Deleite de Leituras:Texto preparatório 1 – Encontro dos Editores da RHS

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Os arranjos para o Vº Encontro Nacional dos Editores/Cuidadores da Rede HumanizaSUS (https://redehumanizasus.net/13067-os-afetos-de-rede-nos-convocam-para-uma-nova-modula-o-da-rhs) se irradiam em dois textos preparatórios, impecáveis, sobre a arte do encontro nas redes…

Aos poucos contamos mais! Mas primeiro, a leitura no tempo de cada um, trará inúmeras, múltiplas, conexões, experimentem…

Para a multidão!

 

Os afetos de rede: individualismo conectado ou interconexão do coletivo?

 

Rogério da Costa[*]

 

Resumo

Este artigo trata, em primeiro lugar, da tendência que se estabeleceu, desde os anos de 1980, em representar as redes sociais de forma espacializante. Em seguida, pergunta-se sobre a distinção entre estar conectado, simplesmente, e constituir um coletivo com propósitos definidos. O artigo se encerra considerando que redes dinâmicas implicam circulação de afetos, e que isso provoca modificações nos elementos da rede.

 

Abstract

Firstly, this article is about the trend established since the year 1980, to represent the social networks in a spatialized form. Then the question arises about the distinction between being connected simply and form a collective with definite purpose. The article concludes considering that dynamic networks involve movement of affection, and it causes changes in the network elements.

 

 

“A nossa época será marcada pelo “fenômeno rede”. Como todos os fenômenos morfológicos profundos, de caráter universal, o fenômeno rede pertence não só à ciência, mas também à vida social. Cada um de nós se situa em redes, correspondendo cada rede a um tipo de comunicação, de frequência, de associação simbólica. Quando no futuro se fizer o elenco das abstrações que marcaram mais profundamente o espírito humano no decorrer desta segunda metade de século, ter-se-á certamente a cifra lógica, mas também, quase tão importante como aquela, ter-se-á o objeto rede”.

Pierre Rosenstiehl, 1978

 

O individualismo conectado

 

Pierre Rosenstiehl, matemático francês famoso por desenvolver a teoria dos grafos, inicia dessa forma seu artigo sobre Rede, publicado na Enciclopédia Einaudi, em 1978. Para exemplificar esse objeto topológico, ele nos lembra de suas diversas aplicações, como para traçar a rede de limitrofia de estados de um país, para descrever a rede dos movimentos do cavalo num jogo de xadrez, para planejar as redes de transportes e de comércio etc. Mas em sua citação, é possível perceber que esse objeto rede já era visto, naquele momento, como algo que teria impacto na vida social em geral. Sua afirmação de que cada um de nós se situa em redes, ou seja, no plural, faz notar que se trata aqui de um modo de ser multidimensional, pois pode-se pensar que nos situamos no interior de redes de comunicação, de vizinhança, nos coletivos do trabalho, de parentesco, em redes de amigos da faculdade etc. Em todas elas é possível aplicar a abstração do objeto rede, isto é, supor que os indivíduos são como os nós da rede, e as ligações que eles estabelecem entre si são como os laços da rede. Os laços, portanto, designam as diversas formas de relações que se podem desenvolver entre os nós da rede.

