REFLEXÕES SOBRE O PROCESSO FORMATIVO DE EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE EM MANAUS
Foram 04 dias de intenso trabalho, convívio, criação, problematização. Mais de 150 trabalhadores da rede municipal de saúde de Manaus ali estavam e com eles alguns conselheiros de saúde.
O processo foi iniciado desde o Encontro Regional da Rede Unida em Fortaleza, quando técnicos da Secretaria de Saúde de Manaus e da Fiocruz Amazonas se encontraram com as potencialidades da educação popular através dos círculos de cultura, da cenopoesia e das práticas de cuidado. A conversa virtual foi se processando mas foi no Congresso Nacional da Rede Unida no Rio de Janeiro que conseguimos materializar uma proposta: os desejantes de Manaus e os de Fortaleza.
Ali fomos colocando sonhos no papel, pensando em nomes e caminhos para materializá-los. Nem tudo foi possível concretizar, mas temos clareza que fizemos o possível para esse primeiro momento. Como diria Paulo Freire, estávamos começando a construir o inédito viável: a educação
popular estava aportando na Secretaria de Saúde de Manaus exatamente no momento em que a PNEPS é aprovada no Conselho Nacional de Saúde.
Na chegada, a energia da criança deu o tom e o grupo Curumin na Lata trazem as referencias da música amazonense: o boi e Porto de Lenha, quase um hino de Manaus e que eu já conhecia através de uma manauara aguerrida, Margarida campos e de um de seus autores: Aldíssio…..
Simone Leite (ANEPS- MOPS _SE) abre as páginas desse livro e descortina a caminhada da educação popular em saúde no Brasil enquanto Ivo Pedrosa(UFPI), representando o Ministério da Saúde propõe um cochicho sobre política e educação popular em saúde. A palavra começa a circular e a educação popular se apresenta aos manauaras como política, política que também se expressa em poesia, musicalidade e cuidado, em síntese, cenopoesia. Os cirandeiros vão fazendo jorrar
praticas de cuidado, arte e reflexão que se misturam com os sons e sabores da cultura amazonense.
O círculo de cultura abre a roda em grupos menores para tematizar a PNEPS sob a ótica da gestão participativa, das praticas populares de cuidado e da promoção da saúde. O que gerou significados e sentidos do que foi dito até então? Nos círculos as palavras sínteses desses sentidos e significados, se agruparam e a problematização se fez com base em questões geradoras de reflexão.
No dia seguinte o resultado chega em linguagens diversas: cenas teatrais, vivências de cuidado, música, dança, cenopoesia. O desejo de falar, ser escutado, de se mostrar, de refletir, de se queixar, denunciar, construir junto, está expresso em cada síntese. A amorosidade surge como questão central, concepção, caminho, dimensão fundamental na expressão dos grupos. A cultura popular se expressa ao desvelar parteiras, benzedeiras, puxadores de ossos e vem nas músicas
do boi, nas cirandas tão diferentes das cirandas nordestinas. A
necessidade de incluir as práticas populares de cuidado e fazê-las dialogar com a técnica e a ciência também se apresenta e com ela o tensionamento por uma gestão democrática que escute usuários e trabalhores. A arte e a cultura popular como promoção se entremeiam com a necessidade de escuta:
Escuta, escuta…
O outro a outra já vem
Escuta e acolhe
E do cuidar-nos uns aos outros:
Cuidar de mim é cuidar do outro
Cuidar do outro é cuidar de mim
Cuidar de mim é cuidar do mundo
O círculo de cultura revela mais uma vez sua potência problematizadora e reflexiva explicitando a importância de aprofundar a conversa e construir estratégias para socializar o aprendizado. Com que linguagens? De que formas?
O cuidado sempre como ponto de partida. O corredor do cuidado… esse jeito de partilhar e cuidar em grupo. Cuidar também é arte e se faz cenopoesia nesse corredor humano, polifônico, multicor e multiétnico. Massagem, reiki, cura com o maracá, fazendo circular e reciclar energias. Quem é cuidado cuida. Cuidado coletivo, amoroso, ritualístico, musical, cenopoético. A emoção traz lágrimas aos olhos e sorrisos aos lábios. Estamos entregues ao cuidado humano, amoroso sempre, respeitoso e nesse ritual uns seguem para a Tenda do Conto onde as histórias de vida de cada um podem ser contadas em uma cadeira de balanço com a ajuda de objetos carinhosamente trazidos pelos participantes. Nas fotos, roupas, adereços, diplomas, quadros e até alianças de casamento, a ´possibilidade de falar e ser escutado. As narrativas autobiográficas vão nos fazendo refletir: o que aprendo com a experiência do outro?
