Isonomia, equidade e qualidade de vida na saúde: A desigualdade e o risco para os pacientes.
O SUS universal, integral e equânime é um direito de todos. Um direito que o cidadão paga ao recolher o imposto sobre a renda e sobre o consumo.
Como estes impostos servem para custear o Estado de bem estar e proteção social previsto na constituição de 1988, a sociedade precisa democraticamente distribuir o conjunto dos impostos de acordo com prioridades e hierarquias de necessidades básicas humanas.
Todos concordamos que o investimento em saúde no Brasil deve aumentar até o nível de países desenvolvidos. Mesmo os EUA (que excluem cerca de 50 milhões de pessoas de qualquer forma de proteção à saúde) investem muito mais que o Brasil que tem um sistema universal para cerca de 200 milhões de habitantes.
O investimento em saúde determina a qualidade e a segurança com que a atenção em saúde é prestada. Tanto para usuários, pacientes como para trabalhadores.
Em torno do leito de um doente circulam inúmeros profissionais da equipe interdisciplinar. A segurança do paciente depende das condições de trabalho oferecidas a estes trabalhadores.
Hoje o médico recém formado pretende, segundo o SIMERS, ganhar 9 mil reais por mês para atender 4 horas diárias em um posto da ESF ou 20 mil reais para atender 8 horas diárias. Este é o básico para formação médica. Todos os demais ramos e especialidades da medicina, bem como o tempo de serviço, estabelecem um acréscimo significativo a esse valor: 120 mil reais por ano para 20 horas semanais ou no mínimo para 280.000 reais por ano para 40 horas semanais na atenção básica.
Daí concluímos que um médico especialista vai estar ganhando meio milhão de reais por ano em meados de sua carreira na saúde pública. Acumulando vencimentos com mais algumas horas que pode fazer na iniciativa privada, temos um padrão de renda superior ao do primeiro mundo parta as pretensões de renda dos médicos que estão entrando agora no mercado de acordo com suas lideranças sindicais.
Pois bem, retornemos ao entorno da cama daquele doente. O médico vem pela manhã, examina o paciente e o prontuário abastecido das informações dos demais profissionais da equipe de enfermagem que passaram as últimas 24 horas ao lado do paciente e prescreve ou suspende procedimentos. Depois ele sai do hospital, vai dar aulas, para seu consultório particular, para um posto da atenção básica…
O dia segue com o trabalho dos demais membros da equipe interdisciplinar, fisioterapeutas, terapeutas, assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros, nutricionistas e os diversos técnicos de todas estas profissões. Bem, talvez a média do menor salário destes profissionais seja de cerca 13 mil reais por ano para uma jornada de 36 a 40 horas semanais, sendo bastante otimista. Há casos de instituições no interior do Estado que pagam pouco mais que o salário mínimo nacional aos Técnicos em Enfermagem.
Lembremos que o princípio do SUS da Equidade só pode ser efetivado se o sistema for organizado hierarquicamente de forma racional. Os erros de membros da equipe de enfermagem se devem em grande parte, assim como os dos médicos também, ao fato de a jornada de trabalho ser duplicada ou até triplicada.
No caso dos Técnicos de Enfermagem isso significa elevar a média da renda para 26 mil reais por ano. No caso do médico, para 560 mil reais de acordo com o que reivindica que seja o valor de mercado do trabalho médico. Ou seja, o que os médicos dizem ser a renda necessária para vinculá-los a saúde básica pública. Significando que o mercado de convênio paga algo um pouco menos ou que para atender os pobres os médicos querem um incremento em sua renda.
Notemos o fato surreal de que os médicos reivindicam para eles uma carreira de Estado nos moldes dos Juízes. Como a relação entre magistrados e população nos países desenvolvidos oscila em torno de um Juiz para cada 30 mil habitantes, podemos ir vendo que o investimento em saúde deve mesmo crescer muito no Brasil.
Vejamos: O SUS territorializa a atenção básica de acordo com o número de famílias residentes em uma dada região ou bairro da cidade, de modo que Porto Alegre precisa em torno de 300 Equipes de Saúde da Família. Este é o necessário para dar conta de nossa demanda de promoção e manutenção da qualidade de vida da população apenas na atenção básica.
Um caminho é formarmos mais médicos. Contornarmos a atual reserva de mercado. Mas a expectativa de padrão de renda deve evoluir até o nível da igualdade e isonomia entre as profissões da área da saúde. O investimento global na saúde e no trabalho médico deve estar sintonizado com o valor que a sociedade dá a vida e aos cuidados com saúde.
Então, a atual situação de triangulação de interesses entre as entidades corporativas, sindicatos e conselhos de medicina, com os centros de formação acadêmica e residência médica deverá ser quebrada. Sobre os interesses e as reivindicações dessas corporações deve prevalecer o interesse público. O status social para os médicos similar aos do século XIX e XX, simplesmente não é mais realista.
A remuneração dos trabalhadores da saúde das demais profissões e especialmente para os trabalhadores de nível médico é ridícula. Põe a saúde dos usuários em sério risco, tanto no SUS quanto no sistema complementar de saúde.
Os índices de sofrimento psíquico e consumo de drogas lícitas e ilícitas entre os profissionais médicos e das outras profissões é alarmante. A sobrevida pós aposentadoria é preocupantemente curta. O índice de afastamento do trabalho e aposentadoria por invalidez é alarmante e passa a transformar o investimento em saúde em mero custo.
A sociedade precisa refletir, os gestores federais, estaduais e municipais, o legislativo, os conselhos de saúde, as universidades, a imprensa e a grande mídia devem urgentemente colocar o financiamento do SUS na agenda política do país.
Se um retrocesso ou desaceleração do desenvolvimento ocorrer em nosso país nos próximos anos veremos uma possível “argentinização” do Brasil. Um processo de desintegração, empobrecimento, retração das classes médias e dissolução da coesão social que já dura mais de 20 anos.
Por Marco Pires
Podemos assumir que a sociedade precisa mais de professores de educação física e de ioga do que de médicos. Como um corvo que voa em círculos até que as condições ideais para se alimentar se estabeleçam, o médico parece simplesmente esperar e observar.
A saúde é o resultado de um modo de vida rarefeito para a respiração de profissionais que parecem depender do sofrimento alheio para respirarem adequadamente. Ivan Illich parece ter percebido esta situação de iatrogenia (doença causada pelo "cuidado" ou "tratamento") ainda nos anos 70.
Uma sociedade que produz a demanda para satisfazer a necessidade de consumo inesgotável, parece estar mercantilizando o sofrimento para transformar a cura num produto. Este produto teve sua demanda fabricada em P&D academicamente sancionada para tornar os corpos humanos mananciais de investimento em busca de lucro insaciável.
Zygmunt Bauman recentemente refletiu sobre este caráter da intervenção estética e reparadora que depende da produção de rótulos de anormalidade para acessar o mercado de corpos intocados. Como já escrevi, o desprestigio do médico generalista, que trabalha integrado as equipes interdisciplinares na atenção básica é um sintoma desta (hiper)valorizarão da medicina estética.
O curioso é que o aquecimento desse mercado seja um dos fatores que inflacione a expectativa de renda dos médicos generalistas e pediatras. Mas aí o fenômeno adquire um aspecto cultural e antropológico mais denso e profundo.
Uma vez que, acredito, nenhum poder localizado, mesmo na potente corporação médica e da indústria de insumos de saúde pode produzir este tipo de valores. Aqui é a própria forma de socialização que emerge como inimiga da saúde e da vida.