REFLEXOS DA MEMÓRIA – O ESCAMBO QUASE DUAS DÉCADAS DEPOIS

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REFLEXOS DA MEMÓRIA – O ESCAMBO QUASE DUAS DÉCADAS DEPOIS


“Parto
parto como vim –
sem sofisticagem –
de ser que era
para ser que sou;
de um suficientemente
incompleto para outro
sempre será sendo.

……………………………

Parto curvo,

parto reto, nem curvo nem reto,

reparável.

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Parto da vida para a arte

e daí

do que em vida se evidencia.

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Parto

de visões sentidas.

Parto da vida.

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Parto de dentro para fora
(abrasado, lávico);

de fora para dentro
(solvido);

de dentro para dentro
(abismado ou submerso) –


apenas a cabeça
contrasta-se com o mundo,

já foramente, medonho.
(Ray Lima – Lâminas)

O fenômeno sociocultural chamado ESCAMBO POPULAR LIVRE DE RUA é um exemplo claro e vivo da capacidade criativa e de reinvenção do mundo do povo nordestino e brasileiro. Nascido de um levante contra o desprezo à arte e à cultura e em oposição às injustiças praticadas contra a população norterriograndense por parte do então governo massacrante do Sr. José Agripino Maia, hoje senador da República travestido de santo do DEM, o primeiro congresso do Movimento Escambo também se caracterizou como ato de resistência cultural, de defesa e solidariedade á pequenina cidade de Janduís, no polígono das secas no sertão do Rio Grande do Norte que sofria as agruras da estiagem e a perseguição política do governo do Estado por ser dirigida por um prefeito de esquerda. Aquele encontro de artistas e produtores culturais de Janduís e dos principais grupos de teatro daquele Estado, com a participação de representantes de Icapuí-Ce, viria transformar-se em um dos movimentos sócioculturais mais democráticos, participativos e interdependentes do Brasil. Em um país ainda “desigual e desassistido que é o nosso, a primeira constatação importante é que o povo, ao contrário do que sentenciam suas ultrapassadas elites, contra tudo e contra todos, busca, aprecia e produz a boa cultura, sempre que pode ou que a oportunidade lhe é oferecida. O povo está presente nos grandes shows de música clássica, do Aquarius às comemorações da Revolução Francesa. O povo enche a Biblioteca Pública do Estado, dando preferência espontânea aos filmes mais sofisticados como Macunaíma e o Nome da Rosa, curiosamente baseados em dois dos mais eruditos pensadores contemporâneos: Mário de Andrade e Umberto Eco. O povo, em estado de absoluta escassez, e em resposta a ela inventou duas grandes contribuições brasileiras à cultura universal: a feijoada e as escolas de samba. Quem está em crise, portanto, não é o povo. São as elites. Elites econômicas e políticas.
Temos insistido sempre que, tendo em vista a gravidade da crise, cabe à cultura ajudar a combalida Educação a integrar as massas ao processo de construção da sociedade dando-lhe motivação e estímulo para aprender mais e melhor. O povo não deve ser apenas mero “consumidor de informações” precariamente fornecidas pelas escolas. Deve ser tratado como protagonista de um processo de aperfeiçoamento humano que garante a plena cidadania, com a ajuda e participação de seus velhos amigos: os intelectuais e artistas.
Foi este aparente milagre que ocorreu em Janduís, 8.000 habitantes,( …) em pleno interior do Rio Grande do Norte. Os jovens, orientados pelo ator Ray Lima, formaram um grupo teatral e integraram-se à sua comunidade e à vida. Através de textos de Brecht, Drummond e João Cabral reconciliaram-se com a escola . Escrevem versos. Toda a cidade participa, lendo os murais informativos que eles mesmos preparam, assistindo aos espetáculos em uma cidade onde não há cinema. Depois do choque inicial, as mães tranquilas veem seus filhos “ocupados com atividades produtivas”. O caso de Janduís é de importância exemplar para o entendimento do papel que a Cultura pode apresentar para sair da crise. Não somos um país ortodoxo. Encontramos atalhos e soluções originais.”
( Camargo, Aspásia. Viva O povo brasileiro! – PASQUIM – ANO XXI – nº 1039 – Rio, 26/04/90)

