Resenhando & Repensando: Abraço Afetuoso em Corpo Sofrido, de Giulio Vicini
“O que é doença?
Poderíamos responder a essa pergunta dizendo que doença é o que nós representamos que ela seja. Assim, se para nós doença é uma possessão diabólica, então ela é isso. Se achamos que é uma invasão de microorganismos patógenos em nosso corpo, então doença é isso. Se pensamos que é algo que nos afeta negativamente, pois nos faz sofrer, e é fruto de uma punição por alguma ação imprópria que possamos ter cometido (comer desregradamente, por exemplo), então doença é isso. Mas, se julgarmos que doença é algo que nos revela um desequilíbrio interior e que nos chama a uma mudança de vida para que alcancemos um novo equilíbrio superior, então doença será isso”.
Giulio Vicini
Tive o grande prazer de ler Abraço Afetuoso em Corpo Sofrido, obra do psicólogo Giulio Vicini, resultado de um estudo realizado com idosos socialmente ativos na cidade de São Paulo. Felizmente, Vicini nos leva muito além de resultados interessantes, que demonstram a importância de uma abordagem integral e transdisciplinar. O autor acrescenta à sua pesquisa elementos paradigmáticos sobre a saúde humana, revendo conceitos e abordagens, dialogando com pensamentos inovadores, transmutando a nossa forma de enxergar o corpo e o ser que o habita.
Um de seus méritos é o cuidado em abordar o conceito de saúde e doença. Sabemos que a essência de toda a ciência é compreender bem o seu objeto, algo que os estudos da área sanitária costumam passar distante. Vicini, pelo contrário, vai fundo nesse quesito, demonstrando a subjetividade que o envolve. Mais do que uma definição científica, o conceito de saúde é construído socialmente, segundo as crenças e expectativas das pessoas (como vemos no trecho acima), perpassando ainda pelos aspectos culturais, econômicos e políticos de determinado tempo, de determinada região.
Outra grande conquista do livro é a abordagem sobre as “insuficiências da ciência” tradicional, cartesiana, incapaz de solucionar substancialmente os nossos problemas. Somos apresentados ao paradigma holístico, uma forma de conhecer os objetos e seus fenômenos de maneira mais sistêmica, interligando as partes com o todo, e o todo com as partes, sem os reducionismos costumeiros dos cientistas corriqueiros. Quando aplicado à saúde humana, o paradigma holístico constrói modelos de intervenção que tomam por base o equilíbrio físico, psíquico, social, espiritual e ecológico do organismo. Ocorre, com isso, a interessante união entre efetividade e afetividade, questão das mais caras na opinião de todos que tentam aplicar no seu dia a dia os princípios da Política Nacional de Humanização (PNH). Aliás, sabemos que as práticas de humanização não se fixam apenas na dignificação dos modelos assistenciais, voltando-se também para a otimização de resultados.
Fica a dica:
Abraço Afetuoso em Corpo Sofrido: saúde integral para idosos / Giulio Vicini. São Paulo : Editora SENAC São Paulo, 2002.
Trechos disponíveis em: https://books.google.com.br/books/about/Abraco_Afetuoso_Em_Corpo_Sofrido.html?id=Q72LcCq0svIC&redir_esc=y
Boa leitura!
Raoni Rodrigues
Fisioterapeuta (Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública), Especialista em Saúde Pública, Acadêmico de Direito, Estatutário pela SESAB (Secretaria de Saúde do Estado da Bahia), consultor de projetos para o Terceiro Setor.
Tags: construção social do conceito de saúde; educação em saúde; epistemologia; humanização.
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Você traz uma boa discussão prá rede, Raoni.
O que me faz lembrar de um livro maravilhoso: "O Normal e o Patológico", de Georges Canguilhém, leitura fundamental para qualquer trabalhador de saúde que a pense a partir de outros paradigmas, como você.
No artigo de Wladimir Safatle:
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1678-31662011000100002&script=sci_arttext
também há um outro modo de ver a questão da saúde e doença.
E Foucault nos diz:"Desde o século XVIII, a medicina tem tendência a narrar sua própria história como se o leito dos doentes tivesse sido sempre um lugar de experiências, constante e estável, em oposição às teorias e sistemas que teriam estado em permanente mudança e mascarado, sob sua especulação, a pureza da evidência clínica. [Na verdade, tudo se passaria como se:] Na aurora da Humanidade, antes de toda crença vã, antes de todo sistema, a medicina residisse em uma relação imediata do sofrimento com aquilo que alivia (Foucault, 2005, p. 53)."