Por Ray Lima
Nunca vi, vivi tanta ciência, educação popular, arte, amorosidade, humanização, produção de saúde, alegria, criatividade, fé, liberdade, afetividade incondicional, espontaneidade, vontade coletiva, expressividade, intuição, humanidade, etc. tudo isso junto e ao mesmo tempo. Uma polifonia de existência, resistência e saber.
Desde o dia 09 de julho que estamos acampados, ou melhor, hospedados no Hotel da Loucura, no terceiro andar, um espaço adaptado de antigas enfermarias desativadas do hospital psiquiátrico Nise da Silveira. Trata-se do II Congresso da Universidade Popular de Arte e Ciência – UPAC que este ano acontece dentro de um hospital. Aqui nos misturamos com os "clientes" como Nise gostava de chamar as pessoas que são trazidas para cá em busca de tratamento, amparo e cuidado. Antes da Dra. Nise da Silveira reinavam o eletrochoque, a lobotomia e outras soluções tanto quanto brutas, violentas. Hoje sentimos que, embora com os avanços provocados pela ação corajosa e amorosa daquela mulher alagoana e nordestina a partir da arte e da ciência, muito tem a ser feito em termos de conduta médica e de aprofundamento da pesquisa e da prática da arte em processos de cura, de reanimação do ser para a retomada de sua dignidade como ser humano autônomo, liberto e senhor de si. Dra. Nise demonstrou que isso é possível por meio da criação artística, principalmente da pintura e também da terapia com animais. E nós, a partir do teatro, da cenopoesia, da dança, da música, das manifestações e celebrações criativas e alegres, em 15 dias de residência e resistência, convivendo com tantas pessoas maravilhosas, sensíveis, sofridas, mas extremamente inteligentes e capazes de se relacionar com o outro com uma sinceridade que nas relações sociais lá fora é muito raro encontrarmos. É assim, fazendo arte, comendo, aprendendo e vivendo juntos, até porque alguns deles e delas passaram a dormir no Hotel da Loucura conosco, portanto é desse modo que vamos desvendando os mistérios das relações humanas, dos desequilíbrios que a sociedade gera em nossos corpos e almas e depois nos expurga, nos afasta do convívio coletivo, nos atrancafiando nas redomas da solidão, do desprezo e da violência. Hoje não mais do eletrochoque e da lobotomia, mas ainda da chamada "camisa-de-força química" e do descuido, de sutis maus-tratos físicos e anímicos. Pelos depoimentos emocionados de cuidadores e clientes, pela nossa emoção, pela mudança sentida também em nós esse congresso representa um passo fundamental adiante em relação aquilo que Nise da Silveira iniciou nos 40 do século passado.
O jovem artecientista Vitor Pordeus através da UPAC e do Núcleo de Arte e Ciência da Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro nos provoca e aponta caminhos. Por aqui já passaram José Pacheco da Escola da Ponte de Portugal, Amir Haddad do Tá na Rua do Rio de Janeiro, Dra.Vera Dantas das Cirandas da Vida-CE, o diretor, encenador, cenopoeta e dramaturgo Júnio Santos do Movimento Escambo Popular Livre de Rua, Dra. Heloísa Helena Costa da Universidade Federal da Bahia e seu filho, o psicólogo Ivan Costa; Além destes os grupos de teatro de rua de São Paulo:Pombas Urbanas, Inventivos e Buraco d'Oráculo; e ainda o músico e compositor Edu Viola e sua companheira educadora e cantora Lu Calheiros. Do Ceará: Pintou Melodia na Poesia; Cirandas de Arte, Aprendizagens, Pesquisa e Cuidado; as Cirandas da Vida; e o Templo da Poesia. De Sergipe: duas representantes do MOPS/ANEPS das práticas integrativas e populares de Cuidado de Aracaju; do Pará os estudantes de medicina e da Trupe da Pro-cura, Vitor Nino, Bruno Brabo e Bruno Passos; de Florianópolis a cuidadora e Homeopata Dra.Haydê Haviaras; do Rio o Cantor Ney Matogrosso; Mãe Tânia, Leo e Gabriela Haviaras do grupo Tupi NagÔ, e os agentes culturais de Saúde; o pesquisador da Fiocruz e palhaço Matraca; o dentista, gestor de saúde e músico Gert Wimmmer, entre outros; do Rio Grande do Norte, o Xamã e Pajé, Amauri Gurgel, o Bando La Trupe de Natal, representado por Filippo Rodrigo, e o Cervantes do Brasil de Macau. Do Nise da Silveira, Dra. Gladis coordenadora do Museu do Inconsciente, o diretor do Instituto Nise da Silveira, o ponto de cultura Loucura Suburbana. E por fim: Reginaldo ou dependendo da ocasião e do dia pode ser nosso Rei Naná ou nossa Rainha Judith; o Pelézinho, cantor, compositor e rei das embaixadinhas; Rogerinha, cantora de rap e samba maravilhosa; Roque, intérprete incrível de Roberto Carlos e ator; Odacir, cantor de samba canção e de raiz; Gadu, o Grande Arquiteto do Universo, de uma cultura literária invejável, canta Chico e recita Vinícius. Rogerinho, o nosso passarinho beija-flor, de uma singeleza, delicadeza absoluta e encatadora; Jeane Cardoso, Rita, Ritinha, Enoque, Janice, Flávia, Patrícia Marinho, Wagner, Miriam das empadas, Jorge, entre tantos outros e outras que não caberia nesta lista de homens e mulheres doidos e doidas para viver e ganhar um espaço para expressar suas dores, sonhos e esperanças. Aqui nasceu uma nova visão de saúde mental e o museu do inconsciente. Agora é dado um outro passo importante rumo a uma base de formação e de práticas substanciais em arte e ciência.
Estou espantando com tudo isso. Vida que segue sob o ritmo alegre e aprendente do Ocupa Nise e do Congresso da UPAC.
Seguem dois poemas de um cliente do Nise da Silveira:
De uma triste enfermaria
eu vi nascer luz cor e alegria
De um lugar de pessoas presas em grilhões
eu escutei o clamor de muitos corações
e vi todos envoltos em paz e serenidade
e vi que valia a pena lutar por alguma verdade.
Luciano Soares Côrtes
OCUPA NISE – Hotel da Loucura
Rio, 20 de julho de 2012
E cada momento
eu viverei intensamente
o passado ficou marcado
este já não posso modificar
E cada momento presente
eu ficarei bem contente
com alegria
em cada amanhecer
pois viver é o que me apraz
Sempre bem viver um pouco a cada dia
Luciano Soares Côrtes
Rio, 16 de julho de 2012
OCUPA NISE – Hotel da Loucura
(VEJA OUTROS TEXTOS, FOTOS E wwwcenopoesiadobrasil.blogospot.com)
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Por raylimalima
Por Edson Oliveira
1
Não sou poeta famoso
Mas gosto de escrever
Faço verso de improviso
Para quem desejar ler
Para fixar na memória
Gosto de contar historia
Que faça o povo entender.
2
Sai lá do Ceará
Para o rio de janeiro
Onde pude me encontrar
Com diversos companheiros
Num encontro fabuloso
Um projeto audacioso
De um médico tão guerreiro.
3
Ele costuma dizer:
“somos todos alquimistas
Transformamos chumbo em ouro
Esse é o papel do artista
Mudar a realidade
Sair da mediocridade
Passar a vida em revista.
4
Eu vou começar falando
Na reforma da estrutura
No hospital psiquiátrico
Um prédio da prefeitura
Uma ala foi ocupada
E por ele transformada
No belo hotel da loucura.
5
Ainda dava pra notar
As marcas de sofrimento
Grades postas nas janelas
Portas de ferro por dentro
Mas com garra e ousadia
O que era enfermaria
Passou a ser aposento.
6
Aos poucos veio chegando
gente de todo lugar
Do estado de são Paulo
De Sergipe e Ceará
E de muito mais alem
Veio gente de Belém
Do estado do Pará.
7
Fez muito frio à noite
Mas ao raiar do novo dia
Todo mundo levantou
Com enorme euforia
Fazendo grande festança
Muitos caíram na dança
Foi uma só alegria.