Foi nesse contexto que nasceu e partindo das próprias adversidades por que continuam passando os artistas populares, seus grupos e as populações dos lugares de origem, o Movimento Escambo extrai a substância de seus atos vitais, desde 1991, encarando e assumindo o desafio de colocar a arte e a cultura como necessidade de primeira grandeza (cultura como um conjunto de práticas e funções universais, inadiáveis, inerentes ao ser humano, e por isso mesmo presentes de maneira organizada em todas as sociedades, até a mais primitiva de que se tem notícia. Fora da cultura, como nos revelou Levi Strauss, só resta a Natureza, ou a animalidade pura e simples, que anula a criatividade intrínseca ao homem em benefício exclusivo dos instintos. Camargo- idem) para as juventudes e populações inteiras do sertão ao litoral do nordeste do Brasil, país em que ainda para a grande maioria da população a fome e a exigência por melhores condições de vida como o direito à moradia, à saúde, à educação, à cultura e ao trabalho falam mais alto. Esta pauta é transversalizada por temas de igual importância como: liberdade, autonomia, cidadania, emancipação, autodeterminação dos indivíduos e dos povos, entre outros. O direito à vida – de humanos e não humanos -, o tema ambiental e da sustentabilidade também perpassam as lutas e preocupações políticas e estéticas do movimento desde sua nascença. Ou seja, a matéria prima que dá origem aos espetáculos, às produções artísticas e às intervenções dos que fazem o Escambo vem da história de vida dos próprios artistas, das condições objetivas e subjetivas que incorporam da história de luta e resistência de seus lugares, de suas organizações e territórios vividos, pensados e repensados, tendo como perspectiva a reinvenção de seus mundos em particular e do mundo em sua plenitude universal.

De Janduís fica-nos a impressão de que hoje o Escambo está renovado com a participação que lhe é peculiar dos jovens. Esta renovação se dá também pelo acolhimento constante de novos atores (grupos e artistas de diversas vertentes e gostos estéticos, linguagens e práticas – ligados ou não a movimentos sociais, comunitários, políticos, públicos e não públicos). Com isso, a diversidade toma conta dos processos de criação e alimenta a pluralidade de linguagens e expressões capaz de encantar os que creem na liberdade criativa e assustar (ou no mínimo impacientar) os que gostariam de ver o que está posto e determinado há séculos pelos cânones estéticos consagrados pelas elites ocidentais globalizados e pela máquina de reprodução de fetiches que dão sustentabilidade à cultura de consumo capitalista. “Aqui produzimos indagações, buscamos respostas, propomos e encaminhamos soluções para algumas dos milhares de dificuldades que a arte (e a vida em sociedade) nos oferece… Sabemos que não responderemos todas as perguntas hoje e, com certeza, jamais responderemos à totalidade das dúvidas que temos a respeito da arte (e da vida)”.* Por isso é fundamental que estejamos vivendo intensa e verdadeiramente a arte que fazemos e ao buscarmos refletir sobre ela transformarmos para melhor o nosso fazer, o nosso viver e o mundo em que vivemos.