Outros seguem com a cenopoesia e as relações entre trabalhadores e gestores são colocadas em foco: o carvalho, o bambu e a invenção do barvalho, problematizam a importância da criatividade, de ser afetado pelas paixões alegres que geram desejo e motivação e a flexibilização das relações. Há que tensionar sem perder a ternura; há que se construir polifonias a partir do diálogo criativo.
Outros ainda seguem a rota das práticas de cuidado, das plantas medicinais, automassagem, reiki, meditação e desvelam o desejo de constituir espaços onde o trabalhador possa ser cuidado. De se organizar processos formativos com essas praticas para os trabalhadores. Quem cuida também precisa de cuidado e de formação para melhor cuidar. A resposta vem sob a forma de projetos e vivências coletivas.
Há também os que seguem com os círculos de cultura e com eles a necessidade de pensar como chegar aos territórios com tantas novidades. De onde partir? Ostemas surgem: a relação entre trabalhadores e usuários, a participação e o controle social, mas o grupo consensua: precisamos partir da comunidade e sua história de luta e resistência. E pra isso o que é preciso? Quem serão os protagonistas? Os adultos? Os mais idosos? Os jovens? as crianças?. Decidimos que todos são fundamentais. De que jeito vamos chegar a cada um deles? Como motivá-los, envolve-los? Em meio a tantos
questionamentos pequenos grupos se organizam. Algumas deixam fluir a sua criança e se dispuseram a olhar para a comunidade que temos e queremos. Conversaram ea conversa se expressa em desenhos que exuberantes em cores e formas revelam o lixo, a insegurança, a inexistência de espaços de lazer como situações-limite a serem transformadas mas revelam também o sonho de uma escola colorida, da pracinha com brinquedos e muito verde, do rio limpo… Em outro grupo
a juventude se faz presente a problematizar com poesia e música a violência, o tráfico, a gravidez na adolescência, a escola que não é pra todos. Por vezes parecia difícil pra alguns assumir esse papel. Ser jovem inteiramente o que nos fazia refletir sobre o desafio de se colocar no lugar do outro, de olhar desse lugar da alteridade. Mas o desejo de criar rompe barreiras e os atos-limite surgem: musicais, alegres e convidam à participação, a sair da acomodação e ousar… Os adultam mergulharam na linha do tempo e foram às origens: idosos,
parteiras, benzedeiras, padres, comerciantes, puxadores de ossos, professores e até vendedores reconstituem a história de Puraquequara. As experiências vieram teatralizadas, desenhadas, fotos foram buscadas na internet. Trabalhadores e gestores, conselheiros e cidadãos comuns se expressam e as situações-limite mais uma vez revelam olhares singulares: demanda excessiva na unidade de saúde, vagas insuficientes na escola, destacando a necessidade de ampliação do acesso à saúde, educação e ao transporte coletivo. O artesanato e a possibilidade de trabalhar o ecoturismo são apontadas como potências locais para uma melhor
qualidade de vida. A comunidade está agora reunida e o momento é intergeracional. A acolhida se faz com banho de ervas e comidas regionais e as sínteses criativas revelam caminhos de inclusão na integração serviço e comunidade.
A cenopoesia se esparrama nos entremeios. Tudo é emoção e cuidado, mas é preciso formular propostas: os grupos agora se recompõem por regiões. Nos esboços de projetos formulados fica expressa a necessidade dos trabalhadores: cuidado, escuta e inclusão. As linguagens vão se adaptando aos desejos: narrativas da tenda do conto, automassagem, círculo de cultura cenopoesia… A educação popular como política ensaia seus primeiros passos na estrutura da secretaria de saúde de Manaus sob o protagonismo de seus trabalhadores e trabalhadoras e nós militantes confessos dessas possibilidades, educadores aprendizes nos abraçamos eufóricos e reflexivos; tensionamos, animamos e vamos devagarinho saindo de cena
para que eles a assumam integralmente. O esforço coletivo que revelou essa potência nos faz respirar e seguir adiante.
De minha parte estou grata pela felicidade de trabalhar pela primeira vez com Jaqueline e Lourdinha da Tenda do Conto, Com Denise e toda a turma de Manaus e de poder seguir mais uma vez com os companheiros cotidianos: Ray Lima, Edvan Florêncio, Rocineide Ferreira, Simone
Leite.
Lembrando Junio Santos:
Quando juntos sonhamos tudo pode acontecer
Pode acontecer
Começa a acontecer
Por jacqueline abrantes gadelha
Verinha,
Seu relato nos transporta…Sinto-me muito feliz por ter vivido COM vocês a experiência de um precioso encontro produtor de um movimento que aproximou pessoas, valorizou experiências, fez emergir desejos e afetos.
Que este grupo de desejantes continue a desvelar criações e invenções espraiando encantamento por estas terras…
Um forte abraço,
Jacqueline