8
Nossa primeira assembleia
Foi de forma sem igual
Artistas e cuidadores
E clientes do hospital
Todos fomos nos unindo
E aos poucos construindo
Afeto incondicional.
9
Essa nova experiência
Marcou-me profundamente
Entre os participantes
Ninguém era diferente
Do poeta ao cientista
Do maluco ao artista
Seres humanos – somente.
10
Todos tinham voz e vez
Falava o que bem queria
Cada um se declarava
Do jeito que mais sabia
Um cantava outro dançava
Ou simplesmente gritava
Extravazando alegria.
11
O gostoso desse encontro
Foi a nossa convivência
A mistura de costumes
Cultura, arte e ciência.
Cada um com alegria
Partilhando o que sabia
Trocando experiência.
12
Essa é a grande marca
Da educação popular
Essa troca de saberes
Esse jeito de animar
Não dando nada prontinho
Mas mostrando que o caminho
Será feito ao caminhar.
13
E para o dia seguinte
Um pouco improvisado
Sem muita programação
Sem ter nada preparado
Para nos energizar
Podemos participar
Do corredor do cuidado.
14
O corredor do cuidado
Comoveu a muita gente
Para alguns aquela pratica
Era algo diferente
Essa forma de energia
Muitos deles nem sabia
Que imanava da gente.
15
Na visita ao museu
De imagens do inconsciente
Podemos observar
Um acervo mui potente
De telas e esculturas
Porque mesmo na loucura
O ser humano é inteligente.
16
Podemos também notar
Presente a cada momento
Impresso através da tela
Resquícios de sofrimento
E quem apura o olhar
Também pode observar
A riqueza de sentimento.
17
O decorrer da semana
Foi de festa e brincadeira
Oficina de teatro
Um cortejo para a feira
Mas além de oficina
Ouve até festa junina
Mesmo sem termos fogueira.
18
Muitos vem nos visitar
E ficam emocionados
Ao ver todo mundo alegre
Cantando muito animado
Não basta se emocionar
Precisam colaborar
Pra manter o resultado.
19
Afetos é o que não falta
Entre essa gente sofrida
Marcada pela tragédia
Com sua alma ferida
Que com o seu sofrimento
Nos diz a todo o momento
Cuidemos melhor da vida.
20
Toda essa experiência
Muito nos tem ensinado
O nosso jeito de agir
Precisa ser transformado
Não basta sair na fita
Essa gente necessita
De atenção e cuidado.
21
Nós precisamos fazer
Uma boa reflexão
Em que foi que melhoramos
Com essa grande ação
O que mais vamos fazer
Pra que possam perceber
Que ouve transformação.
22
Dos clientes do instituto
Quero falar nesses versos
Começando por GADU
Grande arquiteto do universo
Poeta e bom cantor
Que a todos conquistou
E entre nós foi sucesso.
23
Pra falar de REGINALDO
Quem quiser que se habilite
Nele estão três pessoas
É um caso sem limite
Não dá para acreditar
Em um só dia ele é NANÁ
É REGINALDO ou JUDITE.
24
ROGERIA me impressionou
Com seu jeito de cantar
Sua voz rouca e cansada
Mas sabe interpretar
Com o talento que tem
Ela canta muito bem
Pra todos admirar.
25
ROGERINHO sempre alegre
Não para de agradecer
Quando o pega o microfone
Grita com todo prazer:
“obrigado e Evoé”
Os outros ficam de pé
E começam a responder.
26
Pra falar de PELEZINHO
Preciso ser mais direto
Quando é elogiado
O seu ego vai ao teto
Pra compor e pra cantar
Dar embaixada e dançar
Diz-se o artista completo.
27
São tantas pessoas belas
Que vou levar na memoria
IDEMILTON, ROQUE, JORGE
Cada um com sua historia
RITA, PATRICIA E PRICILA.
e outras que aumentam a fila
De tristeza e luta inglória.
28
Já diz um velho ditado
Que de artista e louco
De medico e advogado
Todos nós temos um pouco
Ser louco não é defeito
Doido mesmo é o preconceito
Que mata só no sufoco.
29
Os nossos princípios são
luz e sabedoria
o autoconhecimento
resistir a cada dia
incompletude e incerteza
o a nossa fortaleza
mantêm viva a utopia.
30
Presente a cada instante
pra nossa motivação
o gozo e os afetos
o amor e a emoção
espanto e felicidade
e a dura realidade
que nos motiva a ação.
31
Mergulhar nos desafios
Partilhar compartilhando
Gerar nova consciência
Experenciar cuidando
Fazer novas descobertas
Animado sempre alerta
E prosseguir recriando.
32
Cada dia uma novidade
Cada hora uma surpresa
Cada gesto de carinho
Mostrando-nos a certeza
Estamos no rumo certo
Pra tornar esse deserto
Num grande mar de beleza.
33
Mas é preciso cuidado
Pra não cair na ilusão
De achar que tudo é fácil
Que basta um toque de mão
É bom a gente sonhar
Melhor ainda é acordar
Com os pés firmes no chão.
34
Porque existem pessoas
Que pensam bem diferente
Que poesia não é remédio,
Que arte não cura a gente,
Quem tem problema mental
deve está no hospital
amarrado por corrente.
35
Onde está o ser humano
Que humano ser somos nós
Que não cuidamos do outro
Que não ouvimos sua voz
Quanta miséria se ver
Pra não se comprometer
Partimos muito veloz..
36
Me disse um velho Sábio
Ninguém se liberta só
Uma rede se constrói
Amarrando nó com nó
Por isso demo nos as mãos
Pois só com a nossa união
A vida fica melhor.
Edson Oliveira
Cordelista e educador popular das Cirandas da vida – estratergia de educação popular em saúde da SMS- Fortaleza
Por raylimalima
ENGENHO DE DENTRO PRA FORA:
Experiências e Poéticas no Hotel da Loucura
Esta série de textos relatará a experiência de três
dos artecientistas do NARIS em sua hospedagem
no Hotel da Loucura. Bruno Brabo, Bruno Passos
e Vitor Nina estão neste momento no Rio de Janeiro,
em Engenho de Dentro, no Hospital Psiquiátrico
Dom Pedro II, no Ocupa Nise, uma ocupação
permanente de um dos andares do hospital. Aqui
estão reunidos poetas, curadores, educadores populares,
clientes do hospital e quem mais quiser entrar, numa
experiência científica e num manifesto artístico por novas
concepções de saúde. Este projeto é realizado pela
Universidade Popular de Arte e Ciência e pelo Núcleo
de Arte e Ciência da Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro.
Acompanhe os textos pelo blog.
Por Vitor Nina
Já faz quase uma semana que estou hospedado no Hotel da Loucura. Escrevo de uma antiga sala de prescrições médicas, hoje transformada em biblioteca. Baruch de Spinoza, Nise da Silveira, Humberto Maturana, Antonin Artaud e outros nos fazem companhia. As cores nas paredes são fortes, um amarelo girassol, roxo e azul que dialogam, que gritam e recitam. Flores naturais, flores pintadas, panos floridos, mandalas, escritos pela parede. O colorido surreal das instalações salta sobre o espírito, espalha segredos entre os sentidos de todos. Nas paredes as manifestações de inúmeros visitantes deste abrigo de lúcidos. Tem-se a impressão de que, a qualquer momento, tudo explodirá em labaredas de luz e gente. E é, de fato, o que acontece.
Enquanto escrevo, Pelezinho, morador e artista de rua, joga damas ao meu lado, e sonha cantar na rádio. É compositor, poeta, crooner, jogador de embaixadinhas, cozinheiro, showman, xamã. É um dos que habitam esta casa de homens e mulheres, de crianças e animais, de deuses e maltrapilhos. A casa é nossa, e é familiar a todos, porque ao atravessarmos a porta onde se lê “Entra e sai perguntando”, não entramos apenas na ocupação física, que resiste à impunidade das violências legalizadas com purpurina e carnaval. Ao passarmos pelo saguão de recepção da loucura, entramos no Homem, e essa é nossa morada eterna. A verdade é que sempre estivemos neste hotel, e nunca o deixaremos. Estas paredes apenas revelam as paredes de nosso espírito, os moldes da psique. Não à toa tantos arquétipos nos devoram o tempo inteiro: o bico de um pássaro pintado sob a janela, o amor escrito em uma mandala perpétua, a dança imanente revelada nos batuques, os demônios e os anjos que superaram as diferenças mesquinhas e hoje são apenas natureza.
