalada. Neste caso esperamos de três a quatro horas para o médico fazer o primeiro atendimento. Até aí já passamos pelo acolhimento e classificação de risco, já foram verificados sinais vitais, estamos sentados ou deitados em uma maca. Dependendo do caso até o diagnóstico ser concluído e a alta ou internação ser determinada se passaram de 18 à 72 horas.

Em termos mercadológicos temos uma hiper produtividade para uma folha de pagamento que não oscila de acordo com a demanda. Se, claro, desconsiderarmos o absurdo das horas extras, já quase ordinárias. Como saúde não é mercadoria esta super produção não significa nada. É apenas um sintoma que explica o sofrimento dos trabalhadores, a quantidade de erros e falhas e o padecimento dos usuários das duas portas: A do SUS e a dos seguros privados, porque a mão de obra é a mesma nos dois casos. E está no limite da operacionalidade segura.

Há o caso de um paciente com metástase que eu próprio levei do SRT para a emergência (conforme estava definido interinstitucionalmente) e o paciente ficou mais de quatro dias sentado em uma cadeira, amargando um suplício inaceitável que vem se somar a sua condição de doente grave, aguardando alta ou leito.

Então, o conforto no pronto atendimento depende de ele ser projetado para atender uma demanda abaixo de sua capacidade plena. Deve haver pelo menos 30% de capacidade ociosa. É isto que chamamos custeio: Uma verba que vem para que a instituição funcione independente de faturar 100% de sua capacidade instalada. Um custo que se paga para que haja conforto para os usuários e margem de manobra para situações de crise e emergência epidemiológica.

Claro, não a ponto de dispensar a mobilização que vimos na região serrana do Rio de Janeiro. Para eventos dessa amplitude, que alias, poderão se tornar mais freqüentes, precisamos de aporte da capacidade de atenção de regiões não afetadas. Num tipo de solidariedade que se beneficia de um potencial revezamento, porque a crise de uma cidade hoje, pode ser a mesma de outra, amanhã.

Para ser ainda mais claro, este fator da folga necessária da capacidade instalada em relação a demanda de atenção explica porque o sistema privado de saúde capta o mesmo volume de recursos que o Ministério da Saúde investe no SUS para tender a uma população bem menor. O conforto dos seguros privados de saúde é pago pelos segurados e garantido pelo SUS que cobre os procedimentos mais caros que são glosados pelos planos de saúde.

Em termos mais objetivos, quando meu filho é atendido imediatamente quando chegamos de madrugada ao pronto atendimento, o momento anterior ao atendimento foi pago por todos e nele não houve "produção" e assim meu conforto foi assegurado. Quanto mais horas eu esperar mais super produção não paga está ocorrendo e menos conforto e mais riscos ameaçam meu filho.

O cartão SUS pode ajudar a entender estatisticamente o tamanho da necessidade de capacidade instalada que a população usuária e contribuinte deverá estar disposta a financiar, ou seja, destinar para o SUS. O certo é que é muito pouco, sendo que não há eqüidade, no sentido em que há procedimentos com remuneração de luxo, ou seja no valor de mercado e outras que são simplesmente miseráveis.

Este cenário analítico portanto acolhe bem as críticas. Não as refuta, porém afirma a vantagem do cartão SUS. Uma guerra entre Estados para ver quem fatura mais, serve a regulação mercadológica e privatista dos mutirões que buscam prospectar doenças para especialidades coorporativas faturarem recursos públicos.

Mas isto não tem a ver com a geração de dados sobre a atenção que uma generalização do cartão SUS propiciaria. Como já escrevi antes um benefício que não foi negado ao sistema financeiro já a partir do início dos anos 80.

 

Aquestão da privacidade

O uso destes dados pode gerar inúmeros problemas éticos e legais, especialmente se forem direcionados a manipulação de informações pessoais. Fato que já ocorre em grandes empresas que compram dados dos planos de saúde e de farmácias conveniadas à empresa. Os RHs desta empresas usam os dados fornecidos para monitorar a saúde individual de seus trabalhadores.

Mais cedo ou mais tarde este tipo de biomonitoramento será alvo de ações judiciais e o Juiciário terá de regular, por jurisprudência, ou Poder Legislativo, por lei, o limite para este tipo de uso da ferramenta de coleta de informação representada por qualquer cartão magnético ou com chip embutido.