A velha e incrível questão.
Se as questões permanecem, envelhecem mesmo, depois de mais de 2500 anos de pensamento, o fato é que estamos discutindo a respeito de sentidos e significados. Não chegamos ao objeto ou a essência em si. Hume escolheu (poderia dizer livremente) o caminho de aceitar que nossos conceitos são delineados pelo hábito. Pela recorrência das afecções que nos chegam do mundo aos sentidos. As causas se entrelaçam, se chocam e produzem uma certa regularidade e frequência. Nos fiamos nisso e tocamos a vida. Nisso não diferimos dos demais animais. Espinoza, podemos afirmar, de forma autônoma, buscou uma compreensão da dinâmica destes encontros. Aceitou que nossa margem de manobra se relacionava ao que podemos fazer com o que o mundo, as relações, as contingências, fazem de nós. Não é muito, mas para nós é decisivo. Não para todos, talvez para apenas uma pequena minoria.
Não era portanto, como já concordamos eu e você, creio eu, uma questão de exercer plenamente o desejo ou a vontade. Era mais uma questão de mapear as frequências e as potencias dos encontros, diria choques ou fatalidades, e investir em possibilidades alegres. Encontros felizes.
Bem, Altair, é um belo ideal. Mas o caminho, como alertava Lao Tsé, tudo mais sendo equivalente, é o que surge, poderia dizer espontaneamente ou naturalmente, de uma visão clara das coisas. “Submerjo com o fluxo da água e emerjo com o refluxo. Não imponho meu desejo ao redemoinho das águas, sigo o caminho, o tao, das ondas. Assim consigo nadar". Espinoza escreveu que poderíamos viver a beatitude da vida, de modo que ao morrer e não encontrar Deus, ou a recompensa divina, teria sido a própria maneira de ter vivido a recompensa pela existência. Ser santo, mesmo que a santidade não existisse, ou melhor ainda, que ela não fizesse diferença. Que a beatitude fosse comum, pertencesse em potência a todos.
É sem dúvida uma bela forma de acolher a vida. Sem ser dogmático ou padecer de um idealismo que busca sem cessar o que já está ao alcance das mãos. Sempre me comove o assombro com que Espinosa aceita a contingência da vida e faz da autonomia a capacidade de se entregar voluntariamente a dinâmica imprevisível dos encontros. Como tu iniciaste o comentário, uma questão velha e antiga: O que pode um corpo?
Mas a autonomia para gerir um corpo e seus afetos é tragicamente um desiderato fora do alcance da maioria das pessoas. Pelo menos daquela maioria, ou minoria, de que trato. Eles são negligenciados ao ponto de serem invisíveis. Algumas vezes menos considerados do que os animais. Aí, pode ocorrer de que sejam arremessados a uma existência de uma única ou algumas pobres paixões. Sou, sim apaixonado por eles. A ponto de considerar que se a intensidade de uma única de suas paixões for da intensidade na qual amo meu filho, serei capaz de compreendê-los, talvez até de perdoá-los.
Percebe como dialogamos ao longo de nossos textos, respondendo em um post, as provocações que emergiram em outros? Sente como nos afetamos e tentamos estabelecer um espaço de comunhão onde nós possamos coexistir mesmo sendo diferentes nos investimentos e ênfases que damos ao que fizemos de nossas vidas?
Eu me sinto solitário em alguns momentos e escrever antes das sete da manhã é uma forma de me pôr em contato, fazer elos e alianças, tecer uma alquimia da diferença em diversidade e por fim solidariedade. Este é meu exercício de autonomia. Por em roda, pela escrita o tema de nosso lugar no mundo. A dúvida sobre a existência causada, fatal e determinada ou sobre a autonomia e a liberdade.
Veja, mesmo quando me sinto livre, conservo a dúvida cética. Não aquela que me paralisaria num breve momento seguido de um sorriso. Afinal a vida vive em nós. Não nos pertence, mas dinamicamente pertencemos a ela. Apenas reconheço que há existências que não irão ser enriquecidas por outros afetos. A menos que eu você fôssemos uma legião e nossos egos menores que o desejo de partilhar o exercício da liberdade e não sua ilusória conquista.
Nossa aposta no SUS e na RHS é esta. Os dados estão rolando…