Muntuamente…

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Muntuamente…

Muntu:

1) palavra de origem banta, um dos povos africanos mais influentes na formação social brasileira; aqui sofreram, resistiram, fortaleceram-se e se multiplicaram…

2) na cultura desses mesmos povos, palavra que designa tanto “indivíduo” (daí o próprio termo “bantu”, plural de “muntu”) quanto a força vital (que é também o bom e velho “axé”, na cultura nagô) , princípio de todas as coisas…

3) … Ou, como nos explica Placide Tempels, em seu já clássico La Philosophie Bantoue: “O banto não é um ser sozinho. E não é um bom sinônimo para isso dizer que ele é um ser social. Não, ele se sente e se sabe como uma força vital, como estando em relação íntima e pessoal com outras forças que atuam acima e abaixo na hierarquia das forças. Ele sabe que ele próprio é uma força vital, capaz de influenciar algumas forças e de se influenciar por outras. Fora da hierarquia ontológica e da interação de forças, não existe ser humano, nas concepções dos bantos” (citação extraída do livro “A Verdade Seduzida”, de Muniz Sodré)

4) Já em outro livro igualmente ilustrativo desse mesmo tópico, encontramos o incansável Nei Lopes, o qual afirma, a propósito do respectivo clássico referido acima, “(…) a existência de uma filosofia fundamentada numa metafísica dinâmica e numa espécie de vitalismo que fornecem a chave da concepção do mundo entre os povos bantos (…). Nela, a noção de força toma lugar a noção de ser e, assim, toda a cultura banta é orientada no sentido {daqui pra frente o grifo é meu} do aumento dessa força e da luta contra a sua perda ou diminuição (…)” (LOPES, Nei. Bantos, Malês e a Identidade Negra. Pág. 144)

Alguém notou aí algum eco espinosiano? Alguma hipótese sobre os rumos da filosofia de Deleuze caso tivesse nascido no Brasil?

5) Como se pode observar, não foi apenas o usufruto do corpo físico do escravo que se valeu o projeto colonial luso-europeu, mas a tentativa de se operar culturalmente o que poderíamos chamar aqui de um “epistemicídio”. Pois junto à “expansão do império” e à “dilatação da fé cristã”, associava-se igualmente uma ontologia marcada sobretudo pela apropriação indiscriminada da natureza (e como o negro não possuía “alma humana”, pode-se entender melhor no que consistia a verdadeira ideologia escravocrata!), dentro do conhecido quadro histórico da acumulação primitiva do capital e da lógica técnico-mercantil que preside a própria gênese da economia capitalista moderna e da geopolítica contemporânea. Nesse contexto, é compreensível que as contribuições mais significativas dos povos negro-africanos no Brasil tenham se manifestado como autênticas estratégias de contra-assimilação, movimentos de reconstrução de laços (sociais e afetivos, portanto potencialmente políticos!)) antes brutalmente desfeitos, assim como também de manutenção, ainda que por muito tempo clandestinas, de determinadas formas (rituais***, jogos, danças etc.) de relacionamento com o próprio mundo.

*** E como se trata aqui de saúde, edito aqui, como efeito de uma impressionante sincronicidade, dois trechos de um belo estudo sobre a umbanda (uma inequívoca expressão religiosa de influência sobretudo banta!) realizado por Ligia Pagliuso e José Francisco Miguel H. Bairrão. Qualquer semelhança com as ideias mais avanças hoje no campo da saúde não é mera coincidência:

“Pôde-se perceber com o tempo que a saúde, assim como a doença, é vista no rito umbandista como consequência de um complexo de fatores. Na umbanda, ao mesmo tempo em que uma pessoa está saudável sob alguns aspectos, frequentemente precisa de cuidados sob outros. Uma divisão entre saúde e doença de maneira delimitável nem sempre é encontrada no rito umbandista, sendo ambos os estados vistos como um contínuo de um processo dinâmico"

"O sujeito é entendido na umbanda como parte constituinte e que se constitui numa rede de relações. É através da responsabilização, do acolhimento e do espelhamento subjetivo nesta rede que a religião atua, utilizando como linguagem seu conjunto de símbolos e valores. A vivência desse processo, sutil ou não, permite aos médiuns e consulentes a elaboração de suas experiências e a abertura para a criação de novos sentidos para suas vidas."

(Imagem extraída do sitio da Juventude Socialista Brasileira, como ilustração da III Roda de Diálogo e Perspectivas da Juventude de Terreiro)
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Talvez já estejamos demasiadamente ocidentalizados para percebermos o quanto a lógica da acumulação capitalista, enquanto arco programático de um determinado tipo de civilização (sic), tem diminuído em cada um de nós e a cada dia nossa força vital, tal como na concepção do muntu entre os povos bantos – antes de mais nada, um problema sem dúvida “econômico”. Aliás, talvez já estejamos demasiadamente ocidentalizados para enxergarmos também que a verdadeira e mais grave diáspora ainda em curso seja, no fundo, a do próprio “espírito comunitário”, cujo efeito mais visível consiste nas mais diversas formas de desvinculação social e humana presentes em nosso espaço-tempo.

Em termos nacionais, gosto de pensar, entretanto, se o que resta de nossa energia utópica não pode ser atualizada justamente a partir de uma maior aproximação do conjunto da sociedade brasileira a vários aspectos culturais ligados originalmente a essa concepção filosófica dos povos bantos. É claro que não se trata de modo algum de um apelo cívico (abstrato?) e dirigido à “Consciência” ou ao “Sujeito”, segundo a boa mitologia do Contrato Social fundador do próprio Estado moderno (ademais – e que digam os estudiosos de Foucault! –, nunca se soube ao certo quem foi o verdadeiro contratante nessa história!), mas de um convite exatamente no sentido oposto, isto é, o de nos deixarmos cada vez mais “ser possuídos” pelas formas mais alegres e animadas (anímicas?) de celebração coletiva

Saravá, Muntu!
Saravá, RHS!

 Um post-resposta à pergunta: o que significa a RHS pra você? Mas tambem àquela outra: onde vovê guarda a sua loucura?