O choque de ordem e a ordem de choque
Há poucos dias, ganhou publicidade a parceria entre o Governo Federal e o Governo do Estado do Rio de Janeiro para disponibilização de spray de pimenta e armas de choque (taser) no trato com usuários de crack. A iniciativa não está restrita ao Rio de Janeiro, e tem por objetivo a diminuição da letalidade decorrente de ações policiais em todo o Brasil. Não há nenhuma relação direta entre a disponibilização destas armas e o controle do uso de crack, mas é curioso que a chegada destas armas aos estados seja acompanhada de notícias sobre seu uso contra usuários de crack.
No caso específico da cidade do Rio de Janeiro, o anúncio do emprego de spray de pimenta e de tasers contra usuários de crack dá-se em um contexto em que o vazio assistencial, expresso na ausência de serviços de Saúde e Assistência Social em quantidade adequada à população carioca, articula-se a medidas de exceção, como o recolhimento compulsório de usuários de crack em situação de rua. Medidas que mal conseguem mascarar suas intenções higienistas, articuladas aos interesses do grande capital imobiliário.
Em outubro, a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, com apoio da Força Nacional, organizou uma “ação integrada” em regiões com intenso uso de crack, situadas em Manguinhos e Jacarezinho. Como resultado destas ações, houve uma diáspora dos frequentadores daquelas regiões para outros pontos da cidade. Desde então, os meios de comunicação têm divulgado diversas imagens destes grupos de usuários de crack em situações de risco, especialmente junto a avenidas com intenso tráfego de veículos. Comenta-se a respeito do risco de vida a que estão sujeitas estas pessoas, mas nada se comenta de que foi justamente uma ação desastrada que tornou sua condição ainda pior e mais perigosa do que já estava.
A não letalidade de armas de choque vem sendo publicamente questionada, no Brasil e no exterior. Veem ganhando destaque na imprensa a morte de pessoas atingidas por tasers. Além disto, não deixa de ser uma perversa ironia, a proposta de utilização de um dispositivo que em muito se assemelha a um revólver (possui coronha, gatilho e um arremedo de cano), mas que dispara choques elétricos ao invés de projéteis. Irônico, porque de algum modo denuncia o lugar reservado ao usuário de drogas (especialmente o crack) na sociedade brasileira contemporânea: o lugar do bandido, contra quem se exige o uso de armas; o lugar do louco, e porque não dizer, do subversivo, contra quem o choque foi tantas vezes “receitado”.
Não resta dúvida de que a sociedade carioca e brasileira exige que o Estado construa políticas capazes de ajudar a pessoas e famílias em situações de risco e vulnerabilidade social associadas ao uso de álcool e outras drogas. Nisto estamos todos juntos. Com o que não podemos concordar, é com a ideia de que o respeito aos direitos humanos atrapalha a realização de um trabalho efetivo e eficiente com usuários de drogas. Antes o contrário: quanto mais uma política pública se pautar pelo respeito aos direitos humanos, maior será sua contribuição para a melhoria da qualidade de vida da população.
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Loucos, presos políticos e agora os usuários de crack…