Considero este meu ritual de passagem para a arte da cura. Em breve serei médico, terei diploma, terei código e carimbarei doenças. Meu Deus, a medicina moderna é uma doença venérea. É egolatria das gônadas, sem nenhum Eros, não dança nem conhece Dionísio. E ri-se a plenos pulmões do que desconhece, com seu pau murcho e suas costas arqueadas. Aqui, entre os loucos, aprendo Amor, aqui sou aprendiz dos xamãs e dos poetas, aqui faço ciência, cada vez mais alucinado pela plenitude dos mistérios. Este assombro tem o conforto de um abraço, é um alívio poder desconhecer e suspirar deslumbrado: meu Deus!
Aqui não há rei, e Deus está nu. Aliás, Deus convulsiona, Deus mora na rua e faz embaixadinha, Deus usa crack e quer parar, Deus está amarrado em sua cama e grita a noite inteira querendo sair, Deus foi internado há trinta anos, Deus não tem uma perna, Deus usa peruca para poder ser Três e Um ao mesmo tempo, Deus fuma e dá esculacho, Deus invade mansão de rico, Deus sabe uns poemas que recita de cor, Deus dá cantada na morena, Deus dá cantada na loirinha, Deus é doçura e dor, escravidão e açúcar de Engenho de Dentro. E, sobretudo, Deus dança, Deus dança o tempo inteiro, dentro e fora do hospital, cirandando, dentro e fora do corpo, cirandando, Deus dança e se revela tão simples que dá susto, e depois faz gargalhar gostoso.
“Eu tinha uns 70 anos, hoje devo ter uns 40, mas dizem que tenho 26”. Rogerinha dá um sorriso magro e na minha cabeça floresce novo canavial. Meu Engenho de Dentro canta seus cantos de liberdade: “levanta, povo, cativeiro se acabou…”
Engenho de Dentro, Rio de Janeiro, 21 de julho de 2012
Por raylimalima
UNIVERSIDADE POPULAR DE ARTE E CIÊNCIA – UPAC-RJ
A UPAC – Universidade Popular de Arte e Ciência apresenta a todos os participantes do seu II Congresso seus princípios filosóficos, pedagógicos e as ideias-forças que regem seu antiprograma pedagógico.
Desde já declaramos publicamente e a quem interessar possa que nossa proposta educacional está calcada em uma visão de educação que toma a vivência como caminho e considera o saber-de-experiência-feito como ponto de partida, base da produção do conhecimento. Aqui referenciamos um dos nossos mestres, Paulo Freire, que nos ensina que o conhecimento provém da experiência. Nos ensina ainda, dialogando com nossa mestra maior, Nise da Silveira, que não se educa só pela racionalidade. Portanto, apresentamos a amorosidade como princípio fundante de nosso caminho pedagógico e que gera o afeto catalisador, grande legado de Nise que, por sua vez, gera cuidado e alegria, também conceitos que nos iluminam e orientam o nosso caminhar. Aprendemos com Baruch de Spinoza que somos afetados pelas paixões e que as paixões que geram alegria despertam nossa potência de viver. Logo as paixões alegres constituem-se também referências de nossa prática pedagógica. Também dialogando com Nise e Spinoza referendamos a ideia de Deus como algo inerente ao humano, síntese entre transcendência e imanência, sagrado e profano, corpo e espírito. Apresentamos a vida como centralidade, biocentrismo em vez de antropocentrismo. Em vista disso nossa universidade referencia as práticas tradicionais como o xamanismo, o candomblé e tantas outras, como caminhos de aprendizagens significativas, de fortalecimento da identidade e do desvelamento que Jung chamou de inconsciente coletivo. Na UPAC propomos uma ciência intuitiva que considera a importância do ato criador e onde criação não se separa da invenção. Onde a poesia e a cultura popular revelam a beleza do conhecer que gera luz, faz nascer novas possibilidades de transformação do cotidiano em suas complexidades. Referenciamos ainda Paulo Freire ao compreendermos o humano como inacabado em sua incompletude que valoriza o saber do outro e da outra respeitando as diferenças e reconhecendo as semelhanças propondo o exercício da alteridade produtor de polifonias e policromias.
Parte de uma visão ética que considera a fraternidade e a solidariedade como ideias-forças e compreendendo a circularidade sistêmica, propõe mandalas como sínteses reflexivas e movimentos em teias que referendam a conjugação do verbo esperançar como estratégia de conquista da liberdade.
E para que esses princípios e ideias-forçae possam materializar-se, nós atores-sujeitos, protagonistas desta construção, aprendizes da arte do bem viver, propomos caminhos nos quais é possível conjugar o ser, saber e o querer, e onde a escuta sensível, o afeto geram movimentos em potência, atitudes propulsoras para que o mergulho nas vivências produza a abstração acerca do vivido. Nosso caminhar pelos caminhos da terra nos ajudará a construir uma organização que rompa com as hierarquias e as estruturas rígidas; nossa dança pelas chamas energizantes do fogo alimentará a nossa rebeldia e manterá vivo o nosso espírito de luta; nosso navegar pelos caminhos das águas manterá viva a nossa criança e com ela a espontaneidade, o mimo com os que se achegam, a energia brincante que se faz roda-cirandando, cantando e colorindo os espaços com alegria a se expressar nos sorrisos, nos beijos e abraços; nossos vôos pela energia do ar, espalharão poemas e canções e convivendo e partilhando, ensinando e aprendendo vamos construindo o sentido mais profundo da ajuda mútua, do respeito, do diálogo, do ser feliz, onde o processo educativo se faz manifestação, festa, celebração.
Sabemos que muitos são os que se deixam afetar pelas paixões tristes, geradoras de dor, medo, limitações que produzem marcas, cicatrizes, o medo que amordaça, produz amarras. Essas situações-limite são por vezes fardos pesados que muitos insistem em carregar e geram adoecimentos. Mas não as vemos como barreiras intransponíveis: acreditamos que é possível romper com o preconceito, a culpa e a exclusão. Dizemos não à prisão e à drogadição como recurso atuando como camisa-de-força química.
Conjugamos o verbo esperançar e como protagonistas desse caminhar vamos construindo o inédito viável rumo à nossa utopia. Nesse não lugar, essa escola sem paredes, nós, crianças, idosos, homens e mulheres de todas as cores e de todas as raças, com família e sem família, com eficiências e deficiências, artistas, músicos, abre alas, saltimbancos, educadores e educandos, mães de santo, xamãs, bruxos, magos, monstros, cuidadores e cuidadoras, loucos por arte e por vida vamos desenhando nosso percurso com o respeito a todos os seres, promovendo a inclusão dos diferentes, dos oprimidos em busca da independência em um processo de organização pautado na liberdade que tem a emancipação como conquista.
Rumo ao inédito-viável seguimos em frente sem medo da felicidade, da alegria ou da loucura ofertamos a nossa gratidão aos nossos mestres da cultura popular, Nise da Silveira, Baruch de Spinoza, Nelson Vaz, Amir Haddad, José Pacheco, Heloisa Helena e tantos outros, por iluminarem nossos caminhos com seus ensinamentos e a todos os que ousaram conosco experenciar a loucura, a arte e a ciência nessa ocupação.
