Cartilha redes

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Companheiros, aqui mais um ‘nó’ da nossa cartilha-rede:

A “equipe de trabalho” como um outro nó da rede

Beth Barros

Edu passos

 

Então… esse é nosso ponto de partida: para afirmar os princípios do SUS é imprescindível a construção de redes de cooperação que acompanhem a vida humana na sua mais ampla diversidade.

No SUS encontramos muitas experiências onde o “compartilhar” e o “pensar conjuntamente” promovem um ambiente de trabalho mais saudável. Se tratar de saúde é tratar também de nossas relações (em todas as instâncias – trabalhadores, usuários e trabalhadores gestores/diretores/coordenadores/gerentes/secretários – sem que uma seja considerada mais importante que a outra), começamos, assim, por tecer uma rede viva que sustenta nossas ações. Nesse caminhar vamos substituindo o esforço individual de algumas pessoas, que logo, logo desistem por estarem doentes pelo trabalho desgastante, por uma outra forma de trabalho em rede.

É na construção de um coletivo-rede, que podemos pensar a integralidade, a universalidade e equidade nas práticas de saúde. Integralidade porque buscamos uma atenção centrada na rede de atenção, onde está o trabalhador, o usuário, sua família, e,e,e… Universalidade que só se efetiva com o trabalhar como participação nos processos de planejamento e decisão, como criação de dispositivos para co-gerir e criar no trabalho. Equidade que se faz no diálogo/debate/disputas/conflitos de necessidades, desejos, interesses presentes no campo do trabalho. Rede-equipe não é um SPAN lang=PT style=”FONT-SIZE: 11pt; mso-ansi-language: PT”sistema comunicacional típico de um modo de trabalhar técnico-burocrático, verticalizado, mas um sistema de múltiplas conexões, em várias direções, que amplia nossa capacidade de criar e transformar os processos de trabalho, aumentando espaços de negociação entre todos que participam de uma equipe de trabalho e, também, entre as diferentes equipes de trabalho de um serviço.

Sujeitos em rede-equipe alteram o rumo de seu isolamento, de um processo fragmentado, individualizado, marcado pela competição e pela quebra das alianças. Uma rede-equipe se constrói na dimensão concreta das práticas, no que acontece no dia a dia dos estabelecimentos de saúde, que se desdobra numa construção em rede e constitui um mundo comum. O trabalho em equipe, não é, pois, realidade definida a priori.

Outra coisa importante: uma rede-equipe não é uma reunião de indivíduos ou de categorias profissionais, mas um modo de fazer que se afirma como funcionamento em rede, logo, dialógico. É a reticularidade, ou seja, esse funcionar em rede, que nos permite escapar ao que está cristalizado nos mundos do trabalho e que tenta dificultar ou restringir os processos de criação dos trabalhadores da saúde. Assim, esse trabalhar em equipe é a expressão deste coletivo-rede que permite passar da dimensão apenas prescritiva dos processos de trabalho para uma dimensão ampla do agir-criar.  As ações de um coletivo-rede não são da ordem da mera execução nem da simples escolha individual, uma vez que estamos sempre enredados nas normas que dizem de um patrimônio que os trabalhadores da saúde construíram, e continuam construindo, coletivamente ao longo da história.

Cada trabalhador impregna o trabalho de marcas singulares – nas quais circulam afetos, desejos, cognições referendadas nas histórias individuais, – e tomam como eixo valores que se constroem em coletivos. Não se pode, portanto, compreender o ‘trabalho de equipe’ sem procurar conhecer os coletivos-rede em funcionamento nas situações reais.

Mas é bom lembrar: um coletivo-rede não é o mesmo que um conjunto de trabalhadores constituído por categorias sócio-profissionais (como por ex. enfermeiras, médicos, psicólogos, etc.) ou por categorias organizacionais e hierárquicas como esquematizadas num organograma. Eles não pré-existem às ações concretas dos atos de trabalho, eles se configuram de maneiras diferentes a partir de momentos específicos de cada situação experimentada. Logo, uma equipe-rede não se constitui sobre um coletivo pré-definido, seus contornos variam em função do conteúdo e do ritmo da atividade de trabalho, o que existe a priori é uma indeterminação.