No mesmo período em que Rosenstiehl trabalhava nas figuras matemáticas de representação de redes, ao final dos anos de 1980, sociólogos analistas estruturais, dentre os quais podemos destacar Mark Granovetter e Barry Wellman, pesquisavam o objeto rede social. Nesse caso, o foco era exclusivamente as relações estabelecidas entre os indivíduos de uma coletividade, a maneira como os membros de uma comunidade mantinham contato entre si. Um dos objetivos dessas análises era o de superar, por assim dizer, as figuras conhecidas da sociologia clássica, que serviam para amparar os estudos das condições sociais dos grupos humanos, tais como diferença de gênero, raça, idade, classe social, remuneração etc. A crítica dos analistas estruturais era exatamente a de que essas categorias da sociologia, que serviam para mapear os grupos sociais, não poderiam ser o ponto de partida das pesquisas, mas aquilo mesmo que deveria ser explicado. Elas são, em última análise, o efeito de uma determinada dinâmica dos grupos sociais. Mas como alcançar o entendimento dessa dinâmica? A hipótese formulada naquele momento era a de que deveríamos, em primeiro lugar, compreender o nível de interação e integração entre os indivíduos de um grupo, a densidade de suas relações, a forma de sua rede social, para, somente depois, avaliar o porque de determinadas características estarem ali presentes (se há mais idosos ou jovens, homens ou mulheres etc.).

Um dos aspectos que permitiu esse novo tipo de leitura foi passar a entender os laços sociais sob o ponto de vista do fluxo de recursos entre os nós da rede. Esses recursos poderiam ser de várias ordens, como por exemplo informações, conhecimento, auxílio financeiro, apoio emocional, ações colaborativas etc. Essa percepção das redes passou a determinar a compreensão de um elemento fundamental na dinâmica de associação dos indivíduos: as razões que levam cada um a buscar a integração com diferentes redes. De fato, se há recursos que circulam numa rede social, deve-se entender que os indivíduos buscam, na integração com seus grupos, usufruir de tais recursos. Essa busca por recursos presentes nas redes sociais, e seu sucesso ou fracasso em obtê-los, seria então um fator chave para o entendimento da dinâmica das conexões entre os indivíduos no tempo, e que poderia explicar as diversas formações que podemos observar nos grafos de representação das redes, tais como centralidade, periferia, laços fortes e laços fracos etc. Mas essa maneira de entender a emergência das redes sociais, seja isso positivo ou não, é francamente econômica, pois parte do pressuposto de que os indivíduos agem segundo seus interesses pessoais, e que é isso que os orienta na busca por laços sociais. O importante então, nessa ótica, são as conexões, a ampliação de determinados tipos de conexões que possam servir a interesses específicos de cada um, que possam resultar em benefícios claros para aqueles que se engajam numa dinâmica de rede.

Realmente, muitos são aqueles que se perguntam sobre os benefícios de estar em rede, de cooperar em rede. Nesse caso as respostas podem ser várias: benefícios pessoais, financeiros, profissionais etc. Supõe-se que a participação em rede deva atender a alguma forma de benefício individual. Se o benefício é real, mesmo que seja diferente para cada indivíduo, pressupõe-se que  a ação em rede deva ocorrer, ou seja, que os indivíduos irão atuar e cooperar em rede para obter seus benefícios. Mas no caso de um determinado indivíduo poder obter o mesmo benefício de outra forma, ou obtendo-o no decorrer da ação colaborativa, tal ação passa a não ter mais sentido. O indivíduo implica-se na cooperação até o momento em que obtém o benefício pretendido, deixando em seguida a rede, mesmo que outros ainda não tenham alcançado seus próprios objetivos. Ou pode ocorrer do indivíduo alcançar seus objetivos por outros meios, o que resulta na mesma situação para a rede: a redução na participação. Quando se reflete, além disso, sobre o potencial de reciprocidade nas ações entre os indivíduos em rede, sempre devemos lembrar que muitas dessas ações não retornarão diretamente daqueles com quem contribuímos. O estar em rede cria uma situação na qual somos conscientes de que contribuímos com a rede e é a rede que contribuirá conosco, e não aqueles indivíduos com os quais contribuímos diretamente. O benefício, portanto, não deve ser esperado no tempo imediato e da pessoa com quem colaboramos ou contribuímos, mas da rede como um todo e num tempo diferido.