PRINCÍPIOS FILOSÓFICOS E PEDAGÓGICOS E IDEIAS-FORÇAS
Educação/ Vivência/Experiência/Amorosidade / Paixão/ Alegria/Afeto Catalisador /Cuidado
Deus/ Vida/ Biocentrismo /Xamanismo/Espiritualidade/ Inconsciente Coletivo/Transcendência/Imanência
Criação/Invenção /Ciência Intuitiva/ Circularidade/ Mandala/Teia
Ética /Solidariedade/Fraternidade
Luz/ Transformação/ Nascimento/Renascimento/Esperança/ Liberdade
Beleza/Poesia/ Cultura Popular
Incompletude/ Valorização do Outro e da Outra/ Alteridade(respeito às diferenças e semelhanças) Polifonia/ Policromia
PAIXÕES TRISTES/SITUAÇÕES-LIMITE
Dor/ Marca/ Fardo / Doença/ Drogadição
Medo/ Mordaça/ Limitações/Amarras/
Preconceito/ Exclusão
ATITUDES/ MOVIMENTOS GERADORES E PROPULSORES
Ser/Saber/ Querer/Abstração/Escuta/ Mergulho/Vivência
Afeto/Mimo/Ajuda/Partilhar/Ensinar/Aprender/Conviver/ Caminhar/Navegar
Respeito/ Rebeldia/Luta/Organização
Sorrir/Beijar/Abraçar/Falar/Dançar/Cantar/Colorir/Poetizar/ Brincar/Cirandar/ Ser Feliz
Espontaneidade/Festa/ Manifestação/ Celebração
UTOPIAS
Respeito/Inclusão/Organização/ Independência /Liberdade/Emancipação
SUJEITOS /PROTAGONISTAS/MESTRES/APRENDIZES
Nós
Crianças/Idosos/Homens/Mulheres/Negros/Pessoas com Deficiência/Famílias
Artistas/Músicos/Abre Alas/Saltimbancos
Estudantes
Mães de Santo/ Xamãs/Bruxos/Magos
Monstros
Soldados
Loucos
Cuidadores e Cuidadoras
MESTRES DA CULTURA POPULAR
Nise da Silveira
Baruch de Spinoza
Nelson Vaz
Amir Haddad
José Pacheco
Heloisa Helena
Drummond
Júnio Santos
Vera Dantas
Rio de Janeiro, 24 de julho de 2012
Por raylimalima
Ocupa Nise – Hotel da Loucura
Por Paulo Carvalho e Macelo Palmares
Gostaríamos de relatar a importância que este congresso tem para a sociedade e principalmente para os clientes e funcionários desta instituição a qual a Dra. Nise da Silveira se dedicou tanto, passando por cima de preconceitos e exigindo mudanças drásticas nos tratamentos utilizados que ao em vez de curá-los os deixavam como zumbis cambaleantes. Mostrou que com a arte é possível mudar, transformar, curar. Hoje estamos vivendo esta experiência de uma maneira intensa, fora de nosso ambiente de trabalho que já estamos acostumados para conviver durante 31 dias hospedados no Hotel da Loucura entre grupos de teatro de rua, músicos, bailarinos e bailarinas, brincantes, atores e atrizes, grandes poetas cantadores, artistas plásticos, médicos e futuros médicos, agentes culturais de saúde e clientes, que nos emociona, alegra e nos espanta.
E para nós, fazedores de arte, está sendo uma experiência motivadora e provocante, pondo a prova, a cada momento, as nossas capacidades artísticas e de convivência humana porque nesta convivência estamos misturados, deixamos de ser sabedores da arte para sermos aprendizes , de ser protagonistas de um espetáculo formal para ser coadjuvantes de várias histórias que estavam guardadas dentro de uma caixa a sete chaves e que agora se abre com a música , a poesia e imaginação. A nossa experiência tem que ser usada para contribuir na construção de novas possibilidades.
É lindo ver nas assembleias artísticas, seres humanos que estavam em uma condição de cativeiro, dopados pela consciência e sabedoria soberba de alguns ditos estudados da ciência do comportamento humano e do mercado farmacêutico, serem livres nas suas expressões, dos preconceitos, dos sossega-leão, do esquecimento, da desumanização. A cada dia que convivemos com os clientes percebemos como estão evoluindo. Quem não falava agora múrmura algumas palavras e canta, dança, se emociona e nos emociona. Quem era triste dava rompantes de gargalhadas, quem tinha pouco movimento dançava , quem era tido como violento dava abraços de amor e carinho, quem era tido como esquizofrênico declamava poesias de Carlos Drummond, e Vinicius de Morais e cantava músicas de Chico Buarque e Secos e Molhados com uma segurança de se maravilha, inventa, cria e recria novos ritmos, novas músicas. Saímos daqui renovados e recuperados, motivados por novas ideias, e que a Arte também pode remover montanhas. A Arte cura.
É incrível a coincidência de algumas coisas, ao terminar este escrito , Albertina trazida por Ivan para mostrar como ficou o Hotel da Loucura , abre a porta do quarto dizendo como foi a sua época de sua internação e agradece o que vê hoje com uma declaração do psicólogo Roberto Crema: “ Os que ainda mantém as ideias fechadas são os dragões e vocês que estão ocupando este espaço são os novos avatares”.
Paulo Carvalho, Marcelo Palmares e Natali Santos – Pombas Urbanas
Hotel da Loucura
Me hospedei no Hotel da Loucura
Não sabia o que ia fazer
Não sabia o que ia dizer
Me sentia preso , muitas vezes incapaz
E o que eu sabia não servia aqui,
O que eu queria não servia aqui,
O que compreendia tão pouco servia
Me hospedei no Hotel da Loucura
E fui atropelado por um caminhão de emoções e canções
Por poesias e atuações
Quebrei-me todo ficando em pedaços no chão
Mas aos poucos fui me recompondo só com os pedaços da imaginação
Para criar uma nova canção
E resto continua no chão.
Me vou do Hotel da Loucura
Agradecido com tudo que aqui
Aprendi.
Paulo Carvalho
Pombas Urbanas
Por raylimalima
Carta? Bilhete? Recado?
À Nise da Silveira
Dra. Nise,
Poderia falar do que vi, vivi e ouvi desde que pus os pés neste hospital pela primeira vez ainda em abril de 2012. Porém, prefiro dizer o que sinto: a sensação de estar ao mesmo tempo em um lugar de tortura, de enorme capacidade destruidora do ser, mas também em um ambiente de criação e profundo entendimento humano.
Por um lado, nos deparamos com as coisas que andam muito bem. Por outro, com aquilo que anda muito mal. E entre as forças do bem e do mal estão metidas as forças criadoras e transformadoras do mundo. A arte como possibilidades de redescoberta e reencantamento com o ato de viver.
Sinto que o desafio é permanente, o cuidado constante em se manter de pé a cantar a plenitude da vida que sofre agressões e ameaças de toda sorte. Ontem um resistente, a quem a sra. chamava de cliente denunciou ao mesmo tempo que anunciava:
a pomba da paz escureceu
derretida pelo sol ardente
o boto amoroso fisgou no anzol
enquanto uma luz acendia outro caminho
o cosmo sinalizou – a vida resiste.
Já sinto saudades do futuro.
Um forte abraço,
Ray Lima
Sim, o Reginaldo, ou melhor, Judite, ou seja, Naná, manda lembranças.
Reginaldo é um cliente que conviveu com a Nise e é um dos mais antigos residentes do Hospital Nise da Silveira. Para nós um sujeito emblemático que nos cativou desde o início da ocupação. Há dias que se fantasia e atende pelo nome de Judite, outros que só responde se chamá-lo de Naná e pouco se reconhece como Reginaldo.
Por raylimalima
Por Vitor Pordeus
"A alegria, a poesia, a utopia do teatro popular" meu mestre poeta profeta Ray Lima Lima
Vivemos e aprendemos. Impregnamos de sentido o viver, mudamos, curamos, avançamos, enfrentamos os medos, as limitações, as mediocridades, os mau-caratismos, mas com a experiência feita podemos reafirmar os princípios metodológicos da Dra. Nise da Silveira, de fato funciona, o afeto catalizador através das culturas, da produção de imagens, da ação expressiva espontânea, é de fato terapêutico, liberador e libertador, promove a passagem de um estado de organização inferior para outro superior, alegria e prazer, conforme vários outros autores também apontavam, tais como Baruch de Spinoza, Paulo Freire e muitos outros.
