A vida imita a arte: Machado de Assis riria do nosso DSM
"Nós, os alienistas?", belo artigo de Cecília de Brito Orsini, psicanalista, sobre a nossa velha conhecida, mas ainda não abandonada partilha entre normal e anormal nos ajuda a pensar sobre as políticas que se apoderam da vida no contemporâneo.
É impossível não pensar, depois de lê-lo, nas práticas que atualmente reeditam o modo cartesiano de olhar para o mundo, como o crescente uso do DSM ( Manual de Diagnósticos em Saúde Mental ) em vários âmbitos. A nova edição ( DSM-V ), prevista para 2013, levaria ao manicômio, se manicômios houvessem, como na época do alienista de Machado, tres quartos da população.
O manicômio hoje se dá a céu aberto, embora possamos perceber as novas investidas no sentido de também reeditá-los em sua concretude, com as recentes políticas de internação de usuários de drogas. Qualquer ser que inadvertidamente folheie o "novo" Manual acabará por se identificar com muitos dos supostos transtornos criados a partir de uma espécie de intolerância à variabilidade inerente ao viver.
A mirada de Cecília sobre "O Alienista" é rica na denúncia desta intolerância. Vamos ao seu texto:
Nem sempre a loucura esteve apartada da vida cotidiana como atualmente. Isso foi possível a partir da operação intelectual promovida por Descartes no pensamento ocidental que, através do exercício da dúvida metódica, separou radicalmente a razão da desrazão, impedindo o seu diálogo, em nível filosófico. A arqueologia deste silêncio é o fulcro da cuidadosa reflexão realizada por Michel Foucault, em seu extraordinário livro A história da loucura, e objeto de extenso comentário por Frayze-Pereira (1995).
A Psicanálise vai retomar esse diálogo, abolindo a interdição. A partir de A interpretação dos sonhos, o homem diurno ciência vai encontrar o homem noturno dos sonhos e da poesia, propondo, a Psicanálise, uma nova forma de conhecer, que revoluciona a epistemologia clássica, já que a questão do desejo inconsciente vai interferir na dinâmica da relação entre o sujeito que conhece e seu objeto de conhecimento.
Já a literatura, que será o mote deste artigo, vai antecipar os passos de Freud, misturando ficção e realidade, loucura e razão, de um modo soberbo, no conto de Machado de Assis, O Alienista. Além disso, vai nos contar, sob chave literária, a história que Michel Foucault faz desse período, insistindo, como aquele autor, na denúncia do absurdo que é apartar radicalmente duas coisas necessariamente implicadas: a razão e a loucura.
Assistimos, ao longo do conto, o desenrolar das divertidas e incríveis peripécias do Dr. Simão Bacamarte, o alienista de Itaguaí, para estabelecer a loucura como fato médico objetivo e inconteste, projeto que acaba resultando num fragoroso fracasso, pois o hábil narrador vai desmontando o projeto, passo a passo, ironicamente, culminando, ao final do livro, na conclusão mordaz a que chega o Dr. Bacamarte de que o único louco de Itaguaí é ele próprio.
Os movimentos da história reproduzem, sob chave literária, a fina e densa argumentação de Michel Foucault. Os dois autores se complementam. Foucault vai demonstrar que a loucura nem sempre foi vista como doença. Ao contrário, a loucura recebeu, no ocidente, as mais diversas concepções, desde portadora de uma verdade sagrada, até a mais completa errância do psíquico, atestada no hábito medieval de colocar os loucos entregues à correnteza, num barco, a nau dos insensatos, sem por isso, contudo, impedi-los de circular livremente nas cidades que aportassem. A segregação da loucura em espaços especiais vai ocorrer posteriormente. Em primeiro lugar, nos antigos leprosários, abandonados pela quase extinção desta doença no século XVII; depois em espaços onde se mesclavam todos os tipos de marginalizados no século XVIII, até o chamado período do nascimento do asilo médico, no final do século XVIII, que é o período abordado por Machado.
A incumbência de encarregar à ciência os cuidados com a loucura só pode acontecer depois da operação cartesiana, que cria o método, interditando ao pensamento todo e qualquer grau de incerteza, indecisão e dubiedade, todo e qualquer sinal da desrazão que, expulsa da filosofia, só pode sobreviver na arte, conforme demonstra Frayze-Pereira (1995).
É fantástico observar como Machado, desconhecedor destas duas fontes Foucault e Freud, vai operar no seu conto, num registro muito próximo a esses dois autores, uma crítica genial, intuição do que estava por vir no século subsequente. Se a arte da literatura encontra a forma de contradizer a realidade criando uma nova realidade, mais verdadeira que aquela (Carone, 2002), observamos que Machado conseguiu tanto antecipar a revelação freudiana, de que a loucura encontra-se, na realidade, implicada, de uma ou de outra maneira, em todos os atos de razão, quanto de adiantar a crítica foucaultiana em relação ao modo positivista de tratar dela.
Pois o que vai acontecer ao nosso ilustre alienista senão a constatação desta implicação recíproca?