Apesar da riqueza desse tipo de abordagem, e por entender que ela nos serve realmente como ferramenta auxiliar para se decifrar os processos de formação de redes sociais, há que se considerar que, da perspectiva da formação de coletivos, deve haver um elemento que ultrapasse essa visão peculiar à economia, ao homo oeconomicus, e que supere, de alguma forma, essa ótica do individualismo conectado. Sem descartar, então, que devamos ter claro os benefícios pessoais numa ação coletiva, é preciso igualmente construir um propósito comum. Para uma ação coletiva, o propósito comum é a marca da existência de qualquer grupo, coletivo ou comunidade, ele é o que pode ser atingido simultaneamente por todos numa ação conjunta: equipes, grupos de projetos, futebol, protestos, greves etc. O propósito é aquilo que mobiliza um coletivo.

 

 

 

O coletivo conectado

 

Diz-se que as redes possuem padrões e os coletivos investem propósitos. É isso o que difere os coletivos de uma simples rede abstrata (ou física). O que dá sentido a um coletivo são os propósitos que o orientam e não um simples padrão de comportamento. Portanto, a indução de comportamentos não significa a construção de propósitos, que é o momento em que cada indivíduo entende que deve colaborar para a construção do comum. Adotar um certo comportamento coletivo não significa necessariamente compreender o benefício para o todo, mas simplesmente a segurança e benefício para si mesmo.  

Eugene Thacker, filósofo americano, num artigo intitulado “Redes, Enxames e Multidão”, nos coloca a seguinte questão: estamos conectados porque somos um coletivo, ou somos um coletivo porque estamos conectados? Nosso interesse nesse artigo está, em primeiro lugar, na discussão que ele promove sobre a distinção entre conectividade e coletividade. Em segundo lugar, suas reflexões sobre o estatuto de “rede” são igualmente importantes e nos ajudam a pensar o fenômeno atual de redes sociais.

O fato de se promover conexão não implica que disso resultará um coletivo. Logo, não necessariamente formamos um coletivo porque estamos conectados. Mas se somos um coletivo, então devemos estar conectados em algum nível. Coletivo entende-se aqui sob seu aspecto político, implicando uma intencionalidade, propósitos, ações.

E uma rede social? O próprio termo parece dar ênfase ao aspecto conectivo da relação: uma relação em rede. Social, porque se trata de uma rede de indivíduos e não de tráfego rodoviário ou aéreo, uma rede elétrica etc. Indivíduos conectados formam uma rede social. Mas por esse fato já constituem um coletivo? Uma inteligência coletiva? Para isso não deveria haver um propósito, uma intenção comum que os relacione?

É dentro desse quadro que Thacker conduz suas reflexões, fazendo o paralelo entre, por um lado, a conectividade e a simples existência de padrões que emergem de uma rede e, por outro lado, a coletividade e a construção coletiva de propósitos. Colocar a discussão nesse nível, distinguindo conectividade de coletividade, permite que Thacker considere que a atual “sociedade em rede” se alimenta de uma utopia tecnológica que possui seus limites políticos.

 

 “Que a Internet apresente uma topologia descentralizada ou distribuída, não é um indicador de que os princípios democráticos sejam inerentes às tecnologias da informação. De fato, em muitos casos se observa o efeito contrário, pela canalização da atividade on-line, sufocando a inovação, “globalizando” o acesso e impedindo de uma forma geral a concorrência do pensamento crítico e técnico (não pense, clique). Entre os extremos da inovação técnica e do conservadorismo político, as novas tecnologias parecem prometer uma mudança política e social ao mesmo tempo em que elas categoricamente as impedem” (Thacker, 2004, 3).   