O desafio é político-conceitual. Por isso está aberta e funcionando a Universidade Popular de Arte e Ciência em área privilegiada no Engenho de Dentro com Teatro de Arena, auditório, área de oficina, Hotel da Loucura com 35 vagas para artistas-pesquisadores sem medo do inconsciente, Praça Pública Rio Grande do Norte, Cortejo na Feira Livre , além do histórico Museu de Imagens do Inconsciente, fundado pela pioneira artecientista da liberdade Nise da Silveira, Espaço Aberto ao Tempo com o artista-psiquiatra gênio Lula Wanderley, Ponto de Cultura Engenho CUltural Loucura Suburbana e muitos, muitos mais inumeráveis e perigosos estados do ser. O que você está esperando? Ocupa-Nise for ever, venha viver a melhor formação em arte e ciência do planeta. Venha escapar da loucura que devora a todos usufruindo o gênio de Nise. Estou em Brasília. Retorno ao Rio na terça para retomar as Oficinas, 13 e 30 no Hotel da Loucura. Precisamos chegar a tempo — com Heber Humberto Teixeira, Edson Paulo Souza, Instituto Pombas Urbanas, Natali Santos, Marcelo Palmares, Letícia Nunes, Jadiel Lima, Vitor Nina, Ocupa Nise, Nelson Vaz, Junio Santos, Ray Lima Lima e Vera Dantas em Instituto Municipal de Assistência À Saúde Nise da Silveira.
Por raylimalima
Para Verinha Dantas, Reginaldo Poeta, Ray Lima, Junho Santos, Ney Matogrosso, Karla Travaglia, Victor Pordeus, Clara, Ana e quem mais chegar… e tantos outros do "bandolindo" que participou do Ocupa Nise: Muito grata e apaixonadamente alegre por acompanhar esse movimento meio de longe, mas tão dentro do meu coração! Vejo olhos brilhantes nas fotos, vozes trêmulas de esperançação no relato que escutei de Reginaldo, meu parceiro do projeto Maramguape- eco-viva, leio nas letras desse escritinho poético -pulsante de Verinha, nos gestos cenopoéticos de Ray Lima… sim ! A vida é amiga da arte , é a parte que o sol ensinou …Atravessemos esta estrada que nunca passou! Parabéns é muito pouco , então para infinitamente bem! beijâo para todo mundo e " para mudar o mundo : O amor de todo mundo!(I.R)
Zu Moreira
Por raylimalima
Por Chiquinho Bezerra Neto – Sec. de Ciência e Tecnologia de Icapuí-CE
A cultura é igual a fogo de monturo, se abafa num lugar ele explode noutro.
Valeu meu nego, viva RAY LIMA, viva a cultura.
Por raylimalima
Ainda não havia publicado esse texto maravilhoso que motivou muito o nosso enloquecimento coletivo. Abaixo escrevo algumas palavras sem nexo, sem preocupação com grafia, escrito a caneta e papel, coisa que não fazia há muito tempo.
Engenho de dentro pra fora de Vitor Nina. Um cortejo de brincantes, poetas, cantadores, atores e artistas de rua, trajados de personagens com seus instrumentos musicais entram cantando numa exaltação de alegria e amor.
“Um dos personagens: Já faz quase uma semana que estou hospedado no Hotel da Loucura. Escrevo de uma antiga sala de prescrições médicas, hoje transformada em biblioteca. Baruch de Spinoza, Nise da Silveira, Humberto Maturana, Antonin Artaud e outros nos fazem companhia.
Outro: As cores nas paredes são fortes, um amarelo girassol, roxo e azul que dialogam, que gritam e recitam.
Outro: Flores naturais, flores pintadas, panos floridos, mandalas, escritos pela parede.
Outro: O colorido surreal das instalações salta sobre o espírito, espalha segredos entre os sentidos de todos.
Outro: Nas paredes as manifestações de inúmeros visitantes deste abrigo de lúcidos. Tem-se a impressão de que, a qualquer momento, tudo explodirá em labaredas de luz e gente. E é, de fato, o que acontece.
Outro: Enquanto escrevo, Pelezinho, morador e artista de rua, joga damas ao meu lado, e sonha cantar na rádio. É compositor, poeta, crooner, jogador de embaixadinhas, cozinheiro, showman, xamã.
Outro: É um dos que habitam esta casa de homens e mulheres, de crianças e animais, de deuses e maltrapilhos.
Outro: A casa é nossa, e é familiar a todos, porque ao atravessarmos a porta onde se lê “Entra e sai perguntando”, não entramos apenas na ocupação física, que resiste à impunidade das violências legalizadas com purpurina e carnaval.
Outro: Ao passarmos pelo saguão de recepção da loucura, entramos no Homem, e essa é nossa morada eterna.
Outro: A verdade é que sempre estivemos neste hotel, e nunca o deixaremos.
Outro: Estas paredes apenas revelam as paredes de nosso espírito, os moldes da psique.
Todos: Não à toa tantos arquétipos nos devoram o tempo inteiro
Outro: o bico de um pássaro pintado sob a janela,
Outro: o amor escrito em uma mandala perpétua,
Outro: a dança imanente revelada nos batuques,
Outro: os demônios e os anjos que superaram as diferenças mesquinhas e hoje são apenas natureza.
Outro: Considero este meu ritual de passagem para a arte da cura.
Outro: Em breve serei médico, terei diploma, terei código e carimbarei doenças.
Todos: Meu Deus, a medicina moderna é uma doença venérea.
Outro: É egolatria das gônadas, sem nenhum Eros, não dança nem conhece Dionísio.
Outro: E ri-se a plenos pulmões do que desconhece, com seu pau murcho e suas costas arqueadas.
Outro: Aqui, entre os loucos, aprendo Amor,
Outro: aqui sou aprendiz dos xamãs e dos poetas,
Outro: aqui faço ciência, cada vez mais alucinado pela plenitude dos mistérios.
Outro: Este assombro tem o conforto de um abraço, é um alívio poder desconhecer e suspirar deslumbrado:
Todos: Meu Deus!
Outro: Aqui não há rei, e Deus está nu.
Outro: Aliás, Deus convulsiona,
Outro: Deus mora na rua e faz embaixadinha,
Outro: Deus usa crack e quer parar,
Outro: Deus está amarrado em sua cama e grita a noite inteira querendo sair,
Outro: Deus foi internado há trinta anos,
Outro: Deus não tem uma perna,
Outro: Deus usa peruca para poder ser Três e Um ao mesmo tempo,
Outro: Deus fuma e dá esculacho,
Outro: Deus invade mansão de rico,
Outro: Deus sabe uns poemas que recita de cor,
Outro: Deus dá cantada na morena,
Outro: Deus dá cantada na loirinha,
Outro: Deus é doçura e dor,
Todos: escravidão e açúcar de Engenho de Dentro.
Outro: E, sobretudo, Deus dança,
Outro: Deus dança o tempo inteiro, dentro e fora do hospital,
Outro: cirandando,
Outro: dentro e fora do corpo,
Outro: cirandando,
Outro: Deus dança e se revela tão simples que dá susto, e depois faz gargalhar gostoso.
Todos: ( caem na gargalhada )
Outro: “Eu tinha uns 70 anos, hoje devo ter uns 40, mas dizem que tenho 26”.
