poema(s) da cabra – João cabral de melo neto

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Nas margens do mediterrãneo
não se vê um palmo de terra
que a terra tivesse esquecido
de fazer converter em pedra.

Nas margens do mediterrâneo
não se vê um palmo de pedra
que a terra tivesse esquecido
de ocupar com a sua fera.

ali onde nenhuma linha
pode lembrar, porque mais doce,
o que até chega a parecer
suave serra de uma foice,

Não se vê um palmo de terra,
por mais pedra ou fera que seja,
que a cabra tenha ocupado
com sua planta fibrosa e negra.

A cabra é negra. Mas seu negro
não é o negro do ébano douto
(que é quase azul) ou o negro do rico
do jacarandá( mais bem roxo).

O negro da cabra é o negro
do preto, do pobre, do pouco.
Negro da poeira, que é cinzento.
Negro da ferrugem, que é fosco.

Negro do feio, as vezes branco.
Ou o negro do pardo, que é pardo
disso que não chega a ter cor
ou perdeu toda no gasto.

É o negro da segunda classe.
Do inferior que é sempre opaco.
Disso que não pode ter cor
porque em negro sai mais barato.

Se o negro quer dizer noturno,
o negro da cabra ee solar.
Não é o da cabra o negro noite.
É o negro de sol. Luminar.

Será o negro do queimado
mais que o negro da escuridão.
Negra é do sol que acumulou.
É o negro mais bem do carvão.

Não é o negro do macabro.
Negro funeral. Nem do luto.
Tampouco é o negro do mistério,
de braços cruzados, eunuco.

É mesmo o negro do carvão.
O negro da hulha. Do coque.
Negro que pode haver na pólvora,
negro de vida, nnao de morte.

O negro da cabra é o negro
da natureza dela cabra.
Mesmo dessa que não é negra,
como a do motoxó, que é clara.

O negro ee o duro que há no fundo
da cabra. De seu natural.
Tal no fundo da terra há pedra,
no fundo da pedra, metal.

O negro é o duro que há no fundo
da natureza sem orvalho
que ee a da cabra, esse animal
sem folhas, só raiz e talo,

que é a da cabra, esse animal
de alma caroço, de alma córnea,
sem moelas, úmidos, lábios,
pão sem miolo, apenas côdea.

Quem já encontrou uma cabra
que tivesse ritmos domésticos?
O grosso derrame do porco,
da vaca, de sono e de tédio?

Quem encontrou cabra que fosse
animal de sociedade?
Tal o cão, o gato, o cavalo,
diletos do homem e da arte?

A cabra guarda todo o arisco,
rebelde, do animal selvagem,
viva demais que é para ser
animal dos de luxo ou pagem.

Viva demais para não ser,
quando colaboracionista,
o reduzido irredutível,
o inconformado conformista.

A cabra é o melhor instrumento
de verrumar a terra magra.
Por dentro da serra e da seca
nada chega onde chega a cabra.

Se a serra é terra,a cabra é pedra.
Se a serra é pedra, é pedernal.
Sua boca é sempre mais dura
que a serra, não importa qual.

A cabra tem o dente frio,
a insolência do que mastiga.
Por isso o homem vive da cabra
mas sempre a vê como inimiga.

Por isso quem vive da cabra
e nnao é capaz do seu braço
desconfia sempre da cabra
diz que tem parte com o diabo.

Não é pelo vício da pedra,
por preferir pedra a folha.
É que a cabra é expulsa do verde
trancada do lado de fora.

A cabra é trancada por dentro.
Condenada a caatinga seca.
Liberta no vasto sem nada,
proibida, na verdura estreita.

Leva no pescoço uma canga
que a impede de furar as cercas.
Leva os muros do próprio cárcere,
prisioneira e carcereira.

Liberdade de fome e sede
da ambulante prisioneira.
Não é que ela busque o difícil,
é que a sabem capaz de pedra.

A vida da cabra não deixa
lazer para ser fina ou lírica
( tal o urubú, que em doces linhas
voa a procura da carniça).

Vive a cabra contra a pendente,
sem os êxtases das descidas.
 Viver para a cabra não é
re-ruminar-se introspectiva.

É , literalmente, cavar
a vida sob a superfície,
que a cabra, proibida das folhas,
tem de desentranhar raízes.

Eis porque é a cabra grosseira,
de mãos ásperas, realista.
Eis por que, mesmo ruminando,
nnao é jamais contemplativa.

Um núcleo de cabra é visível
por debaixo de muitas coisas.
Com a natureza da cabra
outras aprendem sua crosta.

Um núcleo de cabra é visivel
em certos atributos roucos
que têm as coisas obrigadas
a fazer seu corpo couro.

A fazer de seu couro sola,
a armar-se em couraças, escamas
como se dá com certas coisas
e muitas condicões humanas.

Os jumentos são animais
que muito aprenderam da cabra
O nordestino, convivendo-a
fez-se de sua mesma casta.

continua, mas eu preciso parar prá chorar um pouco e descansar…
amanhã eu coloco o resto deste lindo poema…
o