A Política de álcool e drogas em Campinas: Recomeço ou Retrocesso?
Essa semana, Campinas passou a ser a segunda cidade do estado de São Paulo a incorporar o programa Recomeço promovido pelo governo do Estado de São Paulo. O Programa inclui o conjunto de medidas propostas pelo estado paulista no “combate ao uso de crack e outras drogas”.
A notícia foi recebida com tristeza e revolta pela a maioria dos trabalhadores do SUS do município, especialmente entre aqueles que militam pela Reforma Psiquiátrica e pelos direitos humanos . Ao inaugurar o CRATOD no município, o governador foi surpreendido com vaias, cartazes e gritos de repúdio à medida apoiada pelo governo municipal. Essa inauguração se dar em Campinas, uma cidade nacionalmente reconhecida por seu pioneirismo nas ações da Reforma Psiquiátrica, preocupa a todos nós.
No sentido oposto, os grupos mais conservadores acusam a militância da Reforma Psiquiátrica por serem movidos puramente por uma ideologia “cega” que não dialoga com as reais necessidades da população.
Não há como negar que o os dualismos criados na história da saúde mental brasileira dão margens para esse tipo de acusação. Refiro-me a dualismos que criam noções morais como se houvessem medidas “do bem” contra medidas “do mal”: Abstinência X Redução de Danos, biomedicina X atenção psicossocial; modelo médico centrado X antipsiquiatria; tratamento fechado X comunitário… Noções como essa, fazem com que uma determinada ação terapêutica seja analisada de acordo com rótulos e estigmas previamente construídos e não de acordo com as reais possibilidades que ela possa vir a agenciar na vida do sujeito em sofrimento psíquico.
Não tenho dúvidas que essas concepções duais, agenciam modos singulares de cuidado e que é natural que os profissionais se identifiquem mais com determinadas práticas do que outras, de acordo com sua ética e visão de mundo. O problema é quando uma determinada visão de mundo nos faz acreditar que é a única visão possível. Neste sentido, é que eu gostaria de enfatizar, o que queremos negar ao vaiar uma política autoritária como essa. Autoritária para uma determinada visão de mundo da qual eu compartilho.
Para muitos, o que se nega é a possibilidade das famílias e pessoas em uso problemático de drogas terem acesso à internação. Para mim, o que se nega é um modelo de atenção centralizado na internação ou uma crença na efetividade clínica de uma internação como ato isolado. Não se trata de uma porta aberta para o SUS e para a rede, mas uma porta para as internações (voluntárias, involuntárias ou compulsórias). Apostamos em portas abertas para um cuidado, a um só tempo comprometido com a saúde de sujeitos e coletivos, mas também com a ampliação de seu coeficiente de liberdade, de autonomia e cidadania.
Ao se defender, aqueles que “combatem o crack” dizem que a saúde não é capaz de cuidar disso sozinha, e por isso a presença de promotores e juízes em um serviço assistencial. Nós não negamos a intersetorialidade e não temos a pretensão de que a resposta é isoladamente do setor saúde, ao contrário, apostamos em medidas integradas de diferentes setores, tendo como eixo central a vida e o respeito a autonomia do usuário. Negamos a judicialização da saúde, a perda de autonomia de usuários sobre o protagonismo de sua vida, negamos que uma medida para casos extremos e escassos seja incorporada como uma política cotidiana.
Em relação às internações, negamos a sua compulsoriedade e suas indicações indiscriminadas sem uma contrapartida de estruturação da rede de leitos em hospitais gerais, negamos sua desconexão com o SUS que queremos. Está claro que a criação de uma onda de internações irá congestionar leitos que poderiam estar sendo utilizados em casos de reais necessidades e que esse congestionamento e falta de leitos mostrará uma aparente “insuficiência” do SUS e das vagas em hospitais gerais, dando uma também aparente “legitimação” ao uso das Comunidades Terapêuticas e hospitais psiquiátricos.
Não negamos a possibilidade de pessoas quererem se cuidar em Comunidades Terapêuticas sérias e comprometidas com a vida, não negamos que a sociedade civil poder ter essa alternativa como uma possibilidade e não apenas as alternativas que o SUS tem a oferecer. Negamos o fato de as Comunidades Terapêuticas serem incoerentemente financiadas pelo SUS (Uma política pública, de um estado laico, que ainda não investiu suficientemente nos dispositivos que a própria Reforma Psiquiátrica e a rede de saúde tem a oferecer: Caps-III, Caps AD, Consultórios na rua, leitos em Hospitais gerais, CECOs, Casas de passagem…)
Não negamos a necessidade de intervirmos responsavelmente na complexidade do fenômeno de uso problemático de drogas, negamos a redução de respostas higienicistas e policialescas, negamos a discriminação de pessoas em uso de drogas ilícitas, quando somos o segundo maior país prescritor de Ritalina (uma droga) para crianças no mundo. Negamos à redução de pessoas à um diagnóstico ou à relação com uma determinada droga.