 

É fato que o fenômeno das comunidades virtuais e, mais recentemente, das redes sociais na Internet, têm alimentado expectativas sobre novas formas de mobilização política. O próprio Thacker recorda o exemplo das manifestações em Seattle, que ocorreram na conferência da OMC em 1999, bem como os protestos nas Filipinas, por ocasião da deposição do então presidente Strada. Poderíamos acrescentar os eventos da Espanha, com a difusão via celulares de mensagens que mobilizaram milhares de pessoas em várias cidades daquele país (‘No hay sido ETA’), bem como as recentes eleições de Obama ou o papel do Twitter nas manifestações em Teerã. Tais exemplos, que foram disparados de forma descentralizada, com o apoio essencial das novas tecnologias, expressam propósitos e intenções coletivas muito claras, que funcionaram então como alimento para um ativismo político que se iniciou com indivíduos conectados a distância, mas que culminou com manifestações presenciais importantes. Nesses casos, a conectividade foi necessária, mas foi preciso um propósito comum para gerar a mobilização dessas coletividades. Além disso, não é de se supor que os indivíduos envolvidos nesses eventos participassem previamente de uma mesma rede social ou comunidade virtual, por exemplo, mas com certeza as mensagens migraram de grupos para grupos numa espécie de propagação horizontal, que só se sustentou pelo claro motivo intencional que produziu sentido para cada indivíduo separadamente. 

O que Thacker ressalta é que a distinção entre conectividade e coletividade é relevante porque ela nos mostra uma confusão comum em muitas análises do fenômeno da rede: que a conectividade por si só implica imediatamente uma coletividade, e que a mera existência de uma coletividade significa a emergência de uma forma política. Thacker cita, por exemplo, as análises de Howard Rheingold em seu livro Smart Mobs, as de Mark Buchanan em seu livro Nexus e, também, as de A. Barabasi em seu texto Linked. O receio dessas análises é fazer crer que o simples fato de estar on-line é sinônimo de algum tipo de ativismo político. 

Mas o que Thacker avança, nesse primeiro momento de seu texto, como definição de conectividade, nos parece interessante. Como a maioria dos autores que pensam a conectividade das redes, Thacker também sustenta que a relação de unidades individuais pode se apresentar sob diversas configurações topológicas. Mas ele afirma, por outro lado, que a conectividade aqui é mais um “status” do que um estado ou uma coisa. Ela pode ser baixa ou alta, ampla ou estreita, centralizada ou descentralizada. Mais ainda, sustenta que a conectividade não é sinônimo de “relação”, mas a pressupõe, já que requer um contexto ou ao menos um pretexto.  Pode-se dizer que esse contexto já envolve os indivíduos em relação, e que a conectividade dá suporte ao fluxo de informações e interações entre eles. A conectividade então funcionaria como prérequisito de coletividades, como sua condição de possibilidade, mas a pura conectividade, mais uma vez, não implica necessariamente um coletivo.

Que o paradigma da rede representa a cultura global não surpreende mais ninguém. A pergunta que Thacker se coloca é o que significa exatamente um tal paradigma? Redes estão por toda a parte, no consumo, no entretenimento, no marketing, nas comunicações, na saúde, na educação. Ou seja, busca-se compreender esses domínios através do fenômeno da rede. Uma ciência da rede, interdisciplinar, busca descrever e analisar esse fenômeno em várias direções, como a da comunicação, a da sociologia, e mesmo a da biologia. Contudo, Thacker nos oferece, por sua vez, um contraponto importante nas reflexões sobre rede. Ele lembra que quando os teóricos da ciência da rede fazem uso da teoria dos grafos, por exemplo, estão atualizando as teses do matemático Euler, do século 18, que formulava problemas em termos de laços e nós, abstraindo portanto as relações ou ações como “laços” e os indivíduos ou coisas como os “nós”. O ponto importante para Thacker é o fato dessas análises traduzirem a rede como um fenômeno espacial:

 

“Da perspectiva da ciência da rede, a rede é essencialmente espacial, e as propriedades universais que ela apresenta não são muito evidentes no seu funcionamento dinâmico, já que são padrões estáticos que existem acima da temporalidade da rede. De fato, quando se fala em ‘topologia’, está-se falando de redes espacializadas, mapeáveis, entidades discretas” (Thacker, 2004, 5)

