CONSTRUÍNDO CIRANDAS COM A PROMOÇÃO DA VIDA.

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Por Ray Lima*
 
Em Fortaleza há muito que fazer em relação à construção de redes, fortalecimento de vínculos e qualificação das relações entre profissionais e entre estes e usuários, etc. Há uma capacidade instalada não só das Cirandas da Vida, mas dentro do próprio sistema municipal saúde escola no contexto da educação permanente e da humanização que precisa de articulações mais consistentes e maior investimento no sentido de aproveitá-la melhor em benefício da qualidade da saúde do município. Seja nos limites das próprias unidades de saúde, seja no contexto maior dos territórios onde elas estão situadas.
 
Novas agendas devem ser construídas de forma compartilhada por equipes de saúde da família, movimentos sociais e unidades de saúde entre outros processos de produção e promoção da saúde, visando ao alcance de qualidade de vida para todos com cidadania plena. Neste sentido, talvez o grande desafio esteja em articular projetos, saberes, recursos, atividades, concepções e práticas no âmbito do cotidiano, nos espaços onde eles se dão, nas unidades, nos territórios bem definidos. Claro que precisamos aclarar de onde partimos e/ou falamos. No caso das Cirandas da Vida*, as preocupações, o foco vai estar na educação, nos processos de cuidado, na ação cultural, na relação saber popular/saber científico/ cultura popular/produção de saúde/doença, no contexto e no lugar em que as coisas acontecem para ver o que e em que podemos contribuir com possíveis intervenções para prováveis mudanças.
 
Sabemos que bons arranjos a partir da reorientação e reorganização dos serviços regados a muito diálogo e paciência histórica melhoram os processos de gestão e produzem resultados satisfatórios. Outro aspecto interessante é de como construir perspectivas, utopias, horizontes que animem os trabalhadores para empreendimentos dessa natureza. Como fazer com que o projeto de saúde a ser implementado seja ao mesmo tempo da gestão macro/micro, do desejo transformado em práticas dos trabalhadores e da população em geral. A questão é saber como fazer e com quem se conta no dia a dia para agir transformando sonhos em sonhação e conceitos em ações concretas. Como mobilizar as pessoas para causas coletivas em tempos de tanta segregação, individualismo e jogo de interesses centrados no egoísmo (individual ou de corporações, grupos, etc.)?
 
Enfim, "é preciso aprender a semear com a máquina do tempo. É vital, mais que vital, inventar: vida e verdades; sonhos e realidades; razão com alegria bailando sobre o espelho das águas perenes. Ainda esperamos, coitados, as chuvas do céu, quando deveríamos fazer chover no chão de caos e ilusão; umedecer as pedras, fazendo-as verter poesia; transformar em vida a energia do sol em desperdício que hoje nos flagela e definha." (Lima, Ray – Nhandupoiema)
 
Há um terreno pronto e semeado no município de Fortaleza – que não é pequeno – muito promissor. Mas precisamos compreender esse momento como oportuno para avançarmos até colher muitos frutos desse esforço de muita gente. Temos que nos preocupar com respostas imediatas (às vezes são questões seculares, milenares que sempre estão na ordem do dia geralmente por aqueles que não foram capazes de respondê-las no seu tempo/espaço). Sem dúvida, não podemos negar esse “movimento de rotação” das demandas. Porém, não devemos dar as costas nem abdicar daquilo que é estruturante para a construção de uma nova cultura, de novas práticas, de outros processos de produção de saúde e cidadania que se dão em longo prazo, como “um movimento de translação” que sempre nos parece lento, inalcançável. Contanto, é do dia-a-dia rotineiro e, às vezes, cansativo, pesado e doloroso que devemos extrair os dia a dias de prazer e felicidade que sonhamos. Do cotidiano também devem nascer e procriar os sonhos da vida história a fora. Não podemos pensar que nossas vidas, nossos projetos de vida, de humanidade, de universo se encerram no cotidiano. Tampouco acharmos que dele não podemos tirar mais do que o que costumeiramente tiramos nos fazeres e afazeres das obrigações regradas, do que está posto e pronto. Os desafios e as amarras do cotidiano nos territórios das práticas e promoção da saúde em Fortaleza estão diretamente ligados ao que fazemos ou deixamos de fazer dentro de suas possibilidades e limitações. Como dizemos em outro texto: “O cotidiano. O danado do cotidiano nasce e morre, fixa e remove. O cotidiano pai e padrasto. O que nos faz rei do enredo e súdito da história. O que torna viva a lembrança do momento vivido e refém da memória no território do esquecimento. No cotidiano somos e não somos sujeitos da história; inventamos e somos reinventados; somos dele sujeito e objeto. Nele se instalam a vida e a morte; a ditadura e a democracia; o retrocesso e a revolução. Nele o tempo dispara em ritmo veloz e também repousa. Não temos tempo. O marco é zero. A vida estica e diminui. A vida é de todos e de ninguém. Sorte ou desgraça? No cotidiano perdemo-nos de nós e, ao mesmo tempo, podemos encontrar ou reconstruir nossa identidade. Consumimos e somos consumidos no espaço. Sumimos de nós mesmos, da família que nos espera e dos amigos, da vida particular e temporal para cair no buraco negro dos negócios, no ócio ativo e tedioso da burocracia, da rotina das tarefas sem prazer, da pragmática diária das obrigações obrigatórias.” (Lima, Ray – in Nas Malhas da Utopia pelos Corredores dos Sonhos Cotidianos da América Latina – Sodalício Acadêmico nº 3 e 4 – Revista Literária da Academia Açailandense de Letras – MA, 2005/2006.)
 
