O abraço do mar

12 votos


O abraço do mar

 Aprendi com uma agente de saúde a não seguir apenas os caminhos retos. Com ela, os trajetos têm entradas, atalhos e paisagens diferentes a cada visita domiciliar.
A atenção básica mostra mais nitidamente a sua complexidade quando, ao invés de seguirmos, decidimos dobrar as esquinas adentrando pelo não comum das vias onde cada vida é uma; onde nem sempre há encaixes para protocolos.
Na sala de atendimento à mulher, ao relatarem as situações de violência cada vez mais frequentes vivenciadas na área, os agentes de saúde sugeriram que o tema fosse incluído nas sessões de estudos do grupo.
Naquela tarde, fiquei a rememorar um desses encontros que se dão quando optamos por dobrar a esquina:
Uma noite ficamos sem luz elétrica. Aí passei a noite toda lembrando do meu filho que ficou lá no interior. Quando amanheceu o dia, ele (o novo namorado) disse: hoje vocês vão ver o mar…Lá é pra lá de bonito! Fiquei tão sugestionada de ver aquele marzão que caí no choro… E olha que eu sou muito dura pra chorar. Senti uma coisa dentro de mim que me mandava ficar quieta. Fiquei lá, parada. Meus meninos saíram aos pinotes para dentro da água, eu não! Deitei e fiquei lá na beira até a boca da noite.

Dor e cansaço eram as expressões refletidas naqueles olhos. As rugas no seu rosto desafiavam o tempo e se negavam a reconhecer que foram apenas 30 anos vividos. Juntou dentro da velha bolsa tudo o que podia carregar. Deixou as roupas, a casa, o filho mais velho e os pais, fugindo do homem de quem foi vítima das mais diversas formas de violência durante 15 anos. Os filhos se recolhem ao canto da casa cada vez que chega alguém desconhecido. Os poucos utensílios foram doados pelos vizinhos com quem o banheiro é dividido. À noite, teme que o ex-marido apareça para lhe levar de volta; diz que “medo e ódio nãodeixam ninguém dormir”.
O novo companheiro levou-a para ver o mar e esse foi “o melhor presente que ganhou nessa vida”.
Seus olhos cerraram para as marcas do corpo e se abriram para a imensidão de azuis que fundiam céu e mar. Céu azul fixo, seguro, imóvel; mar azul movimento se despejando em espumas brancas aos seus pés, fazendo promessas e beijando-lhe as feridas que se abriam uma a uma, ávidas por serem tocadas.

Observou a suavidade com a qual o mar ocupava-se em apagar as marcas do seu corpo na areia. Ocorreu-lhe que, talvez, ele pudesse eliminar outras marcas; não aquelas que estavam à mostra, mas as mais doídas, as de dentro, das entranhas, do ventre seco judiado feito o chão rachado do sertão; ventre desassossegado revirando-se em conflitos por ter negado abrigo aos dois que morreram, antes que tivessem a chance de vingar. Escolhera não mais gerar filhos sob a dor. Contudo, ela sabia que, as escolhas, mesmo as certas, podem causar dor.
O vento não trouxe as respostas que buscava “todo santo dia”. Soprou baixinho uma canção e contou-lhe os segredos do tempo. Prometia-lhe um tempo de delicadeza em que seria envolvida por um longo e verdadeiro abraço.
Ali, deitada, acreditou que a água, generosamente, pudesse trazer à pesada pedra silenciada e bruta que carregava no peito, ternura e maciez de delicada areia.
Pedra e mar em abraço entrelaçados provocaram o marejar dos olhos secos; cuidaram de regar ternamente as faces marcadas. Sentiu-se fortalecida, grande, livre, intensa como aquele mar de idas, vindas e recomeços. Tudo o mais ficara infinitamente pequeno.
Invejou o modo como seus meninos juntavam-se aos outros que mal conheciam e já pareciam grandes amigos. Jurou para si mesma que eles teriam vida nova. Juntou-os apressadamente, lançou ao mar um derradeiro olhar, ainda sob o êxtase do olhar primeiro, e acenou para a lua lembrando que a casa estaria no escuro. Em casa, teria que dar um jeito de fazer outro “gato” para ter de volta a luz elétrica.
Saio das verdades da minha imaginação carregando lembranças… Pesam as suas palavras: “estou sangrando por dentro. Não dá para lavar as feridas da alma”.

É preciso pensar nas articulações onde são produzidas as  violências: sociais, culturais, econômicas, políticas. Múltiplas faces se ocultam e resultam nas feridas provenientes dos desequilíbrios entre mercado, Estado e sociedade; feridas da exclusão social, da discriminação racial, da falta de acesso aos bens essenciais, da desigualdade; do modo competitivo e predatório da vida pautado na negação do outro.
Cultivar a paz pressupõe, também, a explicitação do conflito; retirar das feridas as bandagens que as escondem. Colocá-las expostas, inclinar-se sobre elas, conhecê-las, buscar meios de saná-las. Não
acostumar-se às violências institucionalizadas nas escolas, nas prisões, nas famílias.  
Nos serviços de saúde, muitas histórias de violência continuam ignoradas nas filas, caladas nos corredores e silenciadas nos consultórios por mãos que apalpam, examinam, tateiam e invadem corpos à procura de sinais físicos que justifiquem as dores, submetendo quem sofre a maior sofrimento.
Causas que não abraçamos. Violências que reproduzimos.
Aos meus olhos, naquela noite, as ruas tinham luzes demais.