Lançamento de coletânea sobre humanização dos atendimentos à saúde: “Humanização, gênero e poder”
Como a própria fala pode humanizar?
Coletânea recentemente lançada pela Fiocruz responde a essa pergunta:
Humanização, gênero e poder: contribuições dos estudos de fala-em-interação para a atenção à saúde
https://www.fiocruz.br/ccs/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=4772&sid=10
Como são as falas de médicos e pacientes durante as consultas? Como conversam sobre sexualidade e outros temas delicados? Como o médico demonstra sua compreensão do que a paciente diz? Como a paciente mostra para o médico o que entendeu da explicação dele? A maneira como essas "conversas" acontecem em uma consulta médica podem aprofundar desequilíbrios de poder, reforçar estereótipos e distanciar usuários e profissionais de saúde, como já amplamente tratado em vários canais. Contudo, dependendo de como essa conversa se dá, ela pode contribuir para a humanização do atendimento, a qualidade do cuidado, a adesão a tratamentos e a promoção da saúde em geral.
Estimular um olhar para a "conversa" entre médicos e pacientes é o objetivo central do livro Humanização, gênero, poder: contribuições dos estudos de fala-em-interação para a atenção à saúde, organizado pela linguista aplicada Ana Cristina Ostermann, professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), e pela médica Stela Nazareth Meneghel, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Inédita na literatura em língua portuguesa, a coletânea apresenta análises das interações entre usuárias e profissionais de saúde em consultas de ginecologia e obstetrícia. Publicada em parceria pelas editoras Mercado de Letras e Fiocruz, a obra reúne estudos realizados em um posto do SUS localizado em uma região metropolitana do Sul.
As autoras partem do princípio de que a conversa é a própria substância do trabalho em saúde e, para a integralidade do atendimento de fato acontecer, é preciso haver diálogo. Nessa perspectiva, o profissional de saúde não pode se limitar ao papel de porta-voz do conhecimento técnico-científico: ele precisa reconhecer as formas como as pessoas se apropriam desse conhecimento; valorizar as narrativas dos pacientes sobre saúde e doença e sobre suas histórias de vida; e estar atento até à comunicação não verbal, como expressões faciais e gestos. Para tanto, é necessário que a formação médica, ainda muito centrada na racionalidade cartesiana e com ênfase na tecnologia, passe a incluir também uma sólida base em humanidades.
Os estudos de fala-em-interação têm muito a proporcionar, no sentido de oferecer subsídios para mudar essa realidade. Como matéria-prima, esses estudos utilizam dados advindos de situações cotidianas reais, e não de entrevistas ou questionários. No caso da obra organizada por Ana Cristina Ostermann e Stela Meneghel, as conversas travadas entre médicos e pacientes nos consultórios são gravadas e analisadas. As autoras descrevem, por exemplo, vários momentos em que as usuárias do serviço, diante de temas tabus, produzem falas com hesitações, repetições ou mesmo risos, evidenciando situações delicadas e que desafiam os médicos, muitas vezes despreparados para lidar com esses casos. “Fica evidente, por exemplo, a dificuldade que algumas pacientes têm em falar sobre assuntos e em produzir termos ligados à sexualidade, dificuldade para a qual os médicos nem sempre se orientam (ou talvez nem mesmo percebam)”, afirmam Ana Cristina e Stela. A consequência dessa não orientação é que aspectos importantes, reveladores do problema de saúde e da vida social da paciente, podem ficar sem ser tratados.
Apesar de alguns desafios identificados pelo estudo, a coletânea também descreve casos de sucesso na interação entre médicos e pacientes. “A consideração por parte dos médicos das explicações trazidas pelas pacientes como causas para seus problemas de saúde mostrou-se como um importante recurso não apenas humanizador (no sentido de reconhecimento e aceitação do conhecimento dito leigo), mas também coadjuvante na própria busca de diagnósticos e tratamentos mais apurados”, contam as organizadoras. Em diferentes momentos da consulta, os médicos também assumiam um papel colaborativo (e, portanto, humanizado) nos atendimentos ao ajudar as pacientes a elaborar suas falas – auxiliando-as, assim, na descrição de seus problemas – e ao calibrar a linguagem adotada em suas explicações técnico-científicas a partir do conhecimento prévio demonstrado pelas pacientes.
Ao preencherem uma lacuna de pesquisa na interface entre linguística aplicada e saúde coletiva, os capítulos do livro convidam o médico a examinar sua própria prática profissional. No entanto, o livro não se dirige apenas aos médicos, mas a todos os profissionais, estudantes e pesquisadores das diferentes áreas da saúde coletiva, de linguística e letras, antropologia, sociologia e comunicação, além dos demais interessados em discussões sobre gênero, poder, sexualidade e identidade.
Atenciosamente,
Ana Cristina Ostermann & Stela Meneghel (Organizadoras)