Eutanásia e Morte (In)digna: Campanha Publicitária Transforma Candidatos Presidenciais em Moribundos (Erasmo Ruiz)
Na França existe uma combativa organização cuja sigla é ADMD (Associação pelo Direito de Morrer Dignamente), que defende a legaliização da prática da eutanásia. Nos últimos dias lançou uma campanha onde apresenta candidatos franceses a presidência da república em instigantes montagens fotográficas representados como pacientes moribundos. No anúncio uma pergunta é feita: "Senhor Candidato. Devemos coloca-lo em tal situação para que mude seu posicionamento sobre a eutanásia?". Os anúncios ainda instigam os franceses para que não sejam roubados em sua última expressão de liberdade.
O debate sobre a legalização da prática da eutanásia é interminável. No entanto, nas últimas décadas,parece ter ganho espaço a perspectiva de alguma forma de regulamentação de uma prática que se sabe existir com maior ou menor visibilidade em muitos serviços de saúde. Alias, este é um forte argumento para aqueles que defendem a regulamentação da eutanásia,qual seja, a ausência de regras claramente postas faz com que pacientes possam estar sendo mortos sem critério algum, de maneira clandestina e indigna.
Muitos defenderão a ideia de que o próprio ato da eutanásia é indigno por si mesmo pois o homem que e requer não seria em ultima instância proprietário de seu corpo e sua vida, seja porque pertenceria à alguma entidade metafísica, seja porque a vida individual deve se submeter aos ditames do interesse coletivo.
Outros defenderão o princípio da dignidade no sentido de fruição daquilo que a vida pode nos dar de bom e belo, nossa capacidade de fruir o gosto e o cheiro das coisas, nossa necessidade de apreciar um quadro de Monet ou um belo por de sol, nossa alegria em maximizar prazer e assim se afastar de toda dor e sofrimento. Por este argumento, a dor é sempre inimiga da beleza e diante das vicissitudes do sofrimento, seja físico e/ou psíquico, é correto abreviar o caminho, buscar um atalho e morrer longe de tudo o que causa desconforto.
Mas e se a dor e o sofrimento puderem ser manejados de forma adequada? E se existirem técnologias que possam trazer o máximo de conforto possível em situações onde isso pareceria improvável? Haveria a necessidade de garantir legislações para que as pessoas pudessem fugir dos tratamentos fúteis, dos terapeutas obstinados, dos labirintos indecifráveis de exames médicos desnecessários quando se está perto de sair de cena? Muitos paliativistas são contra a eutanásia por acharem que o cuidado paliativo é a resposta ao grito de desespero motivado pelo medo do sofrimento provocado por trabalhadores de saúde e familiares bem intencionados que podem não nos deixar morrer em paz.
Imaginando a história humana, as vezes a vejo como um túnel onde centenas de gerações marcham por um longo e árduo caminho que parece nos conduzir a uma luta feroz e até genocida em nome de um conceito abstrato aparecido pela primeira vez escrita em uma tábua de argila datada de mais de 5000 anos de idade: LIBERDADE!
Das pirâmides para as galés romanas passando pelas muralhas de Cosntantinopla às "plantations" de cana de açúcar e chegando à barbárie dos campos de concentração, os homens querem ser LIVRES! E para tal, afirmam o tempo todo que são humanos em suas múltiplas possibilidades e diferenças. Talvez em futuro próximo se descubra que o último espaço a ser conquistado são os limites insondáveis dos nossos corpos. Talvez assim se chegue a uma solução para a eutanásia. Caso sejamos de fato donos de nossas vidas, este seria um bem tão precioso que não pode ser reduzida a algo que se perde de forma tão banal mas que também deve ser mantida com prazer, alegria e dignidade.
Quando a publicidade da ADMD coloca as imagens de políticos a beira da morte não é apenas a busca de suas empatias com o tema que se acaba conquistando. Um olhar um pouco mais arguto também poderá se ver nessas imagens. Todos nós um dia poderemos estar em camas de hospitais a espera da morte. O quanto do nosso sofrimento será suportável? Teremos diante de nós possibilidades claramente asseguradas de que esse sofrimento poderá ser minimizado? Mas ainda assim não teríamos o direito de sair um pouco ante de cena já que o "filme" não agrada mais? Temos ou devemos ter a posse definitiva do que se convernciona chamar de vida pessoal? Caso a resposta seja sim, então poderemos disponibilizar de nossas vidas da foma como desejarmos.
São muitas perguntas. Temos a difícil tarefa de construir respostas que se transformem em ações práticas! E só faremos isso na medida em que formos mais empáticos com quem está morrendo, seja pela busca da legalização da eutanásia, seja pela difusão de práticas paliativistas.
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Querido Erasmo,
Por algum motivo ainda obscuro prá mim, não consigo mais pensar tranquilamente que eu seria "dona" de minha vida. Não sei se tem a ver com ter tido filhos… Sinto-me dona de meu corpo em um certo nível, mas ser dona de minha vida requeriria toda uma discussão…
Ao ler teu post, lembrei das questões levantadas por Deleuze antes de dar cabo de sua vida. Para ele, uma vida seria algo que pudesse ser experenciado em sua potência, o que é diferente para cada um. Era preciso produzir, poder pensar e escrever para viver. Uma vida é vida quando criativa, no sentido de produção de algo novo, renovação imprescindível, idiossincrasia do viver. Quando essas condições se tornaram impossíveis, Deleuze deu cabo de si. Após a sua morte, houve uma grande abertura de discussão deste assunto tão próximo do tabu. Muitos filósofos falaram, outros deram visibilidade à emoção de perdê-lo.
Num belo artigo sobre a morte do filósofo francês (Afirmação num lance final" – Cadernos de Subjetividade, originalmente publicado n’ O Estado de São Paulo de setembro de 1995, com o título "Morte era para ele a marca da permanência" ), Luis B. Orlandi afirma que para Deleuze não haveria tempo para lutar pela eutanásia e que seu "modus vivendi" não se pautava pelas lutas por legalidades. Ao contrário, era preciso produzir linhas de fuga em relação às legalidades. Não por ser contra as leis, mas simplesmente por constatar que elas não dão conta da infinita riqueza afirmativa da vida.