A Vela na UTI
Uma mulher idosa, parecida com tantas outras, estava morrendo na U.T.I., longe de tudo e de todos. Vivera tanto tempo que já perdera as contas. As lembranças dessa longa vida eram como fotos embaralhadas de um álbum antigo, de uma maneira em que lentamente ia se perdendo a datação das imagens.
Lembrava-se que havia pedido aos filhos para ir embora pra casa. A resposta, tão parecida com outras tantas, foi mantê-la presa naquele ambiente insípido, afinal, ali ela poderia ser melhor cuidada. Enquanto houvesse vida haveria esperança.
Mas foram mais de 90 anos. Uma vida longa e mais feliz do que infeliz, parecida com outras tantas vidas, de ver o tempo passar e ir educando filhos para um dia ver os netos chegarem, um ir se acostumando a perder quem se ama, até que todas as referências da juventude morreram dentro da vida, um sentimento de solidão mais ou menos acompanhada, uma impressão de que a voz já não é mais ouvida e que o mundo não reverbera o que se fala. A voz dos velhos acaba sempre se transformando numa língua estranha, distante.
E lá estava ela, só e a anos-luz do mundo a poucos metros lá fora. Já desistira de lutar para fazer sua vontade. Resignara-se com sua prisão fria, sem sol e luar. Mas sua fé ainda vivia. Acreditava firmemente que ao seu lado estavam anjos e santos de Deus. E o papel deles ela havia aprendido desde criança. Eles ajudavam na passagem. Para ela o final da oração da Virgem Maria era fato: “Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte, amém.”
Ela sabia que precisava mais alguma coisa para iluminar seu caminho além das orações que recitava baixinho. Quem vai embora precisa de velas que lancem luzes por sobre o medo da escuridão, que oferecem um tudo diante do nada. Ela precisava que acendessem uma vela para partir em paz.
Reuniu todas as forças que lhe restavam e quando aquela moça de branco que escondia o rosto com uma máscara se aproximou dela, falou o mais alto que podia: “acende uma vela pra mim que eu preciso partir em paz”.
Diante do pedido, dois olhos arregalados imploraram por silêncio e ao mesmo tempo uma voz que tentava ser doce recitava o mantra das belas mentiras: “o que é isso vovó, a senhora vai sair daqui, vai melhorar”.
Mas não adiantava. Ela sabia que não era verdade. Um conhecimento ancestral lhe soprava nos ouvidos que o momento de partir havia chegado. Lamentava que seus filhos não estivessem ao lado dela como um dia ela esteve do lado de seu pai e de sua mãe. Mas afinal, ela não estava tão só. Podia tocar os anjos, podia sentir o hálito dos santos, só faltava a vela!
Ela insistiu, insistiu. Até que o pedido foi além dos limites da cama e configurou uma batalha que opôs dois exércitos em luta. Um que evocava a santidade asséptica do ambiente, imune portanto aos exercícios da santificação do senso comum. E um outro que advogava que uma vela acesa, nem que por poucos minutos, não colocaria em risco a segurança física dos outros moribundos, muito menos atearia fogo na catedral tecnológica.
Alguém intuitivamente sinalizou que o sofrimento do paciente e seu desejo pela vela apenas adiava a morte. Embora doutos achassem o argumento esvaziado de ciência, ainda assim foi permitido que a vela fosse acesa dentro de uma redoma de vidro.
Os olhos da mulher brilharam. Não se sabia se era mero reflexo do fogo ou se o brilhar era o reluzir da alma que ajudava a atear ainda mais a chama. Satisfeitos com aquele olhar, as pessoas esboçaram se afastar para retomar seus importantes afazeres. A idosa então fez mais um pedido: “agora, rezem por mim”.
Todos os médicos e enfermeiras se entreolharam surpresos. Ali ocorriam tantos “milagres”…, mas não tinham as cores nem a estética das igrejas. Uma sensação de vazio tomou o coração de todos. Mais uma vez a mulher pediu: “rezem por mim”. Agora mais parecia a súplica de uma voz que temia não ser mais ouvida.
Uma enfermeira quebrou o silêncio. Começou a rezar o “Pai Nosso” ao mesmo tempo que tomou as mãos de quem estava próximo. Seu gesto energizou os outros e de repente uma corrente se formou. Crentes e descrentes juntaram-se em torno daquele leito. Foram 5 minutos que pareceu durar uma vida toda. Algumas pessoas se aproximaram da mulher, seguraram sua mão, outras afagaram seus cabelos. Algumas máscaras ficaram úmidas de lágrimas.
Coincidência ou não, duas horas depois ela morreu. Quando as auxiliares foram preparar o corpo, notaram algo impressionante. O cadáver sorria como quem sonhava com toda a beleza do mundo. Uma delas, sorrateiramente, colocou duas flores entre as mãos da mulher. Ficava mais bonito dessa maneira.
No final, quando as luzes se apagarem, tudo precisa ser iluminado. Não importa mais debates estéreis sobre o que é verdadeiro ou melhor. O importante é a ajuda para atravessar o novo caminho, fazer pontes que liguem penhascos invisíveis.
Por Emilia Alves de Sousa
Querido Erasmo,
O teu relato me fez lembrar o falecimento de uma criança, ocorrido há alguns anos no HILP. A família era da zona rural e muito religiosa. No momento do óbito, a sua mãe pediu uma vela, esclarecendo que se morresse sem luz, ficaria "nas trevas" no outro plano. Foi uma correria no hospital, pois nunca ninguém havia feito uma solicitação como esta, e não haviam velas. Várias pessoas saíram em busca até que encontraram numa loja próxima. Foi uma cena que marcou os profissionais, ver a mãe colocar a vela na mão do filho e "encomendar o espírito". A partir daí, durante algum tempo, passamos a guardar vela no Serviço Social para uma eventualidade como esta. Porém, o episódio não se repetiu.
Bjs!
Emília