Percepções da Morte em Três Pinturas

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No passado o homem se achava relativamente preparado para o enfrentamento da questão da morte. Uma síntese complexa de concepções de mundo religiosas e do folclore criavam um esteio simbólico onde todos caminhavam em direção ao desfecho sendo socializados com valores e condutas a seguir.  Hoje, com o fim das explicações gerais sobre a morte, ela deixou de ser um terreno exclusivo da religião transformando-se em mais um dos objetos da ciência. A ciência mesma é a grande fonte de nossas dúvidas e certezas, é ela que garante possibilidades de vida maior e mais segura. O problema é que ela não debelou aquilo que é considerado  o mal maior: a morte. Ah, a ciência! Aumentou nossa média de vida, mas roubou nossa certeza da eternidade. Ora, é a ciência com seu complexo quadro de saberes que afirma a finitude como absoluta, pois não consegue encontrar referências plausíveis da vida fora da matéria. Ao mesmo tempo, tenta nos instrumentalizar contra a morte a partir da noção de microorganismo, dos procedimentos higiênicos, das práticas de anestesia que revolucionaram a cirurgia, da farmacologia e seu arsenal cada vez mais eficiente de drogas miraculosas. Todo esse conhecimento criou a ilusão de que a morte pode ser detida indefinidamente, gerando aquilo que muitos estudiosos chamam de “fantasia de onipotência” dos profissionais de saúde. Essa onipotência é destruída diante da morte pois os saberes falham na medida que o moribundo sinaliza seus limites. Aqui nos defrontamos com um dos motivos do afastamento das pessoas que estão morrendo. Em parte, queremos nos afastar não só porque elas representam a morte, mas também porque elas ferem nossas vaidades ao negarem a eficiência absoluta do saber que utilizamos.

                A medicina, na medida em que ampliou suas possibilidades de intervenção, foi deixando de ser contemplativa em relação ao caminhar da doença em direção à morte. Mas essa contemplação não significava a inércia. O olhar do médico se dirigia às possibilidades que ainda restavam, qual seja, de tentar oferecer tudo que podia para mitigar a dor e o sofrimento. O quadro pintado por Samuel Luke Fildes.em 1891 mostra justamente isso. O olhar do médico parece expressar um misto de curiosidade e comiseração. Na casa, a família improvisa uma cama na forma de duas cadeiras. Sobre elas, uma criança que aparenta não ter mais do que 5 anos está nos estertores da agonia. Ao fundo, os pais desolados observam. A mãe inconsolável ainda parece juntar as mãos para uma derradeira súplica a Deus. O pai parece esboçar ainda um olhar com um mínimo de esperança enquanto ensaia amparar a esposa pousando uma das mãos em seu ombro. O sentimento geral que o quadro parece transmitir é o da impotência diante da morte. Resta aguardar a marcha inexorável dos acontecimentos. Entretanto, junto do olhar do médico contemplativo, parece existir um semblante questionador. O que poderá ser feito quando outra criança estiver nas mesmas condições? Poderá um dia a medicina oferecer alguma resposta frente a toda essa mortandade que ceifa flores tão tenras?





Alguns anos se passaram depois dessa pintura. Acontecem guerras de redobrado aspecto destrutivo, com novas armas como as metralhadoras, fuzis de repetição e, posteriormente, o uso de gazes letais e  da força aérea, produzindo alto número de mortos e feridos. Os hospitais de campanha oferecem todo o campo de atuação para a revolução da prática médica, notadamente da cirurgia. Estamos diante de uma medicina que aprendeu muito com as noções de microorganismo e assepsia, que desenvolveu técnicas cirúrgicas antes impensadas a partir da viabilidade do ato cirúrgico com a invenção de anestésicos eficientes e, depois, dos antibióticos que junto às técnicas de esterilização reduziram drasticamente a mortalidade pós-cirúrgica. Essa medicina é guiada pela razão instrumental. Coloca sobre sua tutela os desejos de pacientes e familiares. Redesenha os espaços de cura modelando os hospitais com o semblante parecido com os de hoje em dia, tornando-os um espelho que reflete o número crescente de especialidades. Resta muito pouco espaço para o olhar que contempla. Cabe agora atuar com base no conhecimento construído. E, paulatinamente, inúmeras situações que estavam fadadas ao reino da morte, são como que arrancadas de lá e trazidas de volta à vida.