Possivelmente esse venha a ser o maior desafio: compreender que as mudanças possíveis de nossos processos de produção e promoção da saúde estão ou deverão ser construídos no âmbito do cotidiano, do dia-a-dia das pessoas e das instituições. A mesma realidade que aparece um dia aos nossos olhos como algo imexível, intransformável, pode no dia seguinte surgir como espaço-ambiente propício ao novo, a transformações antes inimagináveis de acontecer. Por isso acreditar sempre que o cotidiano deve ser encarado como espaço de possibilidades, de mudanças constantes, onde as pessoas atuam, inter-agem, resistem, propõem, revolucionam. A rotina que muitas vezes se transforma em rotina burocrática, massacrante, burra, pode ser a rotina da criatividade revolucionária em permanente processo de transformação e construção. É no cotidiano que as atitudes, as mentalidades são construídas, se afirmam, se confirmam, se disseminam, se efetivam ou se destroem. Daí o mesmo espaço do cotidiano que mata, agride, destrói, etc. ser também onde se ama, constrói vínculos, humanidades, parcerias, vida nova, realidades e até mundos novos. Portanto, o cotidiano é, sem dúvida, um grande e precioso espaço de educação, de promoção da saúde e de construção e prática da cidadania.
 
Neste contexto, vemos a educação como possibilidade estratégica de mudanças das práticas e da produção da saúde na atenção básica. Dentre os inúmeros caminhos para efetivação dos processos de produção e promoção da saúde, obviamente a educação é um dos mais importantes. Sentimos que muito se avançou num tipo de educação em saúde. Naquele que fortalece a idéia da cura, do combate à doença, do poder médico-hospitalar, do saber técnico, do domínio das tecnologias sobre as relações entre as pessoas. Mesmo considerando os avanços, ainda é tímido o crescimento da educação como processo emancipatório e de formação permanente para práticas do diálogo, da interação, do abraço solidário e das aprendizagens mútuas no contexto das práticas e  serviços de saúde. Será que as relações de poder – ainda muito presentes na visão biomédica da saúde -inibem sobremaneira esse avanço? Outro problema, neste sentido, é o tempo e os esforços destinados à desconstrução de uma cultura médico-hospitalar (instalada dos hospitais às unidades de saúde/população) secular e entranhada nas mentalidades de profissionais e usuários. A educação permanente, portanto, mais do que necessária é um caminho indispensável para em longo prazo alterar esse quadro, aproveitando a capacidade instalada existente no município e, principalmente, do próprio Sistema Municipal Saúde Escola. Nesta perspectiva, As Cirandas da Vida têm funcionado como uma estratégia de educação permanente consistente e inovadora em seus processos metodológicos.
 
As Cirandas da Vida são uma estratégia de educação em saúde centrada na educação popular. Em três anos de existência acumula experiência e condições de ofertar ao Sistema Municipal Saúde Escola reflexões, vivências e formação em torno de temas que vão desde processos pedagógicos vivenciais à facilitação de práticas integrativas, de formação de grupos, de construção de vínculos entre os saberes popular e científico, entre práticas populares de cultura e processos de produção de saúde em diversos territórios nas seis regionais, partindo da educação popular e das linguagens da arte. "Esta tem sido uma das grandes contribuições das Cirandas da Vida em sua trajetória e busca pela humanização da saúde, a partir da ação educativa, utilizando a arte em suas mais variadas formas de linguagens, fazendo pontes, construindo vínculos, elaborando coletivamente conceitos e disseminando práticas, dentro de uma lógica participativa, corrente e circular." Claro que aqui estou resumindo, ou seja, passando por cima de muitas experiências e práticas, dos diversos e ricos caminhos por onde tem trilhado o Programa Cirandas da Vida.
Enquanto isso, sigamos dizendo: “Sim ao movimento constante da vida. Não à morte dos movimentos vitais. Sim ao sentimento coletivo de paz e de pertencimento à Terra, esse planeta abençoado pela vida. Não à morte dos direitos fundamentais que asseguram a vida na terra com dignidade. Vamo-nos movimentarmos em rede. Pensar e agir em rede, em comunidade. Fora da rede também e menos, dentro da rede bem mais. Vamos agitar os espíritos em rede! Construir redes e pensar em comunidade!” (Lima, Ray – Nas Malhas da Utopia)
 
 
*Ray Lima – Poeta e ator, assessor pedagógico do Cirandas da Vida, ação estratégica do Sistema Municipal Saúde Escola de Fortaleza.
 
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