 

O que parece então problemático, para Thacker, é o fato de topologias e mapas não conseguirem expressar as redes como redes “vivas”, como redes que estão funcionando, em processo, ou seja, como coletivos conectados no tempo. Para Thacker, as visões tanto de Euler quanto de Kant, os primeiros a pensar a teoria dos grafos, espacializam a dinâmica da rede, espacializam o tempo, e ele chega a usar as definições de Bergson para lembrar que o processo de mudança é constitutivo, e que nossos conceitos de espaço e tempo derivam na verdade do conceito mais profundo de duração. Isso para afirmar que toda definição de rede deve levar em conta seu elemento constitutivo, seu aspecto dinâmico que está enraizado na temporalidade.

Mas como construir uma tal definição? Qual definição de rede pode incluir os processos de mudança?

 

Espinoza e o afeto-rede

 

A sugestão de Thacker é extremamente interessante. Ele sugere que pensemos numa distinção entre “efeito de rede” e “afeto de rede”. No caso do “efeito de rede”, encontramos todo o esforço feito pela ciência da rede para mapear ou cartografar redes, seja a Internet e os processos de comunicação, a propagação das doenças infecciosas, as associações de grupos das mais variadas espécies, as redes físicas (como trânsito, espaço aéreo) etc. Essas redes são vistas como um todo, traduzidas em nós e laços, e os padrões que dela emergem expressam uma topologia que serve para a análise e mensuração de seus efeitos.

Já no caso do “afeto de rede”, ou “rede-afeto”, Thacker recorre à Espinoza para explicar de que forma podemos compreender uma rede viva que escapa às análises quantitativas ou à busca por padrões estáticos. Mas antes é preciso uma definição de afeto, que ele enuncia da seguinte forma, citando Espinoza: “afeto são ‘afecções do corpo pelas quais a potência de agir do corpo é aumentada ou diminuída, estimulada ou constrangida, e, ao mesmo tempo, as idéias dessas afecções’” (Thacker, 2004, 6). Sem entrar no mérito dessa citação, pois muito haveria a se acrescentar sobre o conceito de afeto em Espinoza, é interessante perceber que Thacker concebe como contraponto ao paradigma espacializante da rede, uma idéia de circulação de afetos em rede:

 

“o afeto é posto em rede, ele se torna distribuído e é destacado de seu locus antropomórfico no indivíduo. Numa rede dinâmica, o indivíduo não possui uma emoção, mas é constituído pela circulação de afetos. Os afetos podem circular em muitos níveis (biológico, social, econômico) e através de mais de um tipo de rede. Mas a rede-afeto é a topologia imanente da rede, sua vida, não o padrão abstrato e transcendente acima da rede”. (Thacker, 2004, 6)   

      

Essa afirmação conduz Thacker a repensar o estatuto mesmo da rede, definida preliminarmente como uma topologia formada por nós e laços. Ora, se a rede é dinâmica, se devemos pensá-la na duração, se os indivíduos são constituídos pela circulação de afetos, tornando portanto a rede viva, a separação entre nós e laços parece perder seu sentido. Thacker se pergunta: “poderíamos dizer que, quando consideramos as redes como redes vivas, chegamos a uma situação na qual os nós são iguais aos laços, na qual os nós são os laços?” (Thacker, 2004, 6). Na verdade, nos exemplos que ele apresenta, como manifestações políticas, auto-organização dos insetos e padrões de doenças infecciosas, pode-se perfeitamente mapear tais redes segundo uma topologia estática de nós e laços. Mas é preciso reconhecer que, ao menos nesses casos, há mais do que simples redes, já que os indivíduos, que são os nós, modificam-se segundo as relações em que entram. É o caso das modificações de posição política, ou do meio ambiente, ou de mutações de vírus. Mas entre os indivíduos há mudanças nos laços (que por sua vez modificam os indivíduos), como no exemplo da adesão a uma causa, quando se fala das manifestações políticas, ou na situação da urgência de tarefas, como no caso dos insetos e, também, os modos de transmissão nas doenças infecciosas. Tudo isso para dizer que há uma dinâmica de certas redes que alteram tanto as relações quanto os indivíduos em relação. Os nós de uma rede não são fixos, não são termos constantes que ao se ligarem produzem relações igualmente constantes. No limite, seria como sugere David Hume, em seu Tratado da Natureza Humana: as relações fundam os termos, não há termo a priori numa relação.