Não negamos o problema do consumo abusivo de crack, negamos a falsa ideia de que ao impedirmos determinadas populações de ter em acesso à drogas estaremos dando para ela sua suposta salvação. Essa talvez seja a única condição, em que esse sujeito sinta-se pertencente à sociedade do consumo. Ser consumidor de algo e sentir-se pertencente ao mundo real. O acesso à cultura, à educação, ao trabalho e ao lazer, com ou sem a presença da droga, certamente tem maior poder de intervenção clínica-política do que uma internação isolada, hiatrogênica e comprovadamente ineficaz.
Por outro lado, para além de nossas lutas contrárias a posições como essa, chega o momento da militância da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial, se haver com suas insuficiências, rever estratégias, apontando para ações que dialoguem com os profissionais da saúde que não fazem parte do mundo psi, com as famílias e cidadãos que não sabem o que a atenção psicossocial tem a oferecer, com outros setores, com a mídia, CRIAR novas possibilidades e lutar pelos princípios que acreditamos e continuam a ser desinvestidos. Não se trata de um Recomeço – por que o movimento da reforma tem muita vida e acúmulo que devem continuar nos fortalecendo – mas de uma resistência (ou re-existência) para o enfrentamento das forças hegemônicas e autoritárias, para fortalecer o que nos integra e ao mesmo tempo uma abertura para compor com novos cenários dados que precisam ser transformados.
Sabrina Ferigato
Outros links a respeito do tema:
https://susbrasil.net/2013/04/10/uma-resposta-compulsoria-ao-descuidado-uma-critica-as-internacoes-compulsorias-para-o-tratamento-de-dependentes-quimicos-em-campinas/
Carta de Belo Horizonte contra as internações compulsórias: https://saudeecosol.org/carta-de-belo-horizonte-por-uma-politica-cidada-sobre-drogas/
Carta do CEBES (Centro Brasileiro de estudos em Saúde) https://cebes.org.br/verBlog.asp?idConteudo=4098&idSubCategoria=56
Carta de Tulio Franco https://susbrasil.net/2012/12/18/contra-a-internacao-compulsoria-a-usuarios-do-crack/
Trabalhadores de Campinas se manifestam contra o Programa “Recomeço” promovido pelo governo do Estado de São Paulo https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2013/04/em-visita-campinas-alckmin-e-alvo-de-ato-contra-internacao-compulsoria.html
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Há que lembrar que os tratamentos por internação também lançam mão de drogas. Lícitas? Qual é a diferença entre a cocaína e o metilfenidato ( ritalina ), ambas da família das anfetaminas? A dosagem? Mas, como lembrou a Sabrina, o Brasil é o segundo maior consumidor da ritalina e o medicamento tem sido indicado para crianças e bem pequenas. A indústria farmacêutica ganha terreno, melhor dito, latifúndios intermináveis de crianças, jovens e adultos para "fertilizar" quimicamente.
José Ramos Coelho, autor do livro "A Tragicomédia da Medicalização: a psiquiatria e a morte do sujeito", alerta para o sentimento de desamparo que acomete os sujeitos quando se encontram num hospital, entre quatro paredes, longe de seus amigos, parentes e do convívio social em liberdade. Que sentido tem uma vida enclausurada em nome de uma suposta proteção do sujeito?
Ramos é radical, no sentido de tomar as coisas pela raiz: "Outro efeito dos psicoativos é a geração de psicoapáticos: a lobotomização química dos afetos, estado que poderíamos chamar de apathéia = etimologicamente, sem ( a ) afetos ( pathe ), ausência de afetos. Ao contreario do conceito antigo e filosófico do termo, quando era vista como um estado de serenidade frente ao domínio perturbador dos estímulos vindos dos sentidos, a apathéia química é um estado de mutilação estética e de atrofia do sujeito. A diferença reside em que para os sábios gregos e romanos, a apathéia evidenciava a força da alma frente à presença dos afetos, que não mais a perturbavam em função de sua robustez; ao passo que na lobotomia química dos afetos, a alma, incapaz de lidar com eles, vê-se obrigada a recorrer à um fármaco para eliminá-los, provando assim o seu desgoverno e fraqueza" ( p. 111 ).
Parece que a nossa época se compraz em curvar, envergar e submeter tristemente em nome de uma "limpeza"…
Iza