NÁUSEA

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  Queria compartilhar com todos vocês um sentimento terrível. Sua expressão fisiológica é parecida com a náusea. Por dever de ofício (sou psicólogo), boa parte do meu tempo tenho que tentar desenvolver o exercício da empatia, um artifício psicológico que tenta imaginar como me sentiria se vivesse o que a pessoa está vivendo naquele momento, pensando da sua maneira,  colocando em suspenso minhas crenças e valores. Claro, na maior parte do tempo, temos que assumir criticamente que este exercício é uma fantasia técnica que nos ajuda a compreender razões e gestos e, a partir dessa compreensão, atuar sobre o que está acontecendo.
    Com o tempo essa postura cria alguns vícios de pensamento. Podemos ser vistos então como pessoas excessivamente contemporizadoras. Em algumas cirunstâncias esse exercício nos coloca numa posição de sofrimento intenso. É quando somos forçados a nos indetificar com o jovem que sofreu abusos na infância, com a mulher que foi estuprada, com a operária injustiçada no trabalho, com o agonizante numa cama de hospital. O nosso mundo é muito pródigo nas formas de sofrer e, assim, é fácil quando nos importamos minimamente, sofrer com, e pelos outros.
    Neste final de semana tudo pareceria corriqueiro. Almoço em família, futebol e TV. O problema era fazer isso tudo sentindo essa náusea incontrolável. Na minha mente, as imagens do sequestro em Santo André, as horas intermináveis de negociação, o desespero, a dor e finalmente o desfecho trágico. Agora vemos um desfile interminável de pessoas desesperadas perante àquilo que de mais terrível existe na morte que é sua irreversibilidade. Quem morre o faz sempre de forma franca e honesta, é um acontecimento que não permite artificialidades embora nós possamos até ser sueperficiais e artificiais na vivência dos nossos ritos frente a fatalidade do morrer.
    Não pude evitar de chorar enquanto pensava no desperdício de vidas tão tenras…na raiva incontida de todos aqueles que sabem agora que terão de carregar uma dor latejante que analgésico nenhum cura. Chorei pela mãe que não receberá mais o presente da adolescente tão cheia de vida no Natal, chorei pela outra mãe que visitará o filho na cadeia depois de passar pela revista humilhante. Chorei por jovens que agora  terão como última lembrança a visão da morte associada com  o sentimento acre da vingança. Chorei de raiva por ver o eterno desfilar de políticos que começaram seu jogo abjeto de empurra-empurra.
    Assumir a responsabilidade pela morte dos outros é muito pesado, principalmente em anos eleitorais onde os reis podem ficar nus a qualquer momento. É asqueroso ver aparecendo aqui e acolá os "papa-defuntos" oportunistas querendo jogar no colo deste ou daquele a responsablidade da morte de uma garota de 15 anos, com um certo riso sádico que afirma gritando: "encontrei a fórmula para ganhar as eleições"! Chorei um choro doloroso e imaginei minha filha abrigada pela frieza de uma lápide. Não aguentei mais e desliguei a televisão.
    A dívida social é tão grande, a sensação de aparente desamparo é maior ainda. Como impedir que esse fel corroa nosso caráter? Como ficarmos indiferentes a um sistema que explora essa tragédia em busca dos pontos de audiência, onde reporteres de televisão são  capazes de telefonar para um seqestrador armado para colcoa-lo ao vivo e a cores em rede nacional? Durante mais de 4 dias tivemos uma novela pintada com as duras cores da realidade e agora teremos um fim trágico, com as costumeiras matérias falando daqueles que receberam os órgãos da pobre adolescente assassinada. Como as coisas chegaram a esse ponto?
    Eu não tenho respostas prontas para tudo isso. Meu lado mais racional ensaia construir teses sociológicas elaboradas. Mas um outro lado mais afetivo e emocional sempre achou que, ao entender essa barbárie toda, estaria um pouco oferecendo sentido a ela. A perversidade da concentração de renda gera a perversidade do cotidiano, pinta de vermelho ensanguentado nossas pautas de TV em busca da liderança da audiência. A perversidade da falta de amor e do afeto mercatilizado vão criando pedras "drumonndianas" que parecem intransponíveis.  Estou nauseado pela morte indigna. Estou nauseado pela morte sem sentido. Estou nauseado pela morte em vida.  Estou nauseado pelo aborto de tantos projetos de existência.

ERASMO RUIZ