Nas equipes-rede as tarefas se distribuem em função de múltiplos critérios. O tempo, o espaço, o objeto de trabalho, a natureza das operações e dos procedimentos a serem realizados, a finalidade das atividades, que são elementos que caracterizam uma situação na qual vários indivíduos atuam. A co-atividade reúne num mesmo espaço, profissionais de diferentes especialidades que perseguem finalidades diferentes; a cooperação supõe que os indivíduos agem em conjunto e na colaboração os indivíduos não realizam as mesmas operações, mas agem com um fim comum.

Nós compomos equipes-rede. Dizemos “nós” porque somos muitos e porque nos conectamos como nós da rede de saúde. E nesta rede quem cuida? Quem gere os processos de trabalho em saúde? Frente à enorme complexidade – e muitas vezes gravidade – dos problemas em saúde, nenhum de nós individualmente, isoladamente, pode assumir a responsabilidade, matar no peito, tomando para si estes problemas. Nós nos co-responsabilizamos: trabalhadores da ponta, gestores/diretores/gerentes/coordenadores e usuários somos os nós desta rede de saúde. Quem cuida e gere a saúde é esta rede.

Em última instância o SUS requer o protagonismo de um sujeito coletivo (um nós, os nós da rede). A equipe é uma primeira expressão da rede: rede de trabalhadores de saúde que formam um corpo comum. Este corpo é comum, embora mantenha nele as diferenças entre as categorias profissionais, entre os saberes, entre as especificidades de posições e funções na equipe.  O comum aqui mantém a diferença. No entanto, a equipe-rede, mais do que manter as diferenças entre nós, forja e força que nós nos diferenciemos. Pertencendo a uma equipe-rede, podemos entrar em contato com o que é diferente entre nós, de tal maneira que algo se passa na fronteira entre um profissional e outro, entre um enfermeiro e um terapeuta ocupacional ou entre um psicólogo e um médico. Algo se passa entre eles que os obriga a saírem de seus lugares de saber e de poder. Na equipe-rede as fronteiras disciplinares são instáveis, móveis. A equipe é de fato uma rede quando experimenta práticas transdisciplinares.  Muitas experiências novas são criadas nas fronteiras móveis entre os profissionais, como quando um médico em parceria com um psicólogo desenvolve a habilidade de trabalhar com grupos de discussão com usuários de determinada medicação; ou quando um enfermeiro com um terapeuta ocupacional cria oficinas com familiares de crianças que vão sofrer cirurgia cardíaca.

A equipe-rede-transdisciplinar, torna as fronteiras disciplinares instáveis, desestabilizando os campos profissionais para que outros modos de trabalhar sejam possíveis. Esse modo de funcionamento rompe com as fronteiras rígidas que marcam, muitas vezes, uma maneira de agir nos estabelecimentos de saúde. Aqui o que se privilegia é a relação entre os diferentes trabalhadores (gerentes, coordenadores, enfermeiros, médicos, e….), o que quer dizer privilegiar as redes. Quando fixamos territórios disciplinares, de forma que os profissionais não conversam, não trocam experiências, funcionando de uma forma hierárquica e burocrática, podemos dificultar a construção de novos arranjos institucionais em saúde que se constituam em coletivos-rede. Esses coletivos têm como objetivo abrir-se para o confronto com outros grupos, inclusive no interior do próprio grupo, como abertura à diferença. Nas unidades de saúde isto se efetiva quando há aumento de comunicação entre os diferentes membros de cada equipe e entre as diferentes equipes.

Portanto, é nas situações de trabalho em ato que podemos apreender a dimensão sempre coletiva do trabalho. E por quê? Porque nela os trabalhadores põem em jogo não apenas o que está prescrito para a execução de uma tarefa, mas, também, um conhecimento já codificado, que foi construído historicamente pelos trabalhadores.  É esse funcionar em rede, que nos permite escapar dos modos autoritários e verticalizados que se instituem nos serviços onde as redes são frágeis.