Outro: Rogerinha dá um sorriso magro e na minha cabeça floresce novo canavial. Meu Engenho de Dentro canta seus cantos de liberdade:
Todos: “levanta, povo, cativeiro se acabou…
”Música Cativeiro”
Esse texto do Vitor Belém, junto com as cartas da Dra. Nise da Silveira para o Spinoza e as músicas que foram criadas pelo Edu Viola, Jadiel Lima, Vitor Belém e outros loucos compositores, foi o espinho dorsal de nosso Louco Delírio teatral. Era a única expressão da razão… depois era só a loucura expressa com emoção…Tudo foi e é bastante diferente do que já vivemos anteriormente. Não me vejo mais como antes e sinto que a minha prática não pode mais avançar em sentido ao fazer teatral técnico , rotulado, com estética definida, inicio, meio e fim. Estou voltando pra trás, um atrás muito distante num lugar onde a teoria era conversa de embriagados em torno de um vinho caliente. Sabemos que pagamos caro por isso. Mas todo preço do mundo vale o desprezo do teatro formatizado e a opção pelo fazer delirante do ato criativo. Sabemos que a nossa grande maioria está condicionada a figura centralizadora das ideias, ao diretor que em tudo manda e tudo define e que tem resposta verdadeira pra tudo e pra todos. Estou a um tempo me distanciando desse negócio viciante, buscando ser mais um na vivência, sem precisar de “oficinas” pra consertar gente; marcas determinadas; mapas de cena; sequencia lógica e preocupação em saber se outros entendem o que estamos dizendo e fazendo, pois creio que essa pergunta cabe a quem tá assistindo. O Auto da Paixão da Dra. Nise da Silveira, nosso delírio teatral, bailante, música, cenopoético, livre, louco e solto se deu assim e em cada momento provocando emoções, distancias, desprezo, compreensão e incompreensão diferenciadas. Nas quatro apresentações sentimentos geradores distintos, lindos, comoventes e provocantes forame sou eu pra ditar e definir essas reações? No mais é agradecer a todos por essa oportunidade de avançar, mesmo que para alguns seja regredir, em sentido a livre expressão, sem autocensura e medo do ridículo. Resta então agradecer aos que se jogaram, se entregaram e deixaram inconscientemente ou até consciente, a emoção dominar seus instintos, jogando com coragem, força e determinação, delirando em vez de interpretar, vivendo em vez de imitar, brincando, brincando e brincando. Eu vi em sonho um bode sendo preparado para a morte. Seus gritos de resistência o transformaram num sátiro e sua dor o transformou num homem amarrado, com a emoção criativa presa, chamada de Roque. E Roque existe e mora lá no Engenho de Dentro e nos deu ensinamentos incríveis quando cantava Roberto Carlos, com seus gestos, movimentos e gestus. Dele guardo as expressões desafogadas nas rodas, no medo, na atitude consciente e principalmente na ausência da mesma. Obrigado, Vitor que por deus nos ofereceu esse banquete. Em seu nome agradeço a todos da sua equipe que resistiram e se revelaram durante a vivência. Aos companheiros artistas de rua e poetas que viajaram nessa falta de ideia. A Miriam, que aliviou nossa fome com suas empadas. Aos “resistentes” de dentro e de fora desse engenho humano, que se expressaram através da arte, do afago, do carinho e que aos poucos fizeram e encontraram sentidos pra continuar resistindo e vivendo. Por fim, minhas desculpas aos que imaginaram viver com um mestre, um diretor de teatro, um artista. Não me sinto nada disso e nem gosto de ser rotulado como tanto. Se entrei assim no Engenho adentro suas engrenagens enferrujadas e calibradas com o azeite de nossas expressões, me jogaram pra fora mais louco do que quando cheguei e cada vez mais livre desses títulos, que me assustam tanto e também assustam um bocado aqueles que pensam que vão aprender com o meu pobre fazer teatral. Estou livre, disso. Liberto do orgulho de ser artista. O ser brinquedista reina na minha cabeça com mais força que antes. Evoé, como bem diz o meu Rei, Rainha, Gerente e Prostituta, Naná, Judite, Reginaldo…
Júnio Santos – Carnaúba dos Dantas-RN, 3 de agosto de 2012
Júnio Santos – Ator, diretor, facilitador cênico, dramaturgo, cenopoeta e agitador de almas. Júnio com Amir Haddad representa o que há de mais importante na práxis teatral de rua do Brasil.
Por raylimalima
CARTA À NISE DA SILVERIA
POR DRA. VERA DANTAS
Engenho de Dentro, 26/07/2012
Querida Nise
Ao te escrever fico pensando na felicidade que estarias sentindo se pudesse aqui estar em corpo, porque sei que estás em espírito nos conduzindo e iluminando. Fui tocada pela sua experiência há 02 meses quando conheci o Museu do Inconsciente. Nele pude entrar em contato com as obras daqueles que você cuidou e com as cartas que escreveu à Spinoza a quem muito admiro e com quem tenho dialogado em minha prática cotidiana.
Queria dizer-te que ao aqui chegar me senti profundamente desafiada. Estava em férias. Minha criança interior queria voar pelo universo da alegria, pela leveza da dança, mas já no primeiro dia senti-me chamada a mergulhar em profundezas e sombras. O cuidado me chamava a realizar movimentos que caminhavam no imaginário desses que convencionamos chamar de loucos.
Mais uma vez guardei na sacola os conhecimentos da medicina convencional e deixei emergir do imaginário, a minha ancestralidade indígena para voar como águias, pombas e araras, fazer soar o maracá e despertar a energia do fogo, da água, da terra e do ar.
Imagino como gostarias de ver o que vi: uma mulher cearense, nordestina como nós, tentando emergir das cinzas como fênix, para alçar voo e libertar-se nas asas de uma pomba branca e depois cantar como criança; uma menina de corpo frágil se enroscando no colo de uma mulher dragão e em seguida viajar em cores e entoar cantigas de amor que se espalham polinizando o solo e germinando a planta que se enraíza na luta da capoeira, a luta pela libertação da drogadição e do desamor. Ah! Imagino como entrarias em êxtase ao ver aquele sorriso maroto que pede cheio de manha, se aninha e voa.
Sei que fizestes viagens profundas pelas imagens expressas em telas, quadros, mas nesse momento outras expressões irrompem como a musicalidade na voz do jovem que canta a plenos pulmões: eu quero viver; do menino lobo que traz a alegria do samba e da embaixadinha, lembrando de você que ele nunca viu mas conhece tão bem.
Penso em que emoção sentirias ao ver entrar aquela mulher de olhar apático que aos poucos se ilumina ao som das canções e balbucia palavras soltas. O ritmo se acentua e acelera e ela abre o sorriso e deixa jorrar trechos da canção pelos lábios, pela boca, pelo rosto, pelo corpo inteiro, mesmo sem levantar-se da cadeira.
E o que dirias ao ver atores tão conhecidos seus com suas mentes tríplices assumirem o comando desse espaço?
São tantas sutilezas, tantas energias afetuosas catalisando minhas ações… Estou imersa em arte, cuidado e reflexão. Meu ser se expande e encolhe como meu coração que pulsa com tanta força que as lágrimas marejam meus olhos.
Me vejo peixe na profundeza dessas águas, me vejo onça caminhando nesta mata tão viva de nutrientes, me vejo chama do sol, fogueira incandescente cujas labaredas ajudam a curar feridas e produzem movimentos de força pra seguir em frente. Me vejo beija flor espalhando esse pólen pelo planeta para que essa experiência germine em outros lugares. Talvez seja essa a minha contribuição ao trabalho que você começou e essa moçada continua.
Estou com vocês. Quero ajudar a escrever essa história. É para mim uma grande honra poder fazer esse diálogo contigo e tê-la como uma das pessoas que iluminam minha caminhada.
Sua admiradora
Vera Dantas
Por raylimalima
São e Salvo: Primeiras impressões após as vivências do Hotel da Loucura – por Vitor Nina, Belém do Pará.
São e salvo estou de volta a minha casa após uma longa estadia no Hotel da Loucura. Acho que só retornei mesmo esta manhã, quando finalmente vesti o jaleco branco de todos os dias e retomei a rotina de trabalhos e estudos no hospital. O jaleco pesou nos meus ombros, já não estava mais acostumado com este tipo de figurino e, francamente, depois do que pude viver no Instituto Nise da Silveira, acho que algumas lantejoulas lhe cairiam muito bem.
A primeira impressão é esta: tudo parece estar revolvido neste hospital que conheço há anos. É como quando agitamos um formigueiro: nossos movimentos humanos, as paixões e os tropeços saltaram de baixo da terra e sou uma formiga que pode ver a si mesmo, em corredores apinhados de gente, todos juntos buscando uma doçura instintiva, mas presos a uma hierarquia violenta, à cegueira de pinças que é a lei deste reino, como de tantos outros.
