A morte, a utopia e a PNH
Erasmo, suas reflexões disparam os debates mais instigantes e pertinentes a respeito dos pressupostos da PNH. Pensando contigo consigo adentrar mais profundamente nos desafios que a PNH precisa enfrentar para poder, na forma de um contágio, digamos, rizomático, atingir os recantos do cotidiano do SUS.
A PNH pretende ser uma política de construção do cotidiano que reconheça em um tempo as contingências, e depois incida sobre elas de forma a produzir mais vida e saúde.
Já apontei que naturalmente ela também é uma política instituída de governo e de Estado. Dessa forma ela constitui um campo de investimento de recursos públicos. Abre um mercado de consultorias, bolsas de formação, realização de encontros, seminários e produção de saberes. É, portanto, de forma coerente, um espaço de disputa de poder. Às vezes micro poderes, e outras, nem tanto. Mexemos com potências virtuais, mas cada vez mais, são elas que determinam a concretude do mundo.
Como Bourdieu constatou, os campos de disputa funcionam como produtores e conversores de diferentes formas de capital simbólico: dinheiro em prestígio e prestígio em dinheiro; Liderança profissional em liderança social; Credibilidade em votos, votos em credibilidade e assim por diante…
Portanto, a filosofia da PNH também é profana e mundana e se pretende potencialmente concreta. Ao ponto de se ver como desnecessária em vários de seus dispositivos, como a função apoio que pode diluir-se e desaparecer na eventualidade da efetivação de sua missão.
É como ouvi ecoar das palavras de Eduardo Passos no último encontro Estadual de Humanização dos gaúchos: diante da concretude da vigência de suas diretrizes na realidade cotidiana do SUS o que seria da PNH? Podemos sonhar com o fim da PNH porque a humanização poderia um dia estar concluída?
Por outro lado, a PNH insere o aspecto humano no ceio de uma intensa revolução tecnológica que incide de forma radical sobre a relação saúde e doença, bem estar e sofrimento. Esse processo tem fôlego para seguir por várias décadas adiante. Intrinca o meio universitário e o da atenção de uma forma inovadora, inusitada e de consequências pouco previsíveis. Tanto que nossos mais queridos pensadores falam sempre, desde o inicio em (e nas) apostas da PNH.
E, de forma muito importante a Humanização afeta toda a forma global de financiamento do SUS. Vemos que ao introduzir na diretriz do acolhimento os dispositivos da cogestão e da ambiência vivenciaremos uma revolução nos processos de trabalho. Os investimentos e projetos terapêuticos fundamentam e se legitimam em planos anuais e plurianuais de saúde, sistemas de monitoramento e acompanhamento, concluídos em relatórios de gestão. Tudo sendo reformatado e norteado pela lógica do financiamento por custeio e não mais apenas pela remuneração de procedimentos.
Esta revolução é silenciosa, na medida em que ela é discutida num plano bem mais restrito do que aquele em que ela é aplicada. Poucos entendem os meandros que entrelaçam as tecnologias da informação e os novos modos de destinação de recursos para custeio das ações de saúde. No entanto, isso afeta a vida de todos os trabalhadores da saúde com o ponto biométrico e todos os usuários com o cartão SUS e prontuário eletrônico, para ficar apenas nos exemplos mais conhecidos.
Penso que trazer ao debate da ponta, das reuniões de equipe, por exemplo, uma compreensão da dimensão global das mudanças que estão ocorrendo é uma função importante da RHS e da PNH em última instância.
Tudo isso se dá na medida em que o SUS vai se consolidando juntamente com o caráter do Estado brasileiro e de nosso pacto de Bem Estar Social,assinado em 1988. Vemos um consenso se formando em torno dessa ideia de desenvolvimento humano para o nosso Brasil: O destino da nossa emergente classe média está implicado e forma uma comunidade de destino com nossa população em situação de risco econômico e vulnerabilidade psicossocial.
Nossa sociedade é impregnada de ideais iluministas e positivistas. A ideia de uma redenção ou final da história é comum tanto ao espectro político da esquerda, quanto ao da direita.
