Leviatã é Bicho Perigoso…

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Estes dias fui cumprir obrigações de renovação de carta de motorista. Tinha lá um exame médico e, antes dele, um questionário com 08 perguntas tipo sim ou não. Entre muitas perguntas idiotas, duas me fizeram rir, com raiva, apesar de uma certa nostalgia…
“você já fez uso de drogas ilícitas?” e “você já fez uso não moderado de álcool?”. Perguntei à recepcionista o que era “aquilo”?  Ela se disse envergonhada e lamentou: “o pior é quando chegam pessoas mais “simples” e levam a sério estas perguntas. Eu fico querendo avisar, mas somos proibidos de falar qualquer coisa… “ Fiquei com vontade de perguntar ao médico que me chamou (ia dizer “me atendeu”, mas seria demais para o caso) se ele tinha algo haver com o tal questionário. Mas tive medo. Leviatã é bicho perigoso….

Isto me lembrou a Carol, Negra, muito pobre, moradora da periferia. Magra, franzina, muito agitada e brava com 30 anos e dois filhos. Fomos até sua casa porque ela não queria fazer um exame de revisão de parto e brigara com a pediatra na última consulta de puericultura, em que levara sua filha mais nova. Na sala da casa, ela nos contou sua história e porque não queria mais usar o serviço de saúde.

No início do parto do seu primeiro filho procurou o hospital católico apostólico romano (que tem duas portas, uma para o SUS e outra para os pagantes). Durante o trabalho de parto ela desmaiou. Quando acordou foi questionada pela médica: “qual droga você usou? “ Diante da negativa e do seguimento do trabalho de parto  a médica insistia (“imaginem durante um trabalho de parto ter que dar conta de um interrogatório policial”) . Não convencida informou Carol que faria exames de sangue para “verificar” o uso de droga. Ela não sabe se estes exames foram feitos. Depois de um heróico parto normal e alguns dias, chegou uma carta do conselho tutelar solicitando comparecimento obrigatório para esclarecimentos (com as ameaças de praxe, em caso de não comparecimento). Leviatã estava no seu encalço. Ela teve que conseguir dinheiro para ônibus, muita paciência e ir ao Conselho Tutelar da cidade. Ao chegar lá é surpreendida com seguinte frase: “que criança linda, não quer dar para mim, não?”. A raiva tomou conta de tudo, mas ela se conteve. Estava entre as mandíbulas Dele. Entre dentes só pensava: “é filho de cadela, para distribuir a cria?” Teve que chamar vizinhos, Agente Comunitário etc para “provar que não usava droga”. Na periferia todo pobre é culpado até provar o contrário. Leviatã foi vencido, mas cobrou o seu pedágio de humilhação. Pobres e negros tem que saber o seu lugar.

No segundo parto, decidiu que não iria mais ao hospital. Decidiu parir em casa, sozinha. Conseguiu, mas logo depois alguém chamou o SAMU e ela foi levada contra a vontade, junto com o bebê, para o mesmo hospital que tentara evitar. Voltou para casa e foi convocada para a puericultura pelo Centro de Saúde. Ao chegar com a filha na consulta com a pediatra, foi cobrada pela demora em trazer a criança para a primeira consulta e ameaçada: “se você não trouxer direitinho, vou te denunciar para o conselho tutelar”. “Faça isto… que é a sua cara…” respondeu para a pediatra, e nunca mais pisou na unidade. Por isto fomos visitá-la. Ouvimos sua história e concordamos com o Paulo Lins, escritor do livro Cidade de Deus: “tem pouco bandido nas favelas do Brasil”. Chama o ladrão, chama o ladrão, diria o Chico…