“Como fazer o sofrimento gerar afeição”
O título do artigo de Paulo Delgado pode ser curioso nos tempos que correm e me chamou a atenção de cara. Fiquei detida nele por um longo tempo. Sofrimento gerando afeição?
Percebo então que só há sentido em se estranhar a idéia contida nele se estivermos capturados pelo espírito da época. Foi o que se deu comigo a princípio e o que me fez mergulhar em sua leitura.
Sofrimento virou uma condição a ser extirpada a qualquer preço na contemporaneidade.
Mas vamos às palavras de Paulo:
Como Fazer o Sofrimento Gerar Mais Afeição?
Paulo Delgado(*)
O sofrimento virou doença. Qualquer mal-estar diante do mundo, um distúrbio.
A ambição grandiosa da psiquiatria está cada vez mais parecida com o sem
limite do mercado financeiro. Querem que todos vivam suas leis de ferro,
amedrontados e submissos. Nada melhor para a criação de crises do que um
poder sem sociedade, com regras próprias, exercido sobre todas as pessoas,
sem que elas tenham direito de reagir ou ficarem indiferentes. Basta dar o
nome de diagnóstico para relacionar sintomas e definir como transtorno
qualquer manifestação da personalidade.
Quando a prática da medicina, subjugada à indústria de medicamentos, se
oferece como cárcere, ficamos diante de uma verdadeira bomba embrulhada como
se fosse terapia. Pior quando uma especialidade médica transforma em missão
sanitária esconder hábitos e tarefas de uma sociedade indiferente a vida dos
outros e que só vê as pessoas de forma binária: com sucesso, ou fracassadas.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) anda preocupada com a definição de
doença mental que a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de
Doença Mental — universalmente conhecido como DSM-V — anda preparando. A ser
lançada em 2013, mas já objeto de tensa polêmica no meio psiquiátrico,
especialmente norte-americano, a nova edição da DSM, transforma o cérebro
num disco rígido. Um computador sem alma, intoxicado, num mundo cada vez
mais doente e que somente poderá ser salvo por remédios. A OMS alerta que
não aceita a desenvoltura da classificação, porque não é doença o que não
pode ser caracterizado patologicamente, tem etiologia desconhecida, não
possui padrão uniforme, não pode ser confirmado.
Quem não viveu alguma vez na vida, alguma destas graves “doenças”
psiquiátricas: abuso ou abstinência de substâncias, ansiedade, autismo,
déficit de atenção, transtorno bipolar, confusão, desatenção, tendência à
psicose, transtorno de personalidade, comportamento antissocial, apego
reativo, amnésia, esquizofrenia, distúrbios diversos, etc. São tantos os
nomes das “doenças do nervo” que agora viraram sinônimos de remédios e
comportamentos, que começa a ficar preocupante o convívio humano. A menos
que a sociedade perceba a gravidade dessa verdadeira epidemia que é querer
tratar pela psiquiatria as dificuldades e problemas que fazem parte da vida.
Junte os ritmos cada vez mais velozes e insanos da vida diária a esta forte
tradição que tem a medicina de “encaixar um sintoma”, prescrever um remédio
e mandar para o hospital que vamos todos viver dopados. Qual é a definição
precisa de transtorno mental? Quem pagará pela tragédia que o diagnóstico
errado causa na vida das pessoas?
Qualquer coisa malfeita afeta todos. Mas quando é feita na rua aos olhos de
todos como se fosse uma acusação, seja pelos despossuídos que usam crack,
seja pelas autoridades que usam o arbítrio para fazer a cidade limpa, há aí
outra vertente impiedosa dessa epidemia da tutela. Aqui o erro vem na sua
forma prática como serviço, depósito de exilados. No mesmo embrulho mistura
arbítrio e falsa legalidade e dá o nome de tratamento para o que é abandono.
Chama de falha moral a ousadia de esses jovens se desintegrarem nas ruas e
praças. O usuário de crack compartilha a única localização no espaço urbano
onde o efeito do que ele faz não é insignificante para os outros. Gerador de
atenção e afeição momentânea não consegue transformar em sonhos o que está
vivendo. Se o judiciário diz que é legal passeata para defender o que é
considerado ilegal, de onde sai a ousadia da autoridade para recolher das
ruas e retirar direitos de jovens pobres e abandonados? Onde pretende
devolvê-los?
Dar o nome de terapia à indiferença social e ao fracasso da política pública
— que não tem força para destinar recursos para serviços abertos 24h,
descentralizados e multiprofissionais de acolhimento — só confirma a força
que a indústria médica da tutela continua a ter sobre a população.
O que só aumenta a tragédia que é ver o sofrimento não gerar mais afeição.
Paulo Delgado – é sociólogo, foi deputado federal pelo PT de Minas e autor
da Lei da Reforma Psiquiátrica.
Por Emilia Alves de Sousa
Diagnósticos equivocados, medicalizações desnecessárias, saúde mental ainda frágil, estas questões mexem conosco e merecem estar no centro das reflexões/intervenções profissionais.