Afinal, o hospital nada mais é que teatro de rua! O espaço é público, aqui estão todos: o feirante, o brincante, o cientista, o louco, o corrupto. Meu figurino poderia ter mais cores, alguns retalhos. E uma peruca, quem sabe. Mas por certo, precisamos aqui em nosso hospital de um Reginaldo, que possa ser Judite e Naná ao mesmo tempo, com a naturalidade, graça e elegância das santíssimas trindades. Um rei que abraçasse a loucura para nos elucidar, e gritasse “Evoé!”, para que respondêssemos em coro “Evoé!”. Que nos ensinasse uma ética tão simples quanto verdadeira, como comer o quanto quiséssemos, mas não levar para casa.
Um rei que conhecesse a lógica dos maltrapilhos, que habitasse o hospital há décadas e que o chamasse de lar não de forma abstrata, mas real, mesmo que imposta. Que tivesse o corpo mutilado, que tivesse aprendido a sorrir mesmo sem dentes contra o punho fechado daqueles que só lhe deram prescrições sedativas e restrições à liberdade. Um rei que tivesse aprendido o Amor no hospital, e pudesse nos conduzir de volta ao Amar. Nós, que fomos saneados, que estamos sãos e salvos à custa da lobotomia de Dionísio.
Universidade Popular de Arte e Ciência, Rio de Janeiro
https://universidadepopulararteciencia.blogspot.com
Por raylimalima
Domingo, 12 de agosto de 2012.
https://jadielblogdele.blogspot.com.br/2012/08/sem-culto-culpa-ocupa-nise.html
Por Jadiel Lima
Sobre a experiência no II Congresso da Universidade Popular de Arte e Ciência. – do que vivi, do que aprendi e do que me contaram.
Durante 21 dias, e alguns mais, o Ocupa Nise reuniu artistas, cientistas, curadores, cidadãos e alguns bichos transeuntes – enfim, loucos para saudar a expressividade e a própria Loucura, homenageando e aprendendo com os ensinamentos de Spinoza, Nise da Silveira, Nelson Vaz, Amir Haddad e outras(os) educadoras(es) da cultura e da arte popular.
Internos em um plasma às vezes leve, às vezes denso, experimentamos o prazer de nos surpreender a cada momento, por cada momento de sensibilidade que nos embelezava. Neste clima, o hospital psiquiátrico Dom Pedro II – no bairro de Engenho de Dentro (pra fora), Rio de Janeiro – recebeu experiências e relatos vindos de todos os cantos, práticas corporais, plásticas, sonoras e espirituais, momentos de cuidado e de cura.
Não haveria como sair de lá intacto, sem toques, sem ranhuras, sem se cortar, sem provocações internas ou à flor dos tatos. Avisava Ray Lima: “Estamos mexendo em cacho de marimbondo”. Assim, as manifestações foram aparecendo, como um enxame ou a maré que vem enchendo até transbordar.
No começo de mansinho, alguns calados, alguns já com empolgação, os protagonistas do espetáculo-terapia-festa-novela começaram a contar quem são, de onde vieram, as marcas do cotidiano e de um outro mundo – mágico, surreal, que os rodeia e que se faz presente, mareando aquele local. São os atores-personagens principais sem nem estrelar numa megaprodução fantástica de Hollywood ou numa falsa realidade como a do Big Brother. Não precisam. Eles são as estrelas de suas próprias vidas. De suas luzes traduzem, como singelas e grandiosas oferendas, as poesias, composições, cantorias, danças, pinturas, o humor, o amor. Vão modificando suas caricaturas, desconstruindo e reconstruindo o espaço e as energias como artesãos. Grandes Arquitetos do Universo, Gadú! O imenso mar que nos apresentaram, esses mergulhadores, nadadores e pescadores geniais, mareia agora nossas vidas!
Nós fomos pra chuva! E dançamos para ela, que nos banhou, amoleceu os recantos ainda rígidos do nosso corpo, da nossa mente; lavando a sujeira acumulada de anos: lixo orgânico, lixo industrial, lixo hospitalar, lixo nuclear, lixo visual, lixo sonoro, lixo intraorgânico, lixo mental – dos quais ainda não nos livramos, também porque é uma terapia, uma luta pra ser travada um dia após o outro.
A cura é árdua e às vezes dolorosa. Ficar abstinente do individualismo, das mentiras do conformismo me deixou com o ego, a alma e as carnes à mostra. Cada apelo por carinho e cuidado, cada palavra sincera, cada olhar vai nos perfurando, extraindo, gota por gota, o veneno que nos seca. Vamos religando nossa sensibilidade.
Agora olhamos as pessoas na rua e enxergamos todas as suas loucuras, no grau em que as mostram conscientemente ou não. Chegamos a uma malha onde não mais impera o objetivo fajuto, cerceado pelo subliminar malicioso e triste.
Desatamos nós por nós, até que nossa rede livre fez encontrar em nossa arte, em nosso teatro, em nossa vida, o objetivo e o subjetivo. E é tão bonito quando entendemos também a subjetividade, quando tornamos claras as nossas linguagens.
Não precisamos mais estar certos. O campo que escolhemos adentrar, porque muito novo e inovador, é recheado de incertezas. A nossa clareza tem de ser livre da certeza cartesiana recriminadora, opressora, anti-diversificadora. No mundo certinho, é esta a certeza que domina: às vezes rígida como uma parede de aço; às vezes flexibilíssima, como quando se pode vender e comprar a verdade.
Ter clareza não é ter certeza. É a partir da incerteza, da dúvida, que construímos a coragem e o compromisso plenos, a disposição de lidar com a obscuridade e os devaneios. Precisamos então ter clareza do que queremos, do que compreendemos e do que ainda não, de quando entrar ou do que fazer quando entrar ou se não entrar em cena, das nossas escolhas.
Muito inquietante o que está se construindo, não? Mas não podemos nos aperrear. Como Vitor Pordeus me alerta: “Não é pra enlouquecer”, não pela ansiedade e pelo escândalo. Nosso grito não é grito de guerra. Não queiramos travar uma nova guerra. Muitos dos que estão afora esperam por isso, se preparando para vender mais armas no seu podre mercado.
Sem gritos, pra poder ouvir todo mundo e atrair quem se diz estar externo. Ou se gritarmos, que nosso grito seja como um murmúrio, um afago!:
“Escuta, escuta
O outro, a outra já vem
Escuta, acolhe
Cuidar do outro faz bem”.
(Ray Lima )
Por passar momentos tão intensos de transformação, de criação, de filosofia-ação, de místicas que não conhecia, não me sinto reabilitado. Pois a questão não é estar apto para se integrar novamente e ser aceitado no “mundo dos normais” – o mundo capitalista, que faz com que arregalemos nossos olhos para um cardápio de espantos, que desvenda os mistérios, a profundeza e os segredos das coisas, dos sentimentos, até nos tornarmos contempladores estáticos, consumidores manipulados e manipuladores, encarcerados e torturadores.
A terapia ocupacional que começa a se desenvolver não tem relação com a simples reabilitação. Ela dialoga com a construção de outro sentido para o mundo, ou mesmo outro universo: é a medicina/ciência/modo de vida que permitir que cada um descubra e transforme suas realidades, suas essências e se comunique, sem preconceitos, com as do outro. É a revolução que cada um se propõe a fazer em si e que constrói, a partir da expressividade dessa mudança, a revolução coletiva.
A luta que aqui se trava não se firma em enfrentar inimigos, não se contenta em buscar as culpas e as desculpas. “Desculpa cú”, como me diz uma amiga. A luta está em não haver culpa nenhuma e sim em que eu mesmo tenho um problema pra resolver, um compromisso para cumprir, caminhos inteiros a seguir, milhares de escolhas a fazer. E tudo isso em uma vida apenas. E uma vida que não acaba.
Que sejamos mais livres e que descubramos onde em nós essa liberdade ainda não foi conquistada, buscando aprendê-la logo em seguida. Que mergulhemos fundo no oceano que nos foi apresentado e no qual muitos já viviam. Que subamos um pouco à superfície, quando precisarmos respirar, olhar pro céu e mergulhemos de novo. Que estejamos dispostos, mesmo que nunca prontos, a receber, se comunicar e respeitar o outro, quem quer que seja, de maneira incondicional. Que sejamos incondicionalíssimos.
Gratidão a todos, por tudo!