Primeiramente, como bem intencionado médico, Dr. Bacamarte vai precisar definir o que é a loucura:
“O alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiro em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas. Isto feito, começou um estudo aturado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências. Aberta a Casa Verde, assistimos a uma torrente de loucos: eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados de espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação.”
Assim, o narrador já insinua a extensão do campo da loucura. Além disso, observa, com mordacidade:
“A paciência do alienista era ainda mais extraordinária do que todas as manias hospedadas na Casa Verde; nada menos que assombrosa.”
E mais:
“Ora, todo este trabalho levava-lhe o melhor e o mais do tempo. Mal dormia e mal comia; e, ainda comendo, era como se trabalhasse, porque ora interrogava um texto antigo, ora ruminava uma questão, e ia de um cabo a outro do jantar sem dizer uma só palavra a D. Evarista.”
D. Evarista acaba por cair em melancolia. Dr. Bacamarte lhe prescreve o remédio tradicional: se distrair numa viagem ao Rio. Enquanto isso, livre da mulher e aprofundando seus estudos, Simão Bacamarte vai elaborar uma nova teoria:
“A loucura, objeto de meus estudos, era até agora uma ilha perdida num oceano de razão; começo a suspeitar que é um continente.(..) Supondo o espírito humano uma vasta concha, o meu fim Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia.”
A nova teoria é o turning point do conto. A ação a partir daí se precipita numa sucessão de internações descabidas. A população:
“Não se sabia já quem estava são, nem quem estava doido.”
O narrador dirá, com sabedoria:
“Daí em diante foi uma coleta desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou curso à mais simples mentira do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não fosse logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia.”
Nesse ponto vê-se claramente que a ficção, a imaginação, qualquer excesso do espírito não passava incólume ao cartesianismo do Dr. Bacamarte, culminando até mesmo na internação da própria D. Evarista. Em todos esses momentos, o narrador, que encobre o autor-implícito, faz a ruptura entre o homem de ciência e o homem de ficção, onde o primeiro enlouquece por excesso de imaginação “científica” e o segundo porta uma contundente verdade. Enquanto o homem de ciência despreza, encarcera, simbolicamente, o homem de ficção, este se “vinga” demonstrando onde está o falso: a partir daí o contista vai revelar que a exigência lógica do próprio cartesianismo é o que vai arrastar o alienista à Casa Verde. Dr. Bacamarte começa a desconfiar que sua teoria deve estar errada na medida em que, ao cabo de certo tempo, 4/5 da população se encontra internada. O Dr. Simão vai ser obrigado, por uma questão de estatística, a concluir então pela teoria oposta: estatisticamente, a loucura só pode, então, ser o inverso de qualquer excesso: o perfeito juízo, ou seja, o perfeito equilíbrio das faculdades mentais. Dr. Simão liberta então a todos. Ainda assim, resta a determinação pela câmara de que sejam internados aqueles que demonstram o perfeito equilíbrio das faculdades mentais. Nesta parte, o conto sofre outra reviravolta. Aqueles que durante as rebeliões e ao longo das peripécias do nosso herói demonstraram sensatez e equilíbrio, são internados para estudo.
Bacamarte, por intermédio de seu tratamento, consegue provocar em seus “doentes” alguma prova de desmesura: seja algum excesso de ambição encoberto, seja alguma pequena distorção da realidade, seja alguma mentira com fins pouco nobres, etc. E, assim, consegue libertar um por um, esvaziando a Casa Verde.
Surpreende-se, contudo, o nosso obstinado alienista: não haverá em Itaguaí um único louco?
A partir daí está preparado o terreno para o tragicômico desfecho da história, fatal para o herói, pois a conseqüência lógica é que o próprio Bacamarte, conta o narrador:
“Achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral. Poderia considerar-se um acabado mentecapto!. Ainda assim, em seu afã objetivista, Bacamarte convoca os amigos que ponderam com ele:
Dr. Simão possuía todas as qualidades do perfeito equilíbrio mental: sagacidade, paciência, perseverança, tolerância, veracidade, vigor moral, lealdade. E o pior: mais uma qualidade ¾ a da modéstia, que o impedia de ver-se como tendo o juízo perfeito:
Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça juntamente alegre e triste, e ainda mais alegra do que triste. Ato contínuo, recolheu-se à Casa Verde (..) ¾ a questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática.”
Simão Bacamarte morre dali a 17 meses, sem ter podido alcançar nada. A alusão é evidente: sujeito e objeto do conhecimento se fundem, e a metodologia positivista fracassa.
Freud teve melhor sorte.
O encerramento de Freud em sua Casa Verde particular, a sua conhecida auto-análise, resultou na elaboração de sua obra magna, A interpretação dos sonhos, onde ele elabora uma nova lógica para a vida psíquica, a lógica do inconsciente, respondendo, assim, o pensamento humano por uma nova sintaxe, para além da sintaxe do homem diurno da vigília. Um novo modo de conhecer, um novo paradigma é criado pela Psicanálise, que nada tem a ver com o paradigma da medicina, muito embora brote de seu interior, particularmente da neurologia.