            Agora, vamos nos deter em outra manifestação artística. Trata-se da gravura Der Arzt (O médico) de Ivo Saliger, realizada em 1920. Nela vemos uma árdua disputa entre o conhecimento médico de um lado e a morte de outro. No centro, uma mulher nua agoniza sendo sustentada pelo braço esquerdo médico. Com o pouco de forças que lhe resta, a mulher enlaça o pescoço do médico, praticamente pendurando-se nele. Abaixo a morte, estilizada na figura do esqueleto, tenta arrancar a mulher do médico que com o olhar resoluto a detém, empurrando-a com a mão direita que lhe comprime o crânio. Essa figura parece representar com muita fidedignidade o conceito que embasa a prática médica que se constitui a partir da eficácia terapêutica. O olhar obstinado do médico mostra alguém que luta contra a morte e, para tal, está disposto a tudo. É essa postura que parece governar grande parte da prática médica, principalmente no momento em que a medicina se  instrumentaliza cada vez mais com técnicas que potencializam a eficácia  da terapêutica. Ironicamente poderíamos dizer que hoje em dia os pacientes morrem bem equipados porém mal informados. Os novos templos de Esculápio estão materializados nas UTIs, que, apesar de realmente salvarem muitas vidas, acabam que mantendo em suspenso o desenlace de outras tantas. Os novos médicos, imbuídos do espírito de Saliger, acabam produzindo a distanásia, aumentando o tempo de  vida que não é mais vida e sim um mar de dores e sofrimentos.




 




Agora talvez possamos firmar um consenso mínimo entre os saberes consolidados e aqueles que parecem bem distantes, perdidos no passado. Para tal, invoquemos mais uma vez a arte, no caso, o genial Pablo Picasso aos 14 anos de idade. Trata-se do famoso quadro “Ciência e Caridade”. No centro da pintura, uma pessoa  agoniza deitada na cama. A sua direita o diligente médico toma-lhe o pulso e consulta o relógio. Esse é o olhar da ciência que nos faz tudo relacionar às medidas e quantidades, visando prever e prover. Mas a esquerda da mulher existe uma religiosa que assume em termos práticos algo que ela naquele momento não pode mais fazer: ela segura a criança que presumivelmente é filha da moribunda. Está ali portadora de um saber ancestral, que pode até ser visto com inútil frente ao que acontece com o organismo da agonizante mas, ainda assim, ela pode suprir determinadas necessidades que nem todo o saber médico reunido conseguira dar conta naquele instante. Ela é capaz de responder a determinadas perguntas sobre a vida e a morte que, mesmo em sendo falsas as respostas, serão de vital importância para que nesse momento encontre-se alguma paz. Nada, absolutamente nada impede que esses saberes, com o digno acúmulo de suas competências, possam estar lado a lado para constituírem o esteio da dignidade diante da morte e do morrer. Neste sentido, temos que resgatar a autonomia dos pacientes. Cabe a cada um de nós sermos protagonistas mais atuantes da maneira como queremos sair do palco dessa bela peça teatral chamada de existência. E o fim  do espetáculo não precisa se configurar necessariamente como tragédia. Provavelmente será dramático, é verdade, mas terá pitadas de alegria e contentamento, principalmente se tivermos ao nosso lado pessoas que em nenhum aspecto nos deixem sozinhas, seja alguém da família, seja um profissional da saúde. Dessa forma estaremos respondendo em termos práticos que não queremos morrer sozinhos !