 

A coesão do coletivo

 

Essa proposição de Hume, de que as relações fundam os termos, nos leva a refletir sobre os graus de coesão presentes num coletivo. Mas vejamos o que vem a ser primeiramente uma coesão coletiva. Há um certo plano do senso comum que supõe que pessoas ligadas por algum tipo de laço, percebem e são percebidas de maneira equivalente. Porém, quer se trate de relações presenciais ou virtuais, os indivíduos numa rede de relacionamento qualquer apresentam níveis diferentes de percepção sobre seus pares. Quando se trata, por exemplo, de um colega de trabalho, um indivíduo pode supor que esse colega, pelo fato de executarem algumas tarefas em conjunto, o percebe como alguém que colabora consigo. A surpresa vem, quando se pergunta para esse colega sobre a colaboração daquele indivíduo, e se tem como resposta algo do tipo: “não, ele não colabora comigo, faço meu trabalho sozinho”. Ou seja, entre dois colegas de trabalho que executam coisas conjuntamente, só um deles percebe que há colaboração. Essa situação, que é mais comum do que se imagina, é identificada como graus de não-coesão do coletivo. Quando procuramos entender o por que de tais disparidades, deixamos a posição de meros cartógrafos de redes para nos tornarmos analistas da dinâmica de um coletivo. Por que há disparidade? Qual a razão dessa dissonância? Seria um problema de hierarquia, de dificuldades de comunicação, de expressão, de preconceitos?

Basicamente, essa situação de não-coesão nos mostra que uma mesma relação não é vivida da mesma forma pelos pares envolvidos. Se retomamos Espinoza, em sua Ética, ele nos faz ver que os indivíduos são afetados de maneiras diferentes dentro das relações que estabelecem. Mas isso se deve ao que exatamente? A tese espinozana sustenta que cada indivíduo pode ser visto como um certo grau de potência, que é o mesmo que sua potência de existir. Essa potência é modificada de acordo com os encontros que cada indivíduo faz em sua vida, sendo essa modificação, na verdade, o resultado da forma como esse indivíduo se engaja e investe essa relação. Essa modificação é dita ser um afeto no indivíduo. Uma relação pai-filho, por exemplo, é vivida de forma diferente tanto pelos pais como pelos filhos. Há maneiras diversas de se investir esse tipo de relação, e isso depende, justamente, do grau de potência de cada um e, simultaneamente, de como cada membro da relação é afetado pelo outro. E assim para qualquer outro tipo de relação. Ora, como estamos sempre envolvidos em muitas relações, diferentes umas das outras, seremos afetados de forma diversa por cada uma delas. Desse modo, não há como tomar um indivíduo como um fator constante, que se comportaria da mesma forma sob relações variáveis. Mesmo dois colegas de trabalho, onde se supõe que compartilham de um paridade em sua relação, são afetados de maneiras diferentes um pelo outro, e portanto constróem percepções diferentes sobre sua participação nessa relação. E como possuem outras relações além dessa, são afetados também de outras maneiras, percebendo, investindo e vivendo essas outras situações de formas diversas. A não-coesão entre indivíduos num coletivo se justifica, portanto, desse ponto de vista, pois haverá sempre modos diferentes de ser afetado pelas relações em que se encontra.