Freud, jamais negou sua condição de homem de ciência positiva, paralelamente à sua condição de analista, criador de um novo paradigma. Vale lembrar que ele sempre apostou na elucidação de processos bioquímicos supostamente subjacentes aos processos psíquicos. É de se esperar que Freud aplaudiria com gosto a descoberta dos neurotransmissores e a determinação irrefutável de sua influência nos processos psíquicos. Na realidade, Freud propõe uma relação concomitante e dependente entre os processos fisiológicos e psíquicos. O que Freud fez foi renunciar à neurologia e a se pronunciar sobre qualquer prioridade de causação entre os dois domínios, atendo-se, a partir do abortamento do Projeto para uma Psicologia Científica, à exploração do psiquismo. Para superar o problema do conhecimento que seu objeto lançava, teve de criar uma nova disciplina, não mais apoiada em métodos positivistas de conhecimento e sim ancorada na arte de interpretar sentidos, o que a afasta radicalmente de qualquer aspiração objetivista, e acaba por aproximá-la mais do domínio da linguagem e da literatura.
Na última frase do conto:
“Seja como for, efetuou-se o enterro, com muita pompa e solenidade”, Machado enterra o homem de ciência, rompendo literariamente aquilo que Michel Foucault avança, quando faz a arqueologia de uma interdição. Pois, filosoficamente, a aspiração cartesiana a uma objetividade absoluta condena ao silêncio a própria loucura que Dr. Bacamarte tanto quer estudar. É aí que o positivismo dá um tiro em seu próprio pé, daí a suprema ironia do nome de nosso herói, o bacamarte, antiga arma de fogo, cuja dinastia, aliás, é bom lembrar, é extinta com o Dr. Simão.
Até mesmo Freud começa sua carreira como o nosso herói, envolvido no desejo de elucidar e erradicar os sintomas histéricos, como neurologista bem-intencionado que era. Contudo, a ironia na história das idéias, como anuncia tão bem Machado, prega uma peça também à Freud. Pois assim como o alienista de Itaguaí, o ilustre vienense, partindo dos sintomas neuróticos chega aos sonhos, destes aos esquecimentos, aos lapsos de linguagem, aos atos falhos, até a vida mental como um todo, ou seja, ao derramamento da desrazão na psicopatologia da vida cotidiana. Mesmo a noção de fato acontecido, ou de realidade factual, ou qualquer tipo de ancoragem na realidade, cai totalmente por terra, desde o texto Lembranças encobridoras, onde a memória torna-se terreno movediço, uma ficção que depende seja das circunstâncias do presente, seja do projeto de futuro. Assim Freud, como o alienista de Itaguaí, vai reencontrar em si mesmo a loucura de seus “doentes”. Como também a reencontra no mundo das idéias, ali onde pensava-se que ela teria desaparecido, ali onde não se suspeitava mais encontrá-la implicada com a razão (Herrmann 1997). Vale lembrar que Freud, com assombrosa honestidade intelectual, vai se perguntar, ao fim da minuciosa análise dos delírios do presidente Schreber: onde se encontra a maior dose de verdade? Nos seus delírios teóricos ou nas teorias de Schreber?
De forma lúdica e pedagógica Machado brinca com nossa obsessão de objetividade, resquícios de nosso nascimento no interior da prática médica, transformando o alienista numa ficção delirante e o narrador do conto em homem de razão.
É aí que observamos a operação de ruptura de campo efetuada por Machado, pois o autor denuncia o campo do saber instituído, deixando entrever suas regras organizadoras, tão insensatas quanto aquilo que nosso alienista desejava estudar. Aquilo que se dá a ver e transforma o campo representativo é o efeito daquilo que Herrmann denomina de ruptura de campo, base da operação psicanalítica, mas que pode ser encontrada na Literatura, nas Artes, no mundo, ampliando consideravelmente o escopo de nossa disciplina, dirigindo-se, assim ao horizonte de sua vocação (2002).
Essa curiosa inversão nos diverte, faz com que possamos rir de nós mesmos, de nosso suposto saber, e nos ensina a curar nossa ânsia de sabedores, rompendo a cegueira da onipotência.
Uma vez que nosso autor rompe o campo, deixa entrever e inverte os termos da questão do conhecimento em causa, podemos com ele perguntar:
Quem diz que a literatura não cura?
Por Rejane Guedes
Iza, o texto é um passeio muito bem articulado com a teoria freudiana e a obra do Machado de Assis. Parabéns à autora.
Ajuda a pensar nossas práticas, nossas atitudes individuais e coletivas onde insistimos em valorizar a ‘razão’, esquecendo que a ‘des razão ‘ é a sua gêmea siamesa. Ao descolarmos as duas estamos assumindo o risco de provocar grandes problemas.
Fico pensando no efeito das políticas de combate às drogas e na forma de controle químico das crianças (e adultos).
Torço para que a arte nos salve, pois cada vez mais : Tá todo mundo louco… Ôba!
Rejane.