A década perdida do ressarcimento do SUS

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Elio Gaspari*

Se ninguém atrapalhar, encerrase nas próximas semanas o capítulo da incapacidade do governo de cobrar às operadoras privadas de saúde o ressarcimento pelo atendimento hospitalar de seus clientes na rede pública do SUS. O Ministério da Saúde e a Agência Nacional de Saúde Suplementar acreditam que um novo sistema unificado de informações cruzará cadastros e recolherá dados de forma a evitar burlas e garantir os pagamentos. Tomara que estejam certos.

A lei que determina o ressarcimento ao SUS completou dez anos e foi habilmente driblada. A astúcia das operadoras, associada a um sistema inepto, burocratizado na base e autoritário na cúpula, gerou uma situação na qual todos gritam e a Viúva não recebe o que lhe é devido.

De cada R$ 10 cobrados, o SUS só recebe R$ 2. Conseguiu-se a proeza do emagrecimento da receita. Em 2006 a ANS recebeu R$ 12, 6 milhões. Em 2008 essa cifra foi para R$ 2, 6 milhões. Segundo o Tribunal de Contas, entre 2003 e 2007 o SUS deixou de receber R$ 2, 6 bilhões.

Evidentemente, tanta inépcia ao longo de tanto tempo não ocorre por fatalidade. De um lado ficaram as operadoras, que não querem pagar. De outro o governo legislando de Brasília como se estivesse na Suécia.

Aconteceram casos em que um José tinha plano de saúde em Ribeirão Preto e aparecia operado em Belém. A operadora tinha que provar que o José de cá não era o José de lá. Em outros exemplos, o cidadão informava no hospital que tinha um plano de saúde, mas a operadora era obrigada a provar que aquele plano não cobria o procedimento a que ele foi submetido.

Fala-se muito das relações promíscuas de servidores públicos com empresários a quem vendem facilidades. Um capítulo menos observado é o do fabricante de dificuldades. O sujeito tem que levar uma pedra do ponto A para o ponto B, mas constrói a teoria de que isso só poderá ser feito depois de concluída a reforma agrária. (Ele se remunera com uma mistura de mística e ócio). Os empresários espertos adoram legislações draconianas, pois sabem que dão em nada.

Sem o ressarcimento, as operadoras de planos de saúde vivem
próximas do paraíso. Recebem dos clientes enquanto eles têm saúde e, quando a doença os leva para um procedimento do SUS, espetam a conta na Viúva.

Num exemplo banal, nenhum plano de saúde reembolsa regularmente o SUS pelo atendimento de seus clientes nas unidades de emergência dos prontos-socorros.

Desde dezembro está em vigor uma Resolução Normativa da ANS que poderá encerrar a década perdida do ressarcimento. Ela pretende cruzar as informações da rede do SUS com o cadastro das operadoras.

Nada mais racional. Contudo, dois detalhes despertam a suspeita da megalomania burocrática. Depois de informada de que seu freguês foi atendido no SUS, a operadora tem quinze dias para pagar a conta ou para impugná-la. 

Parece pouco. A resolução determina que tudo deve ser feito depressa, até que se chega ao parágrafo 3º do artigo 16: "Não será considerada indisponibilidade a lentidão no funcionamento do sistema de processo eletrônico da ANS em horários de pico de utilização".

Se o espírito desse pequeno texto orientar a conduta da ANS, as operadoras ficarão na sombra por mais dez anos.
 

 

*ELIO GASPARI é jornalista.

 

 

(Fonte: O Globo, 22/04/2009)