E aqui o tema da morte é alvissareiro. Com ele podemos dialogar com uma angústia que se expressa na política como realização plena e acabada de uma utopia. Um estágio ideal onde não é mais necessário pensar porque a contingência foi superada e a vida humana plenamente equacionada.
Essa é uma fé ocidental recorrente, por vezes fundamentalista. A morte é o limite que reintegra a humanidade a sua contingência e a seu papel modesto no esquema geral do mundo. Aprendemos isso com Freud e com Darwin. Mas distorcemos esse aprendizado e de novo dormimos num sonho antropocentrista.
Há muita escatologia anexada a ideia vulgar de utopia. Para mim basta que utopia signifique que os dados estão rolando. Que nos resta alguma governabilidade que exige que sejamos resolutos e realistas.
Quando vencemos uma partida, em seguida uma nova inicia. Só que diferentemente do futebol a vitória anterior altera as regras do próximo jogo. O chão das relações sociais se move de baixo dos nossos pés. Forjar a coesão social é uma tarefa constante.
Hoje viver numa cultura estável como se viveu em parte da história humana já não é uma expectativa realista. Marx acertou quando previu que a borrasca de criatividade destrutiva do capitalismo iria destruir o modo de vida da burguesia, (as instituições da carreira e da aposentadoria) e o próprio proletariado industrial.
O capitalismo brasileiro calhou de produzir alguma distribuição de renda e políticas de proteção social a partir do início do milênio. Justamente quando o Estado de Bem Estar está em questão ou franco refluxo no primeiro mundo. O SUS é parte disso e terá que resistir a pressão que certamente virá contra nossa prosperidade social tardia e tão recente.
Mas os reveses dos ciclos de contração e expansão da economia irão estar presentes em nosso modelo autóctone de capitalismo. É com essa verdade muda e tácita que surdamente tememos.
Meu pressuposto é de que este pressentimento tomou nossos intercessores e pensadores da PNH. Eduardo Passos, Ricardo Teixeira, Dário e muitos outros, estão inseridos em um coletivo de produção teórica e gestão solidária de um processo de alcance histórico e em aberto. Eles antecipam um tempo de consolidação do SUS em que os atores políticos terão nascido depois da estabilização monetária e estão crescendo durante o período de desenvolvimento iniciado com os governos de Lula.
Por isso, tenho minhas reservas com o uso inadvertido de pensadores como Espinosa e Nietzsche, apenas para ficar numa área de intercessores comuns a todos nós. Sabemos que são muitos outros os pensadores que são pais e filhos do iluminismo.
Em minha opinião os extremismos de esquerda e de direita, o comunismo e o liberalismo, mais precisamente, são filhos não assumidos do iluminismo. Mas hoje o mundo é muito maior e interconectado. Uma tentativa de redenção humana nos moldes sonhados pelo iluminismo não pode terminar bem.
Os efeitos da tentativa de forçar uma reengenharia da condição humana (nos moldes tentados pelo liberalismo nos anos 90 e do bolchevismo no início do século XX) hoje seriam muito mais desastrosos.
Não é isso que a PNH preconiza (a reforma da natureza humana). Podemos até supor que isso não exista. Não importa muito. Mas, no início do trabalho de qualquer GTH é recorrentemente um momento em que esta expectativa é ironizada ou aventada: Vamos “Humanizar” a saúde, o SUS, os trabalhadores e os usuários.
Penso cada um a seu modo, o Erasmo Ruiz, e eu com ele, somos os (des)afortunados mensageiros deste “entretanto”. Ou seja, uma política nunca produz apenas os resultados a que se propõe, não raramente produz efeitos contrários a suas diretrizes.
A utopia é bem vinda, na medida em que nos predisponha a não depor as armas, na medida em que nos mantenha na linha de frente na defesa do SUS. Mas não pode ser uma fé militante que busque a redenção definitiva.
Porque se podemos confiar na história, podemos admitir que ela não tenha um fim ou uma direção a priori. Seria mais prudente confiar que a história seja cíclica e que sejamos sujeitos a suas contingências e retrocessos.
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Querido Marco,
Teus post precisam de alguns desmembramentos para que eu alcance algum entendimento. O que seria, por exemplo, um uso inadvertido de Nietszche e Espinosa?
Vamos conversando?
bj da Iza