“Nós podemos ir até onde nós quisermos” – Judith (entidade Naná, Rei Reginaldo e gerente do Hotel da Loucura. Nosso grande mestre da malandragem, sinceridade e loucura)
Maranguape, 12 de Agosto de 2012.
Jadiel é cenopoeta, desenhista, compositor e estudante de jornalismo pela UFC.
Por raylimalima
“Salve Hotel da Loucura”
Uma Experiência diferente e muito intensa. Os dias que pude conviver nesse hotel da loucura, onde pudemos ter um olhar mais aprofundado sobre razão e loucura, o que separa e uni, o que constrói e destrói, nesse espaço de profundo sofrimento, encontramos vida fervilhando; em meio ao caos e aos estereótipos a arte e a ciência de mãos dadas construindo vivências, uma certa alquimia da liberdade, forjada com amor e esperança. Todos juntos numa só roda, uma alegre ciranda, muitas vozes e rostos, todos os fios de uma tessitura que há muito vem sendo traçada de Baruch de Spinoza à Nise da Silveira. Mas como nos diz o mestre Júnio Santos “tudo vira brincadeira”, uma brincadeira de gente grande com flautas, tambor e suor é possível ver que outra saúde é possível, outros olhares, novas descobertas, o medo que nos separa é o mesmo que nos liberta! Quem de nós pode agora ser o mesmo de antes? Quem de nós agora será indiferente à dor do outro? Na Praça Rio Grande do Norte, na feira pública do Engenho de Dentro, no Teatro de arena do Arpoador, no Jardim Botânico, no Congresso Brasileiro de Medicina e Comunidade em Petrópolis, no Concha Acústica da UERJ e em tantos outros espaços que nesses dias iluminados ocupamos com arte e loucura, brotando desse desafio uma nova forma de ver o mundo, como separar razão e loucura? O que será que pensaram quando Santos Dummont voou com seu 14 Bis? O que será que pensaram quando Florence Natingueio resolveu ir à guerra cuidar dos feridos? O que será que disseram a Lazaro Luís Zamenhof quando criou a língua Esperanto? Quanto espanto causou Gandhi ao protestar sem violência? Pensar em um mundo novo a partir de ideias antigas não é fácil, mas o caminho está sendo trilhado por tantos e tantas que ousam e dizem sim a uma nova forma de ver o processo saúde/doença, onde todos possam ser protagonistas e não meros pacientes. Ciente de que estamos no caminho certo, isso tudo é muito desafiador e quero como muitos com quem tive o privilégio de conviver e partilhar, aprender e ensinar novas formas de cuidar e recriar o espaço, sendo mais que profissional, sendo gente cuidando de gente com alegria e amor. Uma flor brota em meio às pedras escuras, um pouco de sol, raio de sol, luz! Gente! Ação!
Nos andares de cima emoção! Quando os paiaços terapeutas ou terapeutas do riso entraram em contato com todos a surpresa! A alegria é sempre bem vinda venha de onde vier, mas quando vem em paz e com alegria é bom demais. Foi assim que me senti em meio aos clientes que cantaram juntos e participaram dessa hora tão bonita, mesmo com toda medicalização que enfrentam diariamente, em meio ao desconhecido, ao novo, a vida estava presente o tempo todo, a todo novo olhar, a cada novo riso, um palhaço! Uma gargalhada, uma vitória, a comunicação foi alcançada, ser tão ser que de ser já se basta em ver e crer na alegre mensagem desses bobões que brincam com a triste realidade e acreditam que em doses homeopáticas uma onda de felicidade vai se alastrando pelos corredores do Nise da Silveira, olhar para dentro e saltar e ver que fora são apenas reflexos de nosso ser em expansão. Salve amigos do Núcleo de Arte e Ciência, Vitor por nós e por deus e quem poderá nos enfrentar? Ray lima cenopoeta artista e cientista, Verinha nossa yatamalu e o grande Amaury nosso Pajé, Pombas Urbanas voam por onde quiser, amigos do Pará florindo, Bruno Brabo e tantos outros que com arte alegraram nossa estadia e reflexão. A todos um grande abraço, aos que com certeza em breve nos encontrarão! EVOÉ!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Honorato Filho é Palhaço Terapeuta do Riso, Articulador da Regional IV das Cirandas da Vida, massoterapeuta e reikiano, estudante de enfermagem e cenopoeta.
Por raylimalima
DRA. VERA DANTAS
Imergir para emergir um novo ser.
Assim me vi saindo do Ceará para experenciar o OcupaNise. Muitas razões me moveram: o desejo de construir com tantos companheiros e companheiras essa universidade popular de arte e ciência, um movimento que tem me afetado muito e despertado paixões infinitamente alegres; a felicidade de reencontrar amigos, companheiros de caminhada; o prazer de vivenciar a arte em suas múltiplas linguagens; o compromisso com a educação e a luta popular….
Sai do Ceará após uma mudança de casa. Deixei tudo revirado na nova morada e voei em direção ao Engenho de Dentro, pra viver as mais intensas e inusitadas férias de minha vida. A intuição me dizia que a imersão seria profunda e fui respirando esse desejo. Não sabia muito bem como iria contribuir, mas todo meu ser ansiava por esse mergulho.
Me vejo em pleno sábado aportando a um mundo de possibilidades e desafios. Nise da Silveira nos acolhe com seu mundo polifônico e amoroso. Mergulho de cabeça nesse mundo prenhe de rituais, universo complexo, multicor, multifacetado. E imergindo entranho-me, envolvo-me e todo o meu ser se expande, me impulsiona e explode em sons, gestos, e encontros.
Tudo se constitui vivencia, intensamente polifônica, metaforicamente transpondo limites entre razão e emoção. Aqui somos inteiros na dor e no prazer. Cuidado e criação que constituem redes de conversação, onde tudo cabe: poesia, homeopatia, intuição, cenopoesia, gesto e canção. Aqui tudo se presentifica no ritual que integra e harmoniza todos os seres desta e de outras dimensões.
Aqui a vida nos chama ao cuidado, amoroso, inteiro, sem preconceito ou rótulo. A pureza não tem idade nem tamanho. Aqui tem homem lobo, espírito guerreiro, brincante; tem menino passarinho, grandioso em sua pequenez; fêmeas dançantes, e cearenses que num relance mergulham procurando a morte e renascem como pombas brancas que alçam vôo para dançar e cantar nas feiras e praças, desse Engenho no qual me embrenho sem medo de me perder. Aqui uma arara canta e pede colo, dorme e emerge em sua ancestralidade guerreira que os passos da capoeira teimam em revelar. Cada momento é novo, intenso, impreciso, etéreo e terreno; sagrado e profano.
Nesse percurso eternizado por sua intensidade, há espaço para reflexões profundas sobre o cuidar, criar, o conhecer. Sobre a necessidade imprescindível de reconfigurar e ressignificar o cuidado. Sobre a importância desse ato politico irrompendo no espaço duro e frio do manicômio que se transfigura pelo colorido das vestes e das paredes e pelo insanidade amorosamente fluida dos que vivenciam essa ocupação.
Aqui pude compreender com toda a intensidade o que Paulo Freire propôs como inédito viável; a potencia da conjugação do verbo esperançar, onde os limites não se constituem barreiras intransponíveis, mas movimentos para os sujeitos populares exercerem o seu protagonismo. Sim pude ver o protagonismo desses seres oprimidos pela exclusão da objetividade que nega a diferença e a intensidade das paixões alegres que trilhando por zonas de indeterminação, despertam o Conatus, ou esforço de existir no dizer de Baruch de Spinoza e cantam, dançam, poetizam, pintam e despertam deuses e outros personagens míticos.
A loucura pede passagem para revelar a alteridade, a disritmia, a dissonância, a polifonia, a rebeldia do riso solto, dos gestos descomedidos, da ciência intuitiva, do ritual….
Minha alegria irrompe, insana, prazeirosa, bailando célere como o beija flor, fluindo aromas curativos, criativos….
A vida emerge prenhe de potências e eu vou com ela e com todos que embarcam nessa viagem-ocupação
Ah! Essa vida! Amorosamente fluida.
Apaixonadamente viva!!!!
Eu, um novo ser, inteiro emerge, respira para mergulhar de novo.
OcupaNise