É a isso que nos remete a proposição de Hume, quando afirma que as relações fundam os termos. Mas se recuperarmos a idéia de Thacker, sobre a rede-afeto, veremos que o interessante dela é buscar mostrar que, como estamos sempre em rede, sempre conectados de algum modo a um certo número de outros indivíduos, a dinâmica da rede seria o modo como todas essas relações podem afetar a cada indivíduo separadamente, e a todos simultaneamente. Há, desse ponto de vista, uma real circulação de afetos na rede.

 

Conclusão

 

As vantagens e os limites das leituras espacializantes das redes sociais parecem estar mais claras agora. De fato, uma representação espacial de uma rede social nos serve como instrumento de visualização da situação das conexões existentes num dado momento. Essa situação é revelada pelos padrões que apresentam as interrelações de nós e laços, caracterizadas pela densidade ou raridade das conexões entre os indivíduos mapeados. Mas esses padrões podem nos explicar muito bem como os recursos disponíveis na rede estão circulando naquele instante, quais os canais privilegiados, pontos de origem, passagem e chegada de informações, centralidade e periferia de alguns nós, que laços são mais fortes e quais são mais fracos etc. Como vimos, essa visão das redes sociais como uma estrutura que se alimenta do fluxo de recursos permite compreender que indivíduos queiram se conectar para usufruir disso que circula. É o individualismo conectado, o esforço em fazer networking, em ampliar suas redes de contatos.

Mas as representações de redes sociais, baseadas nos graus de conectividade, encontram seu limite quando se trata de pensar os coletivos e seus propósitos comuns. Primeiro, porque elas são espacializantes, e oferecem do coletivo apenas a foto de um instante de suas conexões. Segundo, porque o pressuposto de uma representação espacial de rede é que seus componentes não se alteram sob a ação dos outros e que, no limite, nós e laços não devem se confundir. Elas não podem, portanto, alcançar aquilo que realmente se dá, ou seja, o fato de que ao se pôr em relação, os indivíduos modificam-se a si mesmos e modificam suas próprias relações. Se o que orienta um coletivo são seus propósitos comuns, isso não pode estar inscrito em uma representação, pelo simples motivo de que cada indivíduo deve se relacionar com esse propósito de uma forma diferente, deve ser afetado por ele de modo distinto, exatamente porque deve fazer um esforço singular no sentido de ajustar, no tempo, suas próprias ações ao propósito de todos. Esse ajuste, esse arranjo do coletivo, significa o constante esforço de negociação de preferências individuais, de tal forma que os propósitos individuais possam ser atendidos, ao menos em parte, em função do propósito do coletivo.              

 

 

Referências

 

BARABASI, A. Linked. Cambridge: Perseus, 2002

BUCHANAN, M. Nexus. New York: Norton, 2002

ESPINOZA, B. Ética. São Paulo: Autêntica, 2007

GRANOVETTER, M. Le marché autrement. Paris: Desclée de Brouwer, 2000

HUME, D. Tratado da Natureza Humana. São Paulo: Unesp, 2009

RHEINGOLD, H. Smart Mobs: The Next Social Revolution, New York: Perseus, 2002

ROSENSTIEHL, P. “Rede”, in Enciclopédia Einaudi, Lisboa; Casa da Moeda, 1978

THACKER, E. “Networks, Swarms, Multitudes”, Ed. Arthur and Marilouise Kroker,

 www.ctheory.net/articles.aspx?id=422,  5/18/2004

WELLMAN, B. The Glocal Village: Internet and Community. In Idea&s, University of Toronto. V.1, N.1, Autumn. 2004

WELLMAN, B & BERKOWITZ, S. D. Social structures: a network approach. New York: Cambridge University Press, 1988

 

 

 



[*] Doutor em Filosofia, Professor do Programa de Pós Graduação em Comunicação e Semiótica da PUCSP, autor de A Cultura Digital, Publifolha, 2006 2a Ed.