Claro está que aos escambistas não basta a elaboração de sua arte para obter como produto meramente a reprodução de suas histórias de vida e de seus lugares. É preciso recriá-las e melhorá-las dando-lhes sentido novo. Para tanto, como diz o teatropedagogo e ator, Hélio Júnior, talvez seja fundamental sistematizar toda essa produção de ideias e práticas do movimento. Acrescenta ele que: “o exercício da organização torna-se essencial para produzirmos” mais e melhor, na medida em que “arte do Escambo é arte de grupos”, produzida coletivamente. E como “somos nós que planejamos e definimos seus processos metodológicos, devemos estar sempre atentos com tais procedimentos, pois temos imensa facilidade de dispersão, tanto no interior dos grupos quanto nos encontros. Isso tem sido uma barreira que nos impede de avançarmos nesse sentido.” ** É mister, portanto, mais estudo, mais pesquisa, mais exercício por meio de escambitos (pequenos escambos regionais) desse pensamento e processos elaborativos no interior mesmo das práticas cotidianas num esforço para uma ousadia de construção teórico-estética permanente, talvez retomando iniciativas e experiências de alguns congressos em que estas questões foram vivenciadas com grande produtividade, quantitativa e quanlitativamente. Lembramos aqui os escambitos porque sentimos que muitos grupos interessados nisso não estão encontrando o tempo necessário nos congressos para aprofundar alguns temas de grande relevância e interesse para o aperfeiçoamento de sua(s) arte(s). Para se ter uma ideia da importância dos escambitos na primeira fase da história do Escambo, apenas no intervalo entre maio de 1991 e agosto do mesmo ano foram realizados sete escambitos. Dá para imaginar a mobilização dos grupos e o compromisso com a qualidade de suas práticas e dos congressos. A conseqüência disto é que os grupos chegavam ao encontro maior do movimento trazendo muitas ideias, reflexões, proposições, indagações e inquietações procedentes e producentes.

Apesar de minha presença meteórica, sacrificada por diversas razões que não cabe aqui explicitar, saímos de Janduís com a convicção de que do ponto de vista político a gestão do Escambo não pode ser reduzida à gestão da realização dos congressos. O movimento tem provado ao longo do tempo que é interdependente, viável e se fortalece sempre que cada ator e atriz contribuem com aquilo que tem ou está ao seu alcance fazer de melhor durante os congressos, mas principalmente no dia a dia dos seus grupos em suas cidades. Quando assume o desafio da autogestão (quando chega ao menos a algo parecido à co-gestão dos processos grupais). O Escambo continua sendo, como diria Paulo Freire, um lugar de produção de inéditos viáveis, mas para que isso seja verdade verdadeira é necessário fazermos algumas reflexões muito mais profundas que nos levem além da reflexão, ou seja, a uma práxis coletiva. É sempre bom contextualizar o que fazemos e nos situarmos criticamente dentro desse contexto para maior compreensão do nosso papel como artista e ser humano.

“É IMPRESCINDÍVEL E INEVITÁVEL QUE SEJAMOS FILÓSOFOS.

É preciso aprender a semear com a máquina do tempo.
É vital, mais que vital, inventar:
vida e verdades; sonhos e realidades;
razão com alegria bailando
sobre o espelho das águas perenes.

Ainda esperamos, coitados, as chuvas do céu,
quando deveríamos fazer chover no chão de caos e ilusão;
umedecer as pedras, fazendo-as verter poesia;
transformar em vida a energia do sol em desperdício
que hoje nos flagela e definha.

A fome, indústria cega e daninha, há de ser
o instrumento maior de transformação, tinta e pincel,
a reflexão, o painel sobre a eterna falta.

Sobre a miséria a ação, o desenlace sem queda.
A inteligência carcomida pela força da moeda
será o túmulo dos canibais de consciência.

É imprescindível e inevitável que sejamos filósofos.
Filósofos de nós mesmos.
Criadores e semeadores da nossa própria filosofia.
Recriadores confessos do nosso rosto.
Decoradores do espaço reservado à nossa causa.
Defensores incessantes do grito de liberdade,
do motivo do nosso choro, da grife do nosso riso.

Precisamos estar sempre dispostos a corrigir nossos costumes;
a mergulhar no abissal dos nossos valores culturais
para que venhamos a festejar nossa vanguarda
e celebrar a estética do brilho estelar da nossa alma.

A estiagem haverá de ser o nosso eterno objeto de estudo
e a resistência nosso princípio nossa viagem.

É neste sentido que o Escambo tem-nos permitido pensar não apenas o teatro (e a arte em geral) enquanto arte teatral, como também a arte de viver produzindo cultura numa região (e em um mundo) que não conseguiu sequer superar a escassez de água e alimento, e doenças como a tuberculose, a dengue e a febre amarela. A fome, a sede e a cultura são corpos de estudo obrigatórios e fundamentais – para além dos escambistas, para quem pensa e pratica arte no Nordeste, no Brasil, na Índia ou na África. Sem nenhum exagero, o Escambo é o mais autêntico movimento artístico-cultural do Brasil.

Assim, só pelo fato de existir, o Escambo incomoda pela forma (Desde o princípio mantém uma forma, ainda precoce, anárquica. Sem dono, sem dirigentes tendo, porém, o cuidado de ser organizado e não burocrático – Júnio Santos. Escambiose – Ano I, nº 09) muitos escambistas; enche os olhos dos espectadores pelo brilho da festa e perturba os que não creem na loucura da criação.”****

Como bem diz Penha Casado, referindo-se ao congresso do primeiro Escambo: “não só a festa dos espetáculos marca esse momento histórico… Além disso, montamos um espetáculo maior de resistência quando paramos para discutir e trocar experiências sobre o nosso fazer teatral que sobrepuja as dificuldades, as situações de angústia e miséria do povo brasileiro e nos leva de volta à rua para divertir, fazer a festa, denunciar e ESCAMBAL. Nesse convívio estreitamos as relações, dividimos (e compartilhamos) nossos erros, trocamos acertos e dizemos a deixa que levará o espetáculo adiante. E de tudo isso que vivemos em Janduís resta a constatação de que não conseguimos fechar este quadro e que a cena ficará aberta para o próximo Escambo.”*****

Assim, creio que chegou a hora de chamar o Júnio Santos para gritar: Queremos que o azul do céu possa contemplar as ruas agitadas e poluídas de artistas. Que o azul do céu compartilhe conosco desta ceia maravilhosa e vitalizante.
É preciso que todos os cantos desta terra saibam que acreditamos ser possível transformar a rua numa roda e a roda num palco, onde a vida e a arte se confundam, manifestadas plenamente nas expressões dos artistas. É preciso que… saibam que também somos pássaros querendo voo no ar e mergulho no mar da cultura para libertar nosso povo de um tal Não Sou Nada, Não Sei Nada.
Se não somos nada, não sabemos nada, estamos aquém da memória, da história, do ser. Cabe a nós artistas aprofundarmos essas questões e buscar a organização do nosso espaço a fim de produzir mais arte (de qualidade), criar e recriar. Sem isso, nosso trabalho (e nosso existir) será sempre tido como brincadeira de desocupados.”******

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Parto.
Parto não mais
daquele parto.
Parto
não mais como vim.

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Parto do que vi e não vi,
do que fui e não fui;
do que pude e não pude,
do li e não li;
do que preciso conhecer para ser.

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Parto do topo da arte –
desta razão de ser
(de algum começo com nenhum,
ou talvez algum fim).”
(Ray Lima – Lâminas)

MARANGUAPE, 30 DE MARÇO DE 2009.

* Lima, Ray. Editorial Escambiose – II Escambo. Carnaúba dos Dantas-RN – 31 de agosto de 1991.
** Júnior, Hélio. Editorial Exibiuse – III Escambo. Icapuí-Ce – 17 de janeiro de 1992.
**** Lima, Ray. Impossível Realizável. O Pão. Fortaleza-CE, 24 de Dezembro/1992.
***** Casado, Penha. Editorial Escambiose – I Escambo. Janduís-RN, 03 de Maio de 1991.
******Santos, Júnio. Editorial Escambiose nº 18 – Icapuí, 